Jornal do Brasil
11/05/2009
Leonardo Boff
teólogo
A afirmação mais impactante no discurso do presidente da Bolívia, Evo Morales Ayma, no dia 22 de abril na Assembleia Geral da ONU, ao se proclamar este dia como o Dia Internacional da Mãe Terra, talvez tenha sido esta: "Se o século 20 é reconhecido como o século dos direitos humanos, individuais, sociais, econômicos, políticos e culturais, o século 21 será reconhecido como o século dos direitos da Mãe Terra, dos animais, das plantas, de todas as criaturas vivas e de todos os seres, cujos direitos também devem ser respeitados e protegidos".
Esta compreensão nos coloca já dentro do novo paradigma, centrado na Terra e na vida. Não somos mais reféns do clássico antropocentrismo que desconhecia o valor intrínseco de cada ser, independentemente do uso que fizermos dele. Cresce mais e mais a clara consciência de que tudo o que existe merece existir e tudo o que vive merece viver.
Consequentemente, devemos enriquecer nosso conceito de democracia no sentido de uma biocracia ou democracia sócio-cósmica porque todos os elementos da natureza, em seus próprios níveis, entram a compor a sociabilidade humana. Nossas cidades seriam ainda humanas sem as plantas, os animais, os pássaros, os rios, o ar puro e as paisagens?
Hoje sabemos, pela nova cosmologia, que todos os seres possuem não apenas massa e energia. São portadores também de informação, possuem história, se complexificam e criam ordens que comportam certo nível de subjetividade. É a base científica que justifica a ampliação da personalidade jurídica a todos os seres, especialmente aos vivos.
Michel Serres, filósofo francês das ciências, afirmou com propriedade: "A Declaração dos Direitos do Homem teve o mérito de dizer ‘todos os homens têm direitos’ mas o defeito de pensar ‘só os homens têm direitos’". Custou muita luta o reconhecimento pleno dos direitos dos indígenas, dos afrodescendentes e das mulheres, como agora está exigindo muito esforço o reconhecimento dos direitos da natureza, dos ecossistemas e da Mãe Terra.
Como inventamos a cidadania, o viver juntos na cidade, o governo do Acre de Jorge Viana cunhou a expressão florestania, quer dizer, o viver juntos com a floresta com todos os seres que a compõem, cujos direitos são afirmados e garantidos.
O presidente Morales solicitou à ONU a elaboração de uma Carta dos Direitos da Mãe Terra, cujos tópicos principais seriam: o direito à vida de todos os seres vivos; o direito à regeneração da biocapacidade do planeta; o direito a uma vida pura, pois a Mãe Terra tem o direito de viver livre da contaminação e da poluição; o direito à harmonia e ao equilíbrio com e entre todas as coisas. E nós acrescentaríamos o direito de conexão com o todo do qual somos parte.
Esta visão nos mostra quão longe estamos da concepção capitalista que predominou durante séculos, segundo a qual a Terra é vista como um mero instrumento de produção, sem propósito, um reservatório de recursos que podemos explorar ao nosso bel prazer. Faltou-nos a percepção de que a Terra é verdadeiramente nossa Mãe. E a Mãe deve ser respeitada, venerada e amada.
Foi o que asseverou o presidente da Assembleia Geral da ONU, Miguel d’Escoto Brockmann, ao encerrar a sessão: "É justíssimo que nós, irmãos e irmãs, cuidemos da Mãe Terra pois é ela que, ao fim e ao cabo, nos alimenta e sustenta". Por isso, apelava a todos que escutássemos atentamente os povos originários, pois, a despeito de todas as pressões contrárias, mantém viva a conexão com a natureza e com a Mãe Terra e produzem em consonância com seus ritmos e com o suporte possível de cada ecossistema, contrapondo-se à rapinagem das agroindústrias que atuam por sobre toda a Terra.
A aprovação do Dia Internacional da Mãe Terra é mais que um símbolo. É uma viragem na nossa consciência a respeito da Terra, escapando do padrão dominante que nos poderá levar, se não fizermos transformações profundas, à nossa autodestruição.
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