O Globo
30/04/2009
Demétrio Magnoli e Gilson Schwartz
A primeira crise econômica global do século XXI descortina um paradoxo. Os EUA, símbolo da economia liberal, entregamse à produção de multibilionários pacotes de estímulos fiscais que ampliam seu déficit interno, ameaçam provocar forte desvalorização do dólar e, contrariando os princípios do sistema comercial multilateral, impõem uma cláusula protecionista: Buy America.
No polo oposto, a China, uma ditadura de partido único, proclama sua adesão aos princípios do livre mercado e da estabilidade cambial, oferecendo até pequenas lições de ortodoxia econômica a Washington.
Lição um: “A China é contra qualquer forma de protecionismo”, frisou Yao Jian, porta-voz do Ministério do Comércio, ao pedir que a OMC conclame “todos os países membros a se comprometerem com a sua estratégia de livre comércio”. Lição dois: “Nós não praticaremos o Buy China”, garantiu Jiang Zengwei, vice-ministro do Comércio. Lição três: “A crise solicita uma reforma criativa do sistema monetário internacional existente, rumo a uma moeda de reserva internacional de valor estável, emissão baseada em regras e oferta administrável, a fim de alcançar o objetivo de resguardar a estabilidade econômica e financeira global”, pontificou Zhou Xiaochuan, presidente do banco central.
EUA e China cumprem missões opostas, mas complementares, na gangorra da globalização. Os EUA configuram o principal mercado consumidor dos bens fabricados pelo sistema produtivo implantado na Ásia. A China funciona como nexo entre Ásia e Ocidente.
Uma expressão do papel que ela desempenha encontra-se na sua balança comercial, que exibe fortes saldos positivos no intercâmbio com os EUA e significativos saldos negativos nos intercâmbios com o restante da Ásia. O ciclo de crescimento abortado pela crise atual apoiou-se no desequilíbrio estrutural entre o excesso de consumo nos EUA e o excesso de poupança na China, que se aprofundou até vergar a economia global.
O motor das altas finanças simulou um equilíbrio virtual, apoiado na rotação acelerada dos capitais especulativos.
O déficit em conta corrente dos EUA, que atingiu US$ 664 bilhões em 2008, foi financiado pelos exportadores asiáticos, especialmente pela China, cujo superávit em conta corrente roçou os US$ 400 bilhões. O fluxo de capitais emanados da Ásia e reciclados nos mercados financeiros ocidentais propiciou, no ambiente de juros baixos e crédito abundante, mais uma louca balada especulativa, cujos sinos dobraram no colapso do Lehman Brothers. Game over.
Nada mais será como antes? A depressão econômica sangra os EUA, mas a democracia opera como colchão de amortecimento de impacto e reage pela invenção da presidência de Barack Obama. Na China, cujas estruturas produtivas sustentam a transferência anual de uma massa avassaladora de camponeses para as cidades, a ruptura da ordem econômica global ameaça a própria estabilidade política interna.
Com seu sistema político inflexível, a China enfrenta um milhão de motins fragmentários e, por isso, sua elite dirigente não tem alternativa realista senão conservar um ritmo alucinante de expansão econômica.
O apego de Pequim ao dogma dos mercados livres traduz o interesse nacional chinês. Mas, se o sucesso da China é uma variável dependente do desempenho dos EUA, em nome de qual lógica o banco central chinês propõe a substituição do dólar por uma moeda mundial emitida pelo FMI? Há três hipóteses: chantagem, catástrofe e mutação.
Chantagem: Pequim convoca o espectro do cancelamento do poder monetário dos EUA para dar combate às insistentes sugestões americanas de uma saída para a crise baseada na valorização da moeda chinesa e na desvalorização do dólar. Atrás da chantagem, esconde-se o temor da destruição dos ativos financeiros chineses denominados em dólar e o desejo de restauração da ordem especulativa prévia.
Catástrofe: os dirigentes chineses apostam na crise mundial como atalho para a ascensão do Império do Centro ao posto de número um e ao comando de uma nova era de expansão global. A estratégia, improvável, coaduna-se com uma visão de mundo esculpida pela sensação de poder oriunda do peso bruto da demografia e por um passado recente de marchas longas e tragédias indescritíveis.
Mutação: a liderança chinesa encara a crise como um ponto de inflexão inevitável e empenha-se numa parceria com Washington para a reforma do sistema financeiro global. Nessa hipótese, Pequim admite a necessidade de um realinhamento cambial ordenado e procura circundar o precipício de desvalorizações cambiais unilaterais, com seu cortejo incontrolável de protecionismo e guerras comerciais. O edifício da projetada parceria, antecipando um cenário de duopólio de poder geopolítico, estaria apoiado sobre os pilares multilaterais do FMI e da OMC, dispensando o alicerce condenado de um dólar em irreparável declínio.
Há 65 anos, Franklin Roosevelt desenvolveu a visão dos dois componentes, “inseparáveis como as lâminas de uma tesoura”, do mundo do pós-guerra.
De um lado, figurava uma ordem política pacífica amparada na segurança coletiva (Nações Unidas); de outro, uma ordem econômica liberal organizada ao redor do dólar (Sistema de Bretton Woods). A força da visão de Roosevelt não decorria de sua originalidade ou lógica intelectual, mas dos resultados da guerra mundial que colocou os EUA no posto de número um. Hoje, poucos negam que o edifício da ordem erguido no fim da guerra enfrenta o desgaste do tempo e das intempéries. A dúvida é se, na ausência de uma guerra geral, a depressão econômica será violenta o suficiente para compelir as potências a uma reforma de consenso naquela obra. Logo saberemos.
DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP. E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br.
GILSON SCHWARTZ é economista, lidera na USP o grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br).
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