quinta-feira, 21 de maio de 2009

Cesare Battisti, soberania e Constituição

Correio Braziliense

20/05/2009


Luiz Filipe Ribeiro Coelho
Advogado
Segundo importantes juristas, o ato do ministro da Justiça, que concedeu refúgio ao cidadão italiano Cesare Battisti, seria insuscetível de apreciação pelo Poder Judiciário, a teor da regra do art. 33 da Lei nº 9.474/97, eis que se trata de ato de soberania. Em extraordinário parecer, o advogado baiano Luiz Viana Queiróz concluiu que “é ilegal o refúgio concedido por ato do ministro da Justiça a Cesare Battisti, por violação ao art.1º, da Lei nº 9.474/97”, mas reconheceu a intocabilidade do ato em decorrência da aplicação do art. 33, que diz que o “reconhecimento da condição de refugiado obstará o seguimento de qualquer pedido de extradição”.

Para mim, o ato é suscetível de controle jurisdicional. De início, trago o magistério de Alexandre de Moraes no sentido de que, mesmo em relação às garantias constitucionais restringíveis (exemplo, estado de sítio), “jamais haverá, em concreto, a possibilidade de supressão de todos os direitos e garantias individuais, sob pena de total arbítrio e anarquia, pois não há como se suprimir, por exemplo, o direito à vida, à dignidade humana, à honra, ao acesso ao Judiciário”.

Nas considerações de Álvaro Osório do Valle Simeão, a natureza da soberania só pode derivar do procedimento contratual segundo o qual a multidão substitui as vontades particulares pela vontade geral: a essência da soberania se identifica, então, com a vontade geral. O direito, estando acima do titular do poder, submete mais ainda o governante, que não é titular de nada. É de se indagar, então, se o ato de soberania estaria ao largo da apreciação pelo Supremo.

O caso Cesare Battisti é emblemático para sustentar a indeclinável judicialização do ato ministerial. Resgatemos, antes, algumas informações imprescindíveis. A primeira delas, (I) a de que todos os delitos atribuídos a Cesare Battisti foram julgados pelas cortes italianas. Na busca da inserção de conduta delitiva comum no espectro político, (II) referidas decisões foram submetidas ao crivo da Corte Europeia de Direitos Humanos, que as reconheceu legítimas. Estando o cidadão italiano em território francês, (III) foi concedida a extradição ante o reconhecimento de se tratar de crime comum.

Nesse ínterim, veio Cesare Battisti para o Brasil, local em que obteve refúgio político por ato do ministro da Justiça, ainda que (IV) em oposição à manifestação do Comitê Nacional para Refugiados. O ato concessivo do refúgio foi assim avaliado por Luiz Viana: “Considerar a ordem de prisão, já agora, como odiosa, importa colocar sob suspeição não apenas os diversos julgamentos efetuados nas diversas instâncias judiciárias da Itália, mas, igualmente, a decisão do Conselho de Estado da França, que concedeu a extradição, e a deliberação da Corte Europeia de Direitos Humanos”.

A meu sentir, a soberania de todas as decisões mencionadas é que restou vulnerada. Sob essa óptica, sem grandes escrúpulos com a soberania das cortes mencionadas, o ato ministerial passou do juízo rescindente ao juízo rescisório, fundado em valoração particularíssima da autoridade que o editou, proferindo novo e inusitado julgamento, sem o mesmo devido processo legal que reclamara no caso do extraditando e que foi a base da concessão do refúgio.

Não me parece que mesmo os atos considerados de soberania possam ser decretados com total e irrestrita discricionariedade. É que o constitucionalismo da modernidade está em constante luta para deter o absolutismo. Considere-se que o princípio da soberania vem passando por um processo, se não de erosão, pelo menos de transformação. Isso ocorre na medida em que se estabelece uma série de limitações ao poder dos Estados, que se veem obrigados a prestar contas de suas relações com os seus cidadãos a organismos internacionais (vide a instituição do Tribunal Penal Internacional).

A soberania, sob essa perspectiva ética, passa a ter uma razão fundamental, que é a proteção de uma série de direitos das pessoas. Ao Estado só é legítimo o exercício do poder enquanto esse exercício estiver voltado à proteção dos direitos. À medida que o Estado deixa de realizar as tarefas para as quais foi constituído, deixa também de ser protegido pelas prerrogativas da soberania. Nesse sentido, os atos contrários à lei não podem ser considerados atos do Estado brasileiro, mas sim da pessoa que se encontrava no exercício do poder.

Dessa forma, aquela soberania que de início tenderia a envolver o ato perde totalmente o seu sentido. Não se pode invocar a intangibilidade dos atos de soberania para não aplicar os princípios constitucionais e legais. Em outros termos, não pode o direito ser utilizado como escusa para sua própria implementação. Assim, mesmo nos atos considerados de soberania, deve se pautar a autoridade competente segundo as limitações que decorrem da própria regulamentação constitucional e legal, não se podendo, nessas hipóteses, adjetivar o ato como soberano para frustrar o necessário controle jurisdicional a que deve ser submetido, se viciado estiver, com o que se contribui para que o exercício do poder não desvie para o arbítrio.

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