sexta-feira, 31 de julho de 2009

A questão colombiana vista pelo Brasil e Espanha

Folha de São Paulo de 31 de julho de 2009

Brasília se alia a Madri contra bases dos EUA
Governos articulam ação conjunta para lidar com intenção americana de expandir sua presença militar na Colômbia

Negociações entre Bogotá e Washington foram estopim inicial para acirramento das tensões que fez Venezuela congelar relação com vizinho



Os governos da Espanha e do Brasil articulam reações conjuntas da União Europeia e da América Latina contra a intenção dos EUA de ampliarem sua presença militar na Colômbia, com distribuição de soldados e civis americanos em três bases no país.
Para Espanha e Brasil, isso significa trazer para a região a lógica da militarização e uma corrida armamentista, com a Colômbia servindo de plataforma para os EUA e a Venezuela, para a Rússia.
"É preciso cuidado para evitar tensão e militarismo na América Latina. Essa não é a melhor resposta aos problemas na região", disse o chanceler da Espanha, Miguel Ángel Moratinos, depois de encontros com o presidente Hugo Chávez (Venezuela), anteontem, em Caracas, e com o ministro Celso Amorim (Relações Exteriores), ontem, em Brasília.
O Itamaraty orientou o embaixador em Washington, Antonio Patriota, a questionar detalhes sobre a ampliação da presença nas três bases, em Malambo, Palanquero e Apiay.
Amorim cobra "transparência" e diz que o Brasil quer saber se o comando das operações ficará com os EUA ou com a Colômbia e se haverá ampliação no limite de até 800 militares e de até 600 civis norte-americanos acertado no chamado Plano Colômbia.
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse ontem em São Paulo, ao lado da colega chilena, Michelle Bachelet, que não lhe "agrada" a ideia de que os EUA ampliem a presença militar na Colômbia e defendeu que o acordo entre Washington e Bogotá, ainda em negociação, seja tratado na reunião da Unasul (União de Nações Sul-Americanas) no Equador, no próximo dia 10.
Lula pediu que seja convocado o Conselho de Defesa da Unasul, criado no ano passado, para discutir o espinhoso tema de segurança nas fronteiras e o futuro acerto militar. Presidente pro-tempore do órgão multilateral, Bachelet, corroborou o chamado.
"Posso dizer que a mim não me agrada mais uma base na Colômbia. Mas como eu não gostaria que o [presidente da Colômbia, Álvaro] Uribe desse palpite nas coisas que eu faço no Brasil, eu prefiro não dar palpite nas coisas do Uribe", continuou o brasileiro. Ele disse preferir "conversar pessoalmente" com Uribe em Quito.
A presidente do Chile defendeu que é preciso chegar a um acordo "porque por certo há países que não estão tranquilos" com a negociação Washington-Bogotá.
Lula traçou paralelo entre o possível acordo dos EUA e a Colômbia e a Quarta Frota Naval americana, reativada no ano passado. O presidente lembrou que o Brasil havia dito a Washington, por carta, que "não via com bons olhos" a reativação da esquadra, comando naval responsável por todas as embarcações militares americanas nas águas da América Latina e do Caribe. O motivo, repetiu Lula, é que "a linha territorial dela [da esquadra] é quase em cima do nosso pré-sal".

Crise bilateral
No discurso do governo Álvaro Uribe, a Colômbia manterá o controle das três bases, que seguirão sendo de combate ao narcotráfico e com o efetivo estrangeiro dentro do limite já anteriormente estabelecido dentro do Plano Colômbia.
No entanto, alastra-se na América Latina e estende-se agora para a Europa, via Espanha, o temor de que o novo governo dos Estados Unidos esteja recuando no discurso antibelicista e anti-invasivo do presidente Barack Obama.
A percepção nos países sul-americanos, levada à Europa, é a de que o governo Obama está usando as bases na Colômbia para neutralizar a crescente aproximação da Venezuela de Chávez tanto com os russos, dos quais adquiriu equipamentos bélicos, quanto com o Irã -adversário de Washington.
Moratinos voou de Caracas para Brasília anteontem à noite para jantar com autoridades brasileiras, inclusive com o assessor internacional da Presidência, Marco Aurélio Garcia. Um dos temas foi a tensão Colômbia-Venezuela.
Garcia está indo para Caracas e para Bogotá como enviado de Lula para obter informações e tentar mediar o diálogo entre Chávez e Uribe. Ele vai tentar articular a ida de Chávez à Colômbia na semana que vem.
A Venezuela retirou na terça seu embaixador do país vizinho, depois de cobranças públicas para que explicasse o achado de armas do Exército venezuelano com as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia). O governo Chávez diz que a acusação é uma "cortina de fumaça" para desviar a atenção da discussão sobre as bases militares.

Retificação do I Concurso de monografias de direito da UFF

O edital do I concurso de monografia de direito da UFF deve ser corrigido em vez de primeiro de abril de 2009 para primeiro de setembro de 2009 para a inscrição dos trabalhos

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Os Estados Unidos e o Terrorismo

Folha de São Paulo 30 de julho de 2009

EUA vão modificar seu enfoque contra o terror, diz secretária
Para chefe da pasta de Segurança Interna, o governo Obama vai precisar engajar a população no combate ao terrorismo

Janet Napolitano avalia que avanços tecnológicos exigem nova estratégia; "podemos estar mais preparados" que em 2001

Os EUA precisam do engajamento da população para combater o terrorismo, afirmou a secretária de Segurança Interna norte-americana, Janet Napolitano. Segundo ela, é necessária uma atuação conjunta de indivíduos, empresas, órgãos locais, governo federal e países aliados.
Em discurso, ela procurou mostrar que o governo de Barack Obama não deixa de lado os riscos de novos ataques terroristas. Disse que é preciso trocar o temor pela preparação para lidar com as ameaças e com o uso disseminado da tecnologia. Segundo ela, a ameaça terrorista persiste.
Em crítica indireta à política antiterror adotada pelo governo de George W. Bush (2001-2009), Napolitano afirmou que as consequências de viver em um estado de medo, em vez de um estado de prontidão, são enormes para o país.
"Nós podemos estar mais preparados como nação do que estávamos no 11 de Setembro. Mas não estamos nem perto do quanto deveríamos estar", disse, em evento no Council on Foreign Relations, um influente "think tank" de Washington de onde foram selecionados alguns integrantes da equipe do governo Obama.
Porém, com exceção do incentivo à participação da população, os programas mostram continuidade em relação ao governo Bush, sobretudo na questão do reforço das fronteiras. A "guerra ao terror" promovida pelo ex-presidente americano foi alvo de críticas durante as eleições.
Para a secretária, o governo não fez o suficiente para educar o povo americano. A estratégia do novo governo no combate ao terror será focada em quatro pontos: cooperação de países aliados, poder do governo federal, vigilância da polícia e fiscalização por parte dos cidadãos.

Tecnologia
Napolitano destacou que os terroristas têm agora a seu dispor um arsenal tecnológico muito mais amplo do que na época do 11 de Setembro.
Ela citou o ataque de Mumbai, em que foram usados sistemas de GPS, telefones por satélite, sites de mapeamento e TV a cabo. Para combater as ameaças, ela defendeu mais treinamento, tecnologia e compartilhamento de informação entre órgãos de segurança.
"Se o 11 de Setembro ocorreu em um mundo de web 1.0, os terroristas estão certamente em um mundo de web 2.0 agora", afirmou Napolitano. "Muitas das ferramentas tecnológicas que promovem a comunicação hoje ainda estavam em sua infância ou nem existiam ainda em 2001."
Para a secretária, o país precisa fazer com que as fronteiras se tornem "a última linha de defesa e não a primeira".
Os EUA negociam com aliados europeus o compartilhamento de informações com antecedência sobre viajantes

O TPI e o Brasil

Folha de São Paulo, quinta-feira, 30 de julho de 2009




Corte pede dados sobre atividades das Farc no Brasil

As suspeitas sobre o alcance das conexões internacionais da guerrilha colombiana vão muito além da Venezuela.
O Tribunal Penal Internacional (TPI) está analisando indícios de que uma rede de apoio e financiamento das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) atuaria em diversos países, entre eles o Brasil.
A informação foi confirmada à Folha pelo promotor-chefe do TPI, o argentino Luis Moreno-Ocampo, em recente passagem pela Suíça. Seu escritório enviou uma carta às autoridades brasileiras para saber se foi aberta investigação sobre as atividades da guerrilha no país.
Segundo o promotor, os indícios sobre as ações no Brasil aparecem em mensagens encontradas num dos computadores de Raúl Reyes, o número dois das Farc que foi morto num ataque do Exército colombiano a seu acampamento no Equador, no ano passado.
"Estamos avaliando o que está sendo feito na Colômbia e descobrimos que há conexões das Farc em outros países, inclusive no Brasil", disse o promotor, na cidade de Basileia.
No ano passado, o governo brasileiro negou qualquer envolvimento com as Farc depois que e-mails obtidos do computador de Raúl Reyes revelaram esforços da guerrilha em abrir um diálogo com PT e Planalto.
Moreno-Ocampo também confirmou que há suspeita de atividades de apoio às Farc em outros países, entre eles a Suíça, onde as Farc estariam usando os bancos locais para fazer lavagem de dinheiro oriundo de atividades criminosas.
O pedido de informação do TPI sobre as operações internacionais das Farc foi enviado a dez países, além de Brasil e Suíça: Colômbia, Venezuela, Equador, México, Costa Rica, Peru, Panamá, Nicarágua, Espanha e Dinamarca.
O embaixador do Brasil em Haia (Holanda), onde fica a sede do TPI, José Artur Denot Medeiros, confirmou que recebeu a comunicação no segundo semestre de 2008. Mas disse que ele não continha solicitação sobre dados específicos.
A Promotoria do TPI esclareceu que está no estágio de "análise". "Ainda não há uma decisão. O escritório está analisando se há base razoável para crer que foram cometidos crimes sob sua jurisdição", explicou Cornelia Schneider, assessora de Moreno-Ocampo.
Pelo Estatuto de Roma, que rege o TPI, o promotor pode pedir informações quando há suspeita de que foram cometidos os delitos que estão sob sua jurisdição: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crime de agressão.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

I Concurso de Monografias de Direito na UFF -edital

Aproveitamos para divulgar que o edital para 4° edição encontra-se aberto para receber novos textos até o dia 1° de abril. Disponível em
http://www.uff.br/rdm/eventos.php. Foi a informação dada pelo graduando de direito da uff Siddharta Legale Ferreira

Agamben e movimento social

O texto postado pelo monitor de Teoria do Estado Rafael de Barros Vieira
O movimento em Agamben
Tradução portuguesa da intervenção feita por Giorgio AGAMBEN, em italiano, em encontro realizado emVeneza. Audio acessado em junho de 2005: http://www.globalproject.info/IMG/mp3/03_agamben.mp3.
Conservou-se em geral, na tradução portuguesa, o estilo da intervenção falada, embora se tenha cotejado áudio em italiano com a transcrição feita e traduzida para o inglês – por Arianna Bove - acessada, emagosto de 2005, na revista eletrônica Multitudes: http://multitudes.samidzat.net/article.php3?id_article=1914

Também presente no site: http://brigadasinternacionais.blogspot.com/2007/04/texto-de-giorgio-agamben270407.html

Texto

As reflexões que farei hoje nascem de um mal-estar, ou melhor, de uma série de
perguntas que me pus, assistindo, há algum tempo atrás, em Veneza, a um encontro em
que estavam presentes algumas pessoas que também estão aqui hoje (Toni, Casarini...).
Um termo era repetidamente usado pelos que falavam e discutiam: era o termo “movimento”. Trata-se de um termo que, em nossa tradição, tem uma longa história. Mesmo hoje, na intervenção de Toni (Negri), o termo movimento parece ter sido o mais recorrente. Também no seu livro tem uma posição estratégica, toda vez que se trata de definir o termo multidão, por exemplo, para escapar da falsa alternativa entre soberania e anarquia. De onde vinha meu mal-estar, que se repete também hoje? Do fato de me dar conta, pela primeira vez, de que este termo nunca era definido. Quem o usava provavelmente não o poderia definir, ou em todo caso, nunca o definia. Eu mesmo não o teria conseguido definir. No passado muitas vezes me servi, como regra implícita de minha prática de pensamento, da fórmula: quando há movimento, fazer como se não
houvesse, e quando não há movimento, fazer como se houvesse. Agora me dou conta de
que não sabia o que significava o termo movimento, para além de toda a sua genericidade. Trata-se de um termo que todos acham que entendem, mas que não se define. Por exemplo: de onde provinha este termo? Por que se passa em certo momento a chamar movimento uma instância política decisiva? Assim, as considerações que faço
hoje nascem da consciência de que não era possível deixar indefinido esse termo, esse conceito. Devemos pensar o movimento porque o conceito é de algum modo o nosso
impensado, que, por isso mesmo, corre o risco de comprometer eventualmente nossas
escolhas e nossas
estratégias. Não é apenas um escrúpulo filológico, ou porque a
terminologia é o momento poético e, portanto, produtivo do pensamento, ou porque o meu trabalho consiste em definir conceitos, o que por hábito costumo fazer, mas porque o uso a-crítico de certos conceitos pode ser responsável de muitas derrotas. Lembro que estou apenas no início de uma pesquisa sobre este conceito, e por isso hoje quero apenas plantar algumas balizas, que poderiam servir para endereçar a investigação futura.
Em primeiro lugar, alguns dados históricos banais: o conceito de movimento, que nas ciências e na filosofia tem uma longa história, por sua vez adquire na política um significado técnicorelevante apenas no século XIX.. Um dos primeiros aparecimentos ocorre na Revolução de julho de 1830 na França, na qual os defensores de mudança se denominavam do “partie du mouvement” e os seus adversários do “partie de l’ordre”. De modo breve, talvez só com Lorenz von Stein, autor que, como se sabe, influenciou tanto Marx quanto Carl Schmitt, que este conceito se torna mais preciso e começa a definir um âmbito estratégico de aplicação. Na sua História do Movimento Social na França (1850), Von Stein joga a noção de movimento em contraposição dialética à noção de Estado. O Estado é o elemento estático, legal, enquanto o movimento é a expressão das forças dinâmicas da sociedade. Dessa forma, o movimento é sempre movimento social, em antagonismo com o Estado, e expressa o primado dinâmico da sociedade sobre as instituições jurídicas e estatais. Assim, nem sequer Von Stein define o que entende por movimento; ele atribui a ele uma dinâmica e descreve sua função, mas não lhe dá uma definição nem uma tópica. Algumas indicações interessantes sobre a história dos movimentos podem ser encontradas no livro de Arendt sobre o totalitarismo. Mas também nele o termo acaba não sendo definido. Ou seja, todos sabem o que é, mas ninguém o define. O que Arendt mostra é que por volta da Primeira Guerra Mundial, imediatamente antes e imediatamente depois, os movimentos adquirem na Europa um desenvolvimento extraordinário, mas agora em contraposição aos partidos. Por volta da primeira Guerra Mundial, os
movimentos estendem sua influência em contraposição estratégica contra os partidos.
Assiste-se então a uma verdadeira explosão do conceito e do fenômeno do movimento. Tal terminologia é usada tanto pela direita quanto pela esquerda: Fascismo e Nazismo sempre se definem como movimentos, e só secundariamente como partidos. De toda forma, trata-se de um termo que neste momento ultrapassa o âmbito
político. Muitas pessoas conhecem a importância que, nesse momento, têm na própria formação o Jugendbewegung (movimento de juventude). Para dar um exemplo de fora da política: quando Freud, em 1914, pretende escrever um texto para definir o que é isso, a psicanálise, ele não a define nem como escola, nem como instituição, e nem como disciplina, mas como “movimento psicanalítico”. Mas também aqui não aparece uma
definição. De toda forma, se percebe claramente que há em determinados momentos históricos palavras e conceitos que se impõem como palavras de ordem irresistíveis, que são adotadas por posições antagônicas, sem que, porém, nunca se exija uma definição. O ponto perturbador desta minha pesquisa, o ponto em que se evidencia a cegueira deste conceito, é me ter dado conta que o único que havia tentado definir no âmbito político e também jurídico este termo foi um jurista nazista: Carl Schmitt. No ensaio de 1933, intitulado “Staat, Bewegung, Volk” (Estado, Movimento, Povo), e cujo subtítulo é Die Dreigliederung der politischen Einheit (A tripartição da unidade política), Schmitt procura definir claramente a função político-constitucional da noção de movimento. O que é perturbador é o fato de Schmitt querer definir nesse ensaio a estrutura constitucional do Reich nazista. Trata-se de definir o que ele denomina “heutige Verfassunglage”, ou seja, a situação constitucional do Estado nacional-socialista. Eis um breve resumo das teses de
Schmitt. Parece-me que esta promiscuidade terminológica com um pensador do nazismo exige clareza e lucidez. Portanto, sem uma análise dessa promiscuidade, no caso da análise como a de Schmitt, não é possível esclarecer e sair dessa promiscuidade. Segundo Schmitt, a política do Reich nazista se funda sobre três elementos ou membros: Estado, movimento e povo. Por conseguinte, a articulação constitucional do Reich nazista é resultado da articulação e da distinção desses três elementos. O primeiro elemento é o Estado - declara Schmitt – e importa prestar atenção na definição que ele dá: o Estado é a parte política estática. Trata-se do aparato das repartições. O povo –


preste-se também atenção – é o elemento impolítico, não político, (unpolistisch), que cresce à sombra e sob a proteção do movimento. O movimento, por sua vez, é o verdadeiro elemento político, elemento político dinâmico, que encontra a sua forma específica na relação com o Partido Nacional
Socialista, com a direção (Führung). Importante é que para Schmitt o próprio Führer não é senão a personificação do movimento. Gostaria ainda de falar sobre as implicações dessa tripartição, que, segundo
Schmitt, também está presente no aparato
constitucional do Estado soviético. Uma primeira consideração importante, rica de conseqüências, é a seguinte: o primado da noção de movimento é função do fato de o povo se tornar impolítico (insistimos que o povo é o elemento impolítico que cresce à sombra e sob a proteção do movimento...). Portanto, eis a primeira conseqüência importante: o movimento torna-se o conceito político decisivo quando o conceito democrático de povo, como corpo político, já está ultrapassado. Isso talvez hoje não nos deixe surpresos, mas se pode dizer que a democracia acaba quando nascem os movimentos. Em sentido substancial, não existem movimentos democráticos (entendendo aqui por democracia aquela tradição que vê no povo o seu elemento político constitutivo – se de fato a democracia possa ou não repousar sobre o conceito de povo, isso é outro problema...). Esse pressuposto – o de que os movimentos estabelecem o fim do conceito de povo como corpo político – parece
ser compartilhado tanto pela tradição revolucionária da esquerda, quanto pelo fascismo e
pelo nazismo. Não é por acaso que pensadores políticos contemporâneos, como Toni (Negri), procuram pensar o novo corpo político recorrendo a outras noções, como multidão, e não à de povo. Em Hobbes, a noção de multidão também aparece contraposta à noção de povo. Para mim também é significativo que em volta de Jesus não há nunca laos nem demos (termos técnicos no grego para “povo”), mas apenas oclos (uma massa, uma “turba”, conforme a tradução de São Jerônimo, uma multidão). Em volta de Jesus nunca há povo, mas somente multidão. Portanto, o conceito de movimento pressupõe o eclipse do conceito democrático de povo como sujeito político constitutivo, como corpo político. Esta é a primeira conseqüência do uso do termo movimento. E nisso concordam nazismo e fascismo: estes nascem da consciência de que o conceito de povo como corpo político está ultrapassado. A segunda conseqüência desse conceito schmittiano de movimento é a de que o povo é um elemento impolítico cujo crescimento o movimento precisa proteger e sustentar (Schmitt usa o termo “wachsen”, que tem a ver com crescimento biológico, de plantas e animais). Conforme declara Schmitt, isso corresponde não à esfera não política do povo, mas à esfera impolítica da administração (Selbstverwaltung). Schmitt lembra também o estado corporativo fascista. Olhando as coisas com os olhos de hoje, parece que não se pode deixar de ver - nessa determinação do povo como elemento não-político - o implícito reconhecimento, que Schmitt nunca ousa articular, do seu caráter biopolítico. O povo, deixa de ser corpo político constitutivo, e se transformou em população, ou seja, em entidade demográfico-biológica, e, como tal, impolítica. Uma entidade que o movimento deve sustentar, proteger e fazer crescer. Quando, durante o século XIX, o povo se transforma de entidade política em entidade demográfica e biológica, em populações, o movimento se torna uma necessidade. Disso também devemos ter consciência: vivemos em uma época na qual a transformação do povo em população, de uma entidade política em entidade demográfica, é um fato cabal. O povo hoje é uma realidade biopolítica, no sentido de Foucault, no sentido restrito do termo, e é essa transformação biopolítica do antigo sujeito político, que torna necessário o conceito de movimento. Se, porventura, quisermos pensar de forma diferente o conceito de biopolítica, como o faz Toni (Negri), mesmo que em perspectiva diferente, e da qual eu me sinto muito próximo, se quisermos, pois, pensar a intrínseca politicidade do biopolítico – se o elemento biopolítico é visto como político desde sempre , e por isso não precisa ser politizado através do movimento ¾ então precisaremos repensar, desde a raiz, o conceito de movimento. Não poderemos usar a-criticamente o conceito de movimento se, por exemplo, quisermos pensar a
politicidade do elemento biopolítico. Tal trabalho de definição torna-se necessário também porque, continuando a ler o texto de Schmitt, verificamos como aparecem, a partir do conceito de movimento, aporias especialmente ameaçadoras. Se, na perspectiva de Schmitt, o elemento político determinante, se o elemento político autônomo é o movimento, e se o povo, por sua vez,
é um elemento impolítico, então o movimento só poderá encontrar sua politicidade na
medida em que sinalizar no corpo biopolítico do povo para cesuras internas que permitam
a sua politicização. Essa cesura é denominada por Schmitt de identidade de espécie, ou
seja, racismo. Podemos verificar que aqui Schmitt alcança a máxima identificação com o



racismo e a máxima co-responsabilidade com o nazismo. Isso é um fato e, ao mesmo tempo nos devemos dar conta de que essa escolha, a de ser obrigado a identificar uma cesura, no corpo impolítico do povo, é a conseqüência imediata da sua concepção da função do movimento. Se o elemento político não for o povo, mas o movimento como entidade autônoma, de onde o movimento pode tirar sua politicidade? A politicidade do movimento poderá basear-se unicamente na sua capacidade de identificar no interior do povo um inimigo, ou seja, um elemento racialmente estranho – no caso de Schmitt. Onde há movimento sempre haverá uma cesura que corta o povo, que divide o povo, nesse caso identificando um inimigo. Eis porque me parece tão urgente repensar o conceito de movimento, e esclarecer a sua relação com o de povo e de multidão. Em Schmitt vemos
que o elemento excluído do movimento como impolítico volta a apresentar-se como aquilo que precisa, cada vez, ser decidido; trata-se de um decisão política sobre o impolítico, sobre o que é impolítico no político. Em Schmitt, o movimento é um órgão que decide sobre o impolítico. É uma decisão política sobre o impolítico. Isso pode ter a forma de uma cesura étnica ou racial, mas também, como acontece hoje, a forma de indicar uma tarefa de gestão e de governo daquele elemento impolítico que são as populações, o corpo biológico da humanidade, dos povos, que o poder hoje deve governar. Há algumas perguntas que hoje se põem para nós. Em primeiro lugar: devemos continuar usando o conceito de movimento, ou devemos abandoná-lo? Se, por exemplo, o conceito de movimento sinaliza para uma espécie de politização do impolítico, poderia acontecer um movimento que fosse diferente, por exemplo, de uma guerra civil? Ou então, outra pergunta: em que direção poderíamos repensar o conceito de movimento e sua relação com o biopolítico? Com esta pergunta gostaria de terminar. Não darei aqui uma resposta, para uma pesquisa que tomará muito tempo, mas gostaria apenas de dar algumas indicações de horizonte, para onde nos podemos movimentar ou onde podemos pesquisar.


Sabemos que o conceito de movimento é o conceito central no pensamento de Aristóteles. No interior do seu pensamento, o conceito de movimento, kinesis, cumpre uma função estratégica num âmbito muito importante, como o da relação entre potência e ato. Aristóteles apresenta uma definição muito interessante: movimento é o ato de uma potência enquanto potência, mais do que uma passagem para o ato. Noutro lugar ele afirma que o movimento é um ato imperfeito, ateles, que não se possui no seu fim, que não tem fim. Neste caso, sugeriria uma pequena modificação em Aristóteles, que vai numa direção - entre as muitas diferenças que nos opõem - que Toni poderia compartilhar comigo: o movimento é a constituição de uma potência enquanto potência. Mas se isso for verdade, então nunca conseguiremos pensar que o movimento seja externo ou autônomo em relação à multidão, ao povo. Assim, o movimento nunca poderá ser sujeito de uma decisão, organização, direção do povo, ou nunca poderá ser elemento de politicização da multidão ou do povo. Outra coisa que me parece interessante em Aristóteles é que o movimento é um ato ao qual falta um fim, ateles, incompleto, in-finito, no sentido de lhe faltar um telos. Isso significa que o movimento se mantém numa relação essencial com uma privação, com uma ausência de telos, com uma imperfeição. Movimento é sempre, constitutivamente, relação com o próprio faltar, com a própria ausência de um ergon, de um telos e também de uma obra. Aquilo sobre o que nunca estou de acordo com Toni é a ênfase posta na produtividade. Há que reivindicar também a inoperosidade, a ausência de obra como
elemento central... Por conseguinte, o movimento é algo que nunca se possui em um
ergon, em um telos, em uma obra. Movimento expressa nesta perspectiva a impossibilidade de um telos, de um ergon, ou de um fim de uma obra para a política. Movimento significa precisamente o fato de ser indefinida (indefinitezza) e a imperfeição de toda política. Nesse sentido, o movimento deixa sempre um resíduo. Sob esta perspectiva, o mote que havia citado inicialmente, e que servia de regra interna para o meu pensamento - quando há movimento, fazer como se não houvesse; e quando não há movimento, fazer como se houvesse – poderia ser reformulado, em sentido ontológico, da seguinte maneira: o movimento é aquilo que, se existe, é como se não existisse, ele falta a si mesmo (manca a se stesso), e quando não existe, é como se existisse, excede a si mesmo (eccede a se stesso). Há, pois, um umbral de indeterminação entre o excesso e a falta que marca o limite e o resíduo de qualquer política na sua constitutiva imperfeição.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Carrascos nazistas: Felizes para sempre

Carrascos nazistas: Felizes para sempre

Como carrascos nazistas, acusados e condenados por alguns dos mais terríveis crimes contra a humanidade, conseguiram escapar da justiça e viver em liberdade após o fim da guerra, em 1945
por Celso Miranda e Giovana Sanchez
Assim que a Segunda Guerra acabou na Europa, em junho de 1945, a derrotada Alemanha foi dividida em quatro zonas, controladas pelos três grandes vencedores – americanos, soviéticos e britânicos – e pelos franceses. Cerca de 1,5 milhão de ex-combatentes alemães voltavam a seu país, vindos de locais como França, Itália e Polônia. Por todo o continente, havia ainda 2,5 milhões de prisioneiros: soldados, oficiais, políticos e colaboradores nazistas, entre os quais estavam responsáveis por um conflito que causou pelo menos 40 milhões de mortes e pelo extermínio de cerca de 6 milhões de judeus, 2 milhões de eslavos e outros 200 mil civis (como ciganos e testemunhas de Jeová).

Quando cessaram os tiros, um objetivo dominou os vencedores: punir os perdedores. “A punição de criminosos de guerra não se trata de vingança”, afirmou o historiador britânico Eric Hobsbawm no livro Era dos Extremos. “Trata-se de trazer de volta a ordem e a normalidade, restabelecendo a confiança dos povos nos organismos legalmente constituídos.” Segundo Hobsbawm, esse processo de “desnazificação da Europa” não pretendia condenar milhares, mas “punir aqueles que servissem de exemplo”.

Logo se percebeu que separar quem era culpado de quem era muito culpado seria um desafio enorme. Cerca de 40 mil funcionários públicos americanos, franceses e britânicos foram convocados: um exército de escrivães, advogados e juízes. Só na zona americana, foram instauradas 545 cortes civis para analisar 900 mil casos.

Menos de seis meses depois da queda de Hitler, os vitoriosos já estavam prontos para acusar e julgar os maiores culpados. Entre 20 de novembro de 1945 e 1º de outubro do ano seguinte, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg decretou 11 condenações à morte, três prisões perpétuas, duas sentenças de 20 anos de prisão, uma de 15 e outra de dez anos. Três acusados foram absolvidos. E pronto. Nos dois anos que se seguiram ao julgamento, 1 milhão de alemães deixaram o país legalmente. Estima-se que outros 100 mil o fizeram de forma ilegal. Entre eles estavam criminosos, carrascos e assassinos. Muitos ficaram impunes para sempre. Quem? Como? Você vai ver a seguir.

FUGA EM MASSA

Já era noite de 26 de junho de 1945 quando uma patrulha do Exército americano avistou um homem andando numa estrada de terra entre Stuttgart e Ulm, no sul da Alemanha. Detido e interrogado, disse ser Adolf Barth, cabo da Força Aérea alemã. Foi preso. Nos meses seguintes, foi transferido de campo seis vezes e, em cada um deles, apresentou-se com um nome diferente. No início de 1946, conseguiu escapar, atravessou o país e se estabeleceu na zona rural de Eversen, onde viveu isolado. Seu verdadeiro nome era Adolf Eichmann. Ex-coronel da tropa de elite SS e chefe da Gestapo (a polícia secreta de Hitler), ele foi um dos mentores da “solução final”, a operação que pretendia exterminar os judeus da Europa.

Em 1950, quando as coisas esfriaram, Eichmann decidiu deixar a Alemanha e foi para a Itália. Lá, em 14 de junho, o consulado argentino em Gênova lhe concedeu visto de imigração em um passaporte com o nome de Ricardo Klement. Comprou uma passagem no navio Giovanna C e, um mês depois, desembarcou em Buenos Aires. Arrumou emprego e levou a família para lá. Seqüestrado por espiões israelenses, foi levado a Telavive, onde foi condenado e executado em 1962.

O senso comum sugere que, antes do fim da guerra, líderes nazistas já tinham planos secretos para salvar a própria pele. Uma dessas rotas de fuga ficaria famosa com o livro O Dossiê Odessa, do britânico Frederick Forsyth. Apesar de ser um romance, baseou-se numa organização real chamada Odessa (sigla em alemão para “Organização de Ex-membros da SS”). Entretanto, pesquisas recentes mostram que esse tipo de iniciativa foi responsável por poucas fugas. “Governos nacionais e instituições completamente legais livraram a cara de muito mais nazistas que organizações secretas”, diz Jorge Camarasa, historiador argentino, autor de Odessa al Sur (“Odessa do Sul”, inédito no Brasil).

A rota que Eichmann usou para deixar a Europa, por exemplo, era coordenada pelo bispo austríaco Alois Hudal, reitor de um seminário para padres alemães e austríacos em Roma. Nazista professo, ele foi nomeado pelo Vaticano para visitar os prisioneiros de guerra detidos na Itália. Segundo Camarasa, Hudal usou sua posição para dar fuga a criminosos nazistas procurados. No início, o bispo conseguia documentos falsos para que os prisioneiros fossem libertados e depois os ajudava a se esconder, geralmente no interior da Itália. Quando autoridades começaram a desconfiar do esquema, Hudal percebeu que precisava tirar seus protegidos da Europa. Recorreu a identificações falsas emitidas pela Comissão de Refugiados do Vaticano. “Esses papéis não serviam como passaportes, mas era com eles que os fugitivos adquiriam nova identidade e, assim, conseguiam auxílio junto à Cruz Vermelha, que, por sua vez, era usada para conseguir vistos”, afirma o jornalista australiano Mark Aarons, co-autor de Unholy Trinity (“Trindade profana”, sem versão em português). “Em teoria, a Cruz Vermelha deveria checar os registros de quem solicitava vistos de saída, mas na prática a palavra de um padre ou, principalmente, de um bispo era suficiente.”

A maior rota de fuga de nazistas, porém, foi criada por uma rede de padres liderada pelo bispo croata Krunoslav Draganovic. “A organização fixou seu quartel-general no Seminário de São Girolamo, em Roma. Inicialmente, seu foco era tirar dos territórios ocupados pelos soviéticos os membros do partido nazista croata”, afirma Uki Goñi, historiador argentino, autor de A Verdadeira Odessa. “Com o tempo, a rota de Draganovic tornou-se a principal via de fuga dos criminosos nazistas, tirando mais de 5 mil deles da Europa.”

AMÉRICA LATINA

Entre os picos nevados de Bariloche, nos Andes argentinos, um imigrante alemão levou uma vida pacata por quase 50 anos. Dono de uma confeitaria chamada Viena, don Erico morava com a mulher, Alice, no segundo e último andar de um prédio na praça Belgrano, alugando o primeiro pavimento para um orfanato. A dois quarteirões dali, um certo Juan Maler ergueu o hotel Campana, onde vivia, escrevendo livros de pregação nazista. Em 1994, a rede de TV americana ABC descobriu que Maler era Reinhard Kops, ex-capitão da SS. Desmascarado diante das câmeras, Kops dedurou: “Por que correm atrás de mim, se o pior dos nazistas da Argentina vive aqui ao lado?” Don Erico, o simpático confeiteiro, era Erich Priebke, ex-capitão da Gestapo e co-autor de um massacre de 330 civis italianos em Roma, em 1944.

Acusar o vizinho deu certo para Kops, que se escondeu no Chile. Ele nunca foi julgado e, dois anos depois, retornou a Bariloche, onde publicou textos hitleristas até sua morte, em 2001. Já Priebke, após uma batalha judicial de 17 meses, foi extraditado para a Itália. Lá, foi condenado por homicídio múltiplo, mas escapou da prisão perpétua – seu crime prescrevera em 1974, 30 anos depois de ser cometido. Ele foi solto, mas a Justiça italiana anulou o julgamento. Hoje, Priebke está em prisão domiciliar em Roma. Não há data para um novo julgamento. Com 94 anos, ele é o prisioneiro mais velho da Europa.

Para o argentino Uki Goñi, interesses econômicos e pressão da Igreja Católica e das comunidades de imigrantes podem explicar por que a América Latina se tornou o destino predileto dos nazistas. “Meu país tem uma peculiaridade, por ter feito um esforço dirigido – ou iniciado – pelo presidente Juan Perón para trazer esses criminosos de guerra”, afirma Goñi. As razões de Perón, segundo ele, incluíam gratidão (os nazistas o ajudaram entre 1943 e 1945) e simpatia pelos ideais fascistas.

O primeiro passo para contrabandear nazistas da Europa para a Argentina, de acordo com Goñi, foi dado em janeiro de 1946, quando Antonio Caggiano, bispo de Rosário, foi a Roma para ser ordenado cardeal. Lá, segundo arquivos diplomáticos argentinos, ele transmitiu ao cardeal francês Eugéne Tisserant a mensagem de que “o governo da República da Argentina está disposto a receber cidadãos franceses, cuja atitude política durante a recente guerra pode tê-los exposto a medidas cruéis e retaliações”. Nos meses seguintes, entre 300 e 500 colaboracionistas franceses foram para a Argentina com passaportes fornecidos pela Cruz Vermelha em Roma.

Outro fator que engrossou o número de nazistas na América Latina foi o uso de criminosos de guerra como informantes e espiões na Guerra Fria (por britânicos e americanos de um lado e soviéticos de outro). Muitos deles foram salvos da prisão e encaminhados ao Cone Sul. Foi o caso de Klaus Barbie, ex-diretor da Gestapo, que ordenou, na França, a execução de civis e o envio de crianças para Auschwitz. Em 1947, ele se tornou agente do serviço secreto americano e, depois, acabou fugindo para a Bolívia. Descoberto em 1971, só foi deportado em 1983. Quatro anos depois, foi condenado na França pela morte de 177 pessoas. Morreu de leucemia em 1991, numa prisão de Lyon.

PORTO SEGURO

No Brasil, a presença de criminosos nazistas também foi grande. O caso mais famoso foi o do médico Josef Mengele, que usava humanos como cobaias de suas experiências macabras em Auschwitz (ele morreu impune, afogado após uma bebedeira em Bertioga, no litoral paulista, em 1979). O envolvimento das autoridades brasileiras na entrada de criminosos de guerra é um assunto polêmico. Mas chovem indícios de que os nazistas contaram com boa vontade para entrar no país. Nos mais de 20 mil documentos dos arquivos da antiga Delegacia de Ordem Política e Social (Deops) liberados pelo governo federal em 1997, há cartas trocadas entre as representações brasileiras em Roma e Berlim que mostram como nossa diplomacia fechou os olhos para o passado nazista de empresários, engenheiros e ex-militares – que eram encorajados a declarar falsos nomes e profissões ao vir para cá.

Especialistas levantam a hipótese de que o próprio presidente Eurico Gaspar Dutra, que assumiu em 1946, sabia do que se passava. Para Marionilde Brephol Magalhães, historiadora da Universidade Federal do Paraná e autora de Pangermanismo e Nazismo – A Trajetória Alemã Rumo ao Brasil, além da simpatia que setores do governo e do meio militar tinham pelos nazistas, Dutra acreditava que técnicos e cientistas alemães poderiam ajudar na industrialização do país.

Um problema ainda maior que a falta de controle na entrada teria sido a falta de disposição para prender e extraditar os criminosos descobertos por aqui. A tolerância do governo brasileiro logo ficou conhecida e intensificou a vinda de nazistas. Alguns nem se deram ao trabalho de mudar de nome, como Franz Stangl. Comandante dos campos de extermínio de Sobibor e Treblinka, na Polônia, ele chegou a ser preso na Áustria em 1945, mas conseguiu escapar para a Síria, onde reuniu-se à esposa e aos filhos. Segundo registros da Deops, desembarcou no Brasil em 1951 e, tempos depois, conseguiu emprego numa fábrica da Volkswagen, em São Paulo.

Stangl só foi preso em 1967, após denúncia do “caçador de nazistas” Simon Wiesenthal (veja quadro na pág. 28). Levado para a então Alemanha Ocidental, foi julgado pela morte de 900 mil pessoas – fato que admitiu à jornalista de origem húngara Gitta Sereny, em depoimento publicado no livro Into the Darkness (“Nas Trevas”, inédito no Brasil). “Minha consciência está limpa. Eu só estava fazendo meu dever”, disse. Condenado à prisão perpétua em outubro de 1970, Stangl morreu de ataque do coração oito meses depois, numa prisão de Dusseldorf.

Outro que ostentou o próprio nome no Brasil foi o austríaco Gustav Wagner, um dos responsáveis pelo campo de extermínio de Sobibor. Enquanto era condenado à morte pelo Tribunal de Nuremberg, o fugitivo Wagner trabalhava como operário em Graz, na Áustria. Ali encontrou o ex-colega Stangl e com ele escapou para a Síria. Chegou a São Paulo com passaporte suíço em 12 de abril de 1950 e foi morar em um sítio em Atibaia, São Paulo, onde fez um chalé no estilo da Bavária. Chamado de “seu Gustavo” pelos vizinhos, foi detido em maio de 1978, ao se apresentar na Deops para desmentir uma reportagem em que era acusado de participar de uma festa em homenagem a Hitler.

Por sua idade avançada, Wagner foi transferido para uma clínica e depois mandado para casa. As autoridades brasileiras já haviam recusado pedidos de extradição feitos por Israel, Áustria e Polônia quando, em 18 de junho de 1979, a rede de TV britânica BBC levou ao ar uma entrevista com Wagner. “Eu não guardo nenhum sentimento daqueles dias (...). À noite, nós nunca discutíamos nosso trabalho, só bebíamos e jogávamos cartas”, disse. Quatro dias depois, seu pedido de extradição para a Alemanha Ocidental também foi negado. Em outubro de 1980, Wagner foi achado morto com uma facada no peito. A polícia concluiu que ele se matou.

A lista não acaba aí. Acusado de participar da morte de 30 mil judeus em Riga, na Letônia, o capitão-aviador Herbert Cukurs fugiu para a França, onde obteve visto para vir ao Brasil em 1946. No Rio de Janeiro, ele trabalhou na Fábrica Brasileira de Aviões. Logo depois montou um negócio, alugando pedalinhos na praia de Icaraí, em Niterói. Em 1948, foi reconhecido. Sua casa foi pichada e seu nome saiu nos jornais, mas ele nunca foi preso. Na década de 1950, mudou-se com a família para Santos e depois para São Paulo.

Em 1960, Cukurs tentou se naturalizar. Foi quando a polícia paulista tomou seu único depoimento, em 6 de junho. No dia 7, os policiais ouviram Frida Schmuskovits, sobrevivente dos campos de extermínio da Letônia. Sobre os massacres de judeus, ela relatou que “a matança era feita por ordem de Herbert Cukurs”. Com a naturalização negada, Cukurs foi para Montevidéu em 1965, ao lado de um amigo que ele conhecera um ano antes e se apresentava como o austríaco Anton Kunzle. Dois dias após chegar ao Uruguai, Cukurs foi encontrado numa mala. Tinha marcas de tiros e a cabeça destruída a marteladas. Num comunicado à imprensa, um grupo autodenominado “Aqueles que Não Esquecem” assumiu o assassinato.

ÚLTIMA CHANCE

Chovia pouco em Viena, na manhã de 16 de dezembro de 2005, quando alguns familiares viram o corpo de Heinrich Gross, morto na véspera, aos 91 anos, ser baixado ao túmulo. Psiquiatra e neurologista de renome, Gross ocupava, desde 1962, uma cadeira na Academia Austríaca de Ciência. Mas é outra parte de sua biografia que nos interessa. Entre 1940 e 1945, o doutor Gross dirigiu o programa nazista de pesquisas de eugenia baseado em Viena. Em sua clínica, ele coordenou experimentos médicos e farmacológicos que vitimaram mais de 700 crianças. Após a guerra, Gross desapareceu. Ressurgiu seis anos depois, em Viena, como professor. Em 1956, foi nomeado perito da Justiça para avaliar criminosos com problemas mentais. Só em 1994 acadêmicos da Universidade de Viena perceberam que o simpático velhinho e o cruel cientista eram a mesma pessoa.

Apesar das tentativas de levar Gross aos tribunais, ele nunca foi preso – houve pouca movimentação por parte de promotores e juízes, com quem tantas vezes ele havia trabalhado. Em 2002, quando foi enfim convocado por uma corte vienense, Gross, aos 89 anos, mostrou-se senil e, segundo seu advogado, não conseguia entender o interrogatório. O médico foi declarado inapto para ser julgado e saiu pela porta da frente do prédio, caminhando com uma bengala. Viveu em paz até morrer.

Gross se enquadra num grupo de nazistas que nunca fugiu, mas desapareceu nos desvãos da burocracia. Há quem aceite o esquecimento. Não é o caso do Centro Simon Wiesenthal (CSW), que desde 1977 reúne informações sobre nazistas. “Genocídio e assassinato em massa nunca prescrevem”, afirma o israelense Efraim Zuroff, diretor do CSW em Jerusalém. Segundo o último relatório da entidade, de 2006, 458 pessoas estão sendo investigadas por crimes de guerra e, de janeiro de 2001 a dezembro de 2006, 41 nazistas foram condenados no mundo. Segundo Zuroff, outros poderiam ir a julgamento se houvesse mais empenho dos países que os abrigam. “O mais difícil não é encontrar os criminosos, mas levá-los a julgamento.”

O nome mais recente entrou na lista da CSW em julho de 2006. Num evento social, um sujeito não parava de se gabar de seu papel na deportação de judeus para Auschwitz. Um jovem anotou seu nome e procurou o CSW. “Descobrimos que era Sandor Kepiro, húngaro condenado pela morte de mais de 1200 civis em janeiro de 1942, na cidade de Novi Sad, então parte da Hungria, atualmente na Sérvia”, conta Zuroff. Aos 93 anos, Kepiro mora em Budapeste e aguarda a Justiça determinar se ele terá de cumprir a pena de 14 anos de prisão que recebeu em 1948.

Entre os nazistas ainda foragidos, o mais eminente é o médico austríaco Aribert Heim, que serviu em três campos de extermínio, Sachsenhausen, Buchenwald e Mauthausen, onde centenas de pessoas foram mortas com injeções de fenol no coração. “Heim foi preso pelos americanos na Bélgica em março de 1945, mas foi solto dois anos depois”, diz Zuroff. Livre, Heim voltou à medicina e, em 1962, foi processado na Alemanha Ocidental. Enquanto aguardava julgamento, fugiu. Desde então, foi visto na Argentina, Egito, Uruguai e Espanha. Era dado como morto até que, três anos atrás, a polícia alemã descobriu uma conta bancária em nome de Heim com mais de 1 milhão de euros. O fato de seus filhos nunca terem sacado o dinheiro levou as autoridades a concluir que ele ainda está vivo. Uma força-tarefa foi montada para encontrá-lo. Seu paradeiro, no entanto, permanece um mistério.



Más companhias
Os americanos usaram ex-nazistas como arma na Guerra Fria
Dois anos antes de Adolf Eichmann ser achado na Argentina, em 1960, os americanos já sabiam seu paradeiro, incluindo o nome que ele usava: Ricardo Klement. Quem afirma isso é Timothy Naftali, da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos. O historiador é um dos quatro membros do Grupo de Trabalho sobre Crimes de Guerra Nazistas, encarregado pelo governo americano de examinar arquivos liberados pela CIA desde 2004 – são 27 mil páginas sobre a atuação da central de inteligência no pós-guerra. Segundo Naftali, os Estados Unidos esconderam a identidade de ex-nazistas e os usaram como espiões contra a antiga União Soviética. “A CIA e o governo da antiga Alemanha Ocidental cooperaram para encobrir o paradeiro de Eichmann.” Americanos e alemães achavam que, se descoberto, Eichmann comprometeria Hans Globke, chefe da Casa Civil do então primeiro-ministro da Alemanha, Konrad Adenauer. Como Eichmann, Globke pertencera ao alto escalão nazista – fora um dos criadores das chamadas Leis de Nuremberg (que, entre outras coisas, cassaram direitos civis dos judeus alemães nos anos 30). Os documentos revelados mostram ainda que, depois da execução de Eichmann, em 1962, a CIA pressionou a revista americana Life, que detinha os direitos de publicação das memórias do nazista, para que ela omitisse o nome de Globke da narrativa. O conselheiro acabou deixando o governo alemão em 1963.

A ampla rede de ex-nazistas a serviço dos Estados Unidos era liderada pelo major-general Reinhard Gehlen, ex-chefe da espionagem de Hitler na frente oriental. Em 1956, essa rede se tornou o núcleo da Bundesnachrichtendienst (conhecida, graças a Deus, pela sigla BND), o serviço de espiões da Alemanha Ocidental. Gehlen dirigiu a BND até 1968 e morreu do coração em 1979, em Bonn. Nunca foi acusado de crime algum. “Após o fim dos julgamentos de desnazificação, era política dos Estados Unidos deixar a perseguição aos criminosos para os alemães ocidentais. Mas esses não mostraram nenhum interesse em fazê-lo”, diz Elizabeth Holtzman, ex-deputada americana e também membro do grupo que analisa os documentos. “Os arquivos nos forçaram a enfrentar não somente os prejuízos morais, mas também os prejuízos práticos que tivemos ao confiar serviços de inteligência a ex-nazistas.”


"Justiça, não vingança"
Simon Wiesenthal dedicou sua vida a caçar nazistas
Quando morreu, em setembro de 2005, em Viena, Simon Wiesenthal tinha 96 anos. Boa parte deles fora gasta repetindo a frase acima. Ele a usava para justificar sua incansável perseguição a criminosos nazistas. Judeu, Wiesenthal nasceu no então Império Austro-Húngaro e foi preso em 1941, durante a ocupação nazista da Polônia. Após ter sobrevivido a 12 campos de concentração, foi libertado por tropas americanas no campo austríaco de Mauthausen. Na época, com 1,82 metro, pesava 45 quilos. “A força para sobreviver veio da decisão de cobrar a punição dos responsáveis pelo Holocausto”, costumava dizer ele. Essa tarefa, cumprida por décadas, tornou-o alvo de diversos atentados e ameaças de morte.

Wiesenthal começou com uma lista de 91 nomes de criminosos de que ele próprio tinha conhecimento. Ela foi crescendo com depoimentos e denúncias de sobreviventes de campos de concentração que, logo após a guerra, estavam espalhados por acampamentos na Áustria, Alemanha e Itália. Wiesenthal foi o primeiro a aplicar sistematicamente o método da história oral nas pesquisas sobre o Holocausto, e fundou um centro judaico de documentação. No livro Justiça, Não Vingança, publicado em 1988, Wiesenthal contabilizou ter contribuído para a investigação de 6 mil casos e para a punição de 1100 criminosos nazistas.


De Nuremberg a Bagdá
Como chefes de Estado têm sido julgados por seus atos
Criado em agosto de 2004, o Tribunal de Criminosos de Guerra Iraquianos foi instituído para julgar crimes cometidos desde a tomada do poder pelo partido Baath, em julho de 1968, até a derrubada do regime de Saddam Hussein, em maio de 2003. No fim do ano passado, numa decisão anunciada por Abdel Asis el Hakim, chefe do Conselho de Governo e histórico opositor de Saddam, o ex-presidente do Iraque foi condenado à morte e executado. Países como Brasil, Rússia e França reagiram negativamente à pena capital, com o argumento de que se deveria evitar a “justiça dos vencedores”. Ou seja, temia-se que não houvesse justiça, mas vingança.

O primeiro chefe de Estado a ser julgado por crimes de guerra deveria ter sido Adolf Hitler. Isso se ele não tivesse se matado dias antes do fim da guerra. “Não se pode culpar um país, mas deve-se responsabilizar seus líderes. Aqueles que lideraram o destino de milhões devem responder pelos seus atos”, dizia o documento de abertura do tribunal de Nuremberg, em 1945.

Embora o direito militar tenha contornos definitivos desde a Convenção de Genebra, de 1949, só após o fim da Guerra Fria a Organização das Nações Unidas (ONU) pôde ressuscitar as cortes internacionais para julgar crimes de guerra e contra a humanidade. E o primeiro réu levado a julgamento, em 2002, foi Slobodan Milosevic, ex-presidente da Sérvia e da antiga Iugoslávia, cujas tropas foram acusadas de atrocidades na província de Kosovo e na Bósnia. O Tribunal Internacional estabelecido em Haia, na Holanda, teve juízes de várias nacionalidades – mas nem assim escapou das polêmicas. Milosevic foi levado a Haia sem que a Sérvia aprovasse a extradição, o que feriu o direito internacional. Seu julgamento não chegou ao fim: em 11 de março de 2006, ele apareceu morto em sua cela, vítima de problemas cardíacos. Outro ex-chefe de governo julgado numa corte da ONU – o Tribunal Internacional de Arusha, na Tanzânia – foi o ex-primeiro-ministro de Ruanda, Jean Kambanda, que está preso. Em 1998, ele admitiu a culpa pela morte de milhões de pessoas em seu país, quatro anos antes. Atualmente, em Serra Leoa, um tribunal especial criado em 2002 está julgando o ex-presidente da Libéria, Charles Taylor, acusado de crimes durante a guerra civil naquele país.


Saiba mais
LIVROS

Odessa al Sur, Jorge A. Camarasa, Planeta, 1995

Um retrato preciso de como centenas de nazistas se refugiaram na Argentina após a guerra.

A Verdadeira Odessa, Uki Goñi, Record, 2004

Conta como a Cruz Vermelha e o Vaticano participaram de um esquema para levar criminosos de guerra à Argentina.

DVD

Auschwitz: A Fábrica da Morte do Império Nazista, (volumes 1 e 2), vários diretores, 2007

Produção britânica lançada por História, é um dos mais completos retratos já feitos sobre o campo de concentração.

Revista Aventuras na Historia

Luc Ferry e a crise econômica

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Folha de São Paulo, segunda-feira, 27 de julho de 2009



ENTREVISTA DA 2ª - LUC FERRY

"Crise mostra impotência pública atual de políticos"
Para pensador francês, globalização gerou "desapropriação democrática"

A CRISE ECONÔMICA mostra que os dirigentes políticos sofreram nos últimos anos uma "desapropriação democrática" gerada pela globalização, e por isso estão hoje relegados à condição de "impotência pública".
A opinião é de um dos maiores pensadores europeus, o filósofo e intelectual francês Luc Ferry, que fala com a autoridade de quem atuou tanto na esfera acadêmica como no setor privado e no governo.
Antes de chefiar um grupo de reflexão socioeconômica no governo do presidente Nicolas Sarkozy, deu aulas na prestigiosa École Normale Supérieure, foi consultor de multinacional e ministro da Educação entre 2002 e 2004, no governo Jacques Chirac.

SAMY ADGHIRNI
DA REPORTAGEM LOCAL

Em entrevista à Folha por e-mail, Luc Ferry previu um fortalecimento das instâncias de governo e traçou semelhanças entre o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seu colega francês, Nicolas Sarkozy, e o primeiro-ministro italiano, Silvio Berlusconi. O filósofo também rebateu críticas de que teria se alienado ao vestir a camisa de um governo.






FOLHA - O sr. crê que a globalização mudou a maneira de governar e de fazer política?
LUC FERRY - Sim. No universo globalizado em que estamos mergulhados, as ferramentas tradicionais das políticas nacionais se tornam cada dia menos relevantes. O maior fenômeno desta virada de século é a impotência pública, o fato de nossos políticos terem perdido praticamente todo o poder diante de um desenvolvimento globalizado que lhes escapa por toda parte. É o grande problema da política moderna: a questão hoje não é mais somente o que fazer, mas principalmente como recuperar o controle, como recuperar um pouco de poder e de margem de manobra. É o que eu chamo de desapropriação democrática. Há 50 anos essas interrogações não existiam, e as políticas funcionavam num plano essencialmente nacional.

FOLHA - O sr. acredita que as instâncias de governo sairão fortalecidas da atual crise econômica global?
FERRY - Sim, claro. Isso será necessário para resolver o problema duplo levantado pela crise. Primeiro: como reatar com um crescimento acarretado pela riqueza verdadeira, e não pelo endividamento. Segundo: como recuperar o controle sobre um mundo globalizado que nos escapa por todos os lados, tanto no plano econômico como no ecológico. É esse o grande desafio do G20 [grupo das 20 maiores economias do mundo], e é por isso que o grupo tem um longo caminho pela frente.

FOLHA - A crise revelou alguma falha estrutural no funcionamento das sociedades modernas?
FERRY - Antes de mais nada, é preciso refletir sobre a natureza da crise, pois há muita besteira sendo contada por aí. Ao contrário do que se diz, não se trata de uma crise financeira, mas de uma crise econômica no sentido tradicional. A visão ingênua pela qual existem uma "boa economia", a economia "real" e uma economia "ruim", a economia especulativa, não resiste à análise. Os países ocidentais mais industrializados, os Estados Unidos particularmente, conheceram nos anos 90 uma forte bipolarização do mundo do trabalho. Nessa época, criou-se um cenário onde havia, de um lado, trabalhadores altamente qualificados e bem-remunerados e, do outro, uma massa de trabalhadores mal paga por ser menos qualificada. Ou seja, a globalização fez as classes médias minguarem. O problema é que eram elas que geravam o crescimento e que mais consumiam. Foi nesse cenário que surgiu nos EUA o recurso ao endividamento maciço dos lares mais populosos e menos ricos, os famosos "subprimes". A partir daí não foram mais os salários das classes médias que geraram crescimento, mas o endividamento dos pobres. Em outras palavras, a riqueza passou a ser aumentada não mais a partir da riqueza em si, mas a partir de dívidas! E assim multiplicaram-se nos EUA, nos últimos 15 anos, sistemas de empréstimo de alto risco. Foi no contexto dessa nova lógica econômica que a crise financeira veio se inserir. Demorou até os créditos de risco serem transformados em títulos que acabaram espalhados por bancos do mundo todo e viraram, com o apoio das agências de classificação de risco, produtos financeiros de difícil leitura. É evidente que esse processo só aconteceu graças à cumplicidade de banqueiros, incluindo o banco central americano, que sabia muito bem o que estava acontecendo. Mas o importante é que o mundo financeiro, por mais culpado seja, não está na raiz da crise, que é antes de mais nada uma crise da economia real. O que é evidentemente bem mais grave...

FOLHA - Como o sr. explica o fato de Lula, mesmo após dois mandatos repletos de denúncias contra seu partido e seus aliados, ainda ter popularidade tão alta?
FERRY - Pode se dizer a mesma coisa de [Silvio] Berlusconi na Itália ou de [Nicolas] Sarkozy na França. Boa parte da imprensa os vive criticando, e mesmo assim ganham eleições. De onde vem essa defasagem entre a população e a imprensa? A mídia, na sua essência, precisa ser crítica. Como se diz na França, não se pode escrever uma boa matéria para falar dos trens que chegam na hora. Esse é, de fato, o papel da mídia, mas isso pode acabar a distanciando do povo. A população não tem a obrigação de sempre criticar e, paradoxalmente, às vezes entende melhor que os observadores profissionais a dificuldade de ser político.

FOLHA - O que o sr. acha dos presidentes Sarkozy e Barack Obama, que divulgam abertamente sua vida privada?
FERRY - É antes de mais nada um bom tema de reflexão para os jornalistas. Afinal de contas, são eles que correm atrás dos furos relacionados à vida privada dos políticos. O público adora e dá audiência, só isso.

FOLHA - Como o sr. avalia a onda de esperança global gerada pela chegada ao poder de Obama?
FERRY - Há 50 anos, Obama nem sequer teria sido aceito em uma universidade em seu país. E hoje ele é presidente. É normal que essa mudança absoluta exerça um fascínio, não? A esperança é formidável, éramos milhões a contar os dias para a saída de [George W.] Bush. Afinal, Obama vem de uma família de muçulmanos, o que significa que ele pode melhor do que ninguém ajudar a evitar o famoso conflito de civilizações, principal ameaça que pesa sobre o século 21.

FOLHA - O debate sobre a burca [véu muçulmano que cobre inteiramente o corpo da mulher] na França traz à tona a questão do relativismo cultural: impor um modo de pensar como sendo melhor que outro não contribui para acirrar o choque de civilizações previsto por Samuel Huntington?
FERRY - Muita gente atribui um monte de besteiras a Samuel Huntington sem ter lido seu livro ("O Choque das Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial"), que na verdade é ótimo. Em primeiro lugar, ele nunca estimulou o choque de civilizações, muito pelo contrário. Ele sempre recomendou que o governo americano praticasse o diálogo e a moderação diante do islã. Huntington inclusive se opôs à Guerra do Iraque. Mas é fato que existe, sim, um verdadeiro choque com o islã radical, e a burca, ao contrário de uma opinião comum totalmente errada, não tem nada de símbolo religioso. Ela não consta em lugar nenhum na lista das obrigações determinadas pela religião muçulmana às mulheres. A burca é um sinal de vínculo ao fundamentalismo. Ela significa que as mulheres não devem ter lugar na esfera pública e que elas devem ficar em casa. Se saírem, elas têm de se dissimular. Devemos aceitar essa concepção do lugar da mulher? Respondo tranquilamente não, cem vezes não. E eu não digo isso porque defendo uma tradição cultural ocidental, mas porque penso que as mulheres simplesmente fazem parte da humanidade. Nesse tema, o relativismo é sempre cúmplice dos totalitarismos.

FOLHA - Um filósofo que, como o senhor, se associa a um governo não acaba perdendo sua liberdade de pensar e falar?
FERRY - Enquanto se é membro de um governo, é preciso ater-se ao princípio de solidariedade, o que obviamente ofusca a liberdade de expressão. Mas ninguém é obrigado a entrar num governo, nem a ficar nele. Nada impede de ir embora, mas quando se decide permanecer, é preciso ser coerente com seu compromisso.
Muitos pensadores franceses, inclusive alguns dos maiores, como [Alexis de] Tocqueville, [André] Malraux e Victor Hugo encararam esse desafio inerente à vida política. Por quê? Simplesmente porque aquele que não se compromete pode se gabar de ter mãos puras, mas na verdade ele não tem mãos. Tenho paixão por filosofia, é sem sombra de dúvida a vocação da minha vida.
Mas eu não poderia ter passado a vida inteira como professor de universidade sem ter a curiosidade de observar de perto a realidade histórica e sem participar, ainda que modestamente, da construção da história. É apaixonante, e aprende-se muito sobre a realidade, da qual o filósofo jamais deve se afastar.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Por uma nova arquitetura global

Folha de S. Paulo

24/07/2009

Flávia Piovesan
TENDÊNCIAS/DEBATES


O S PAÍSES ricos decidiram expandir a cúpula do G8 (EUA, Japão, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Rússia) para incluir as economias emergentes, transformando-o em G14 (com a adição de Brasil, Índia, China, África do Sul, México e Egito), com vistas a fortalecer a "governança global".
No dizer de Sarkozy: "Parece pouco razoável tratar das mais importantes questões internacionais sem a África, a América Latina e a China". Para Obama, é inadmissível enfrentar os desafios globais "sem a representação adequada de continentes inteiros como a África e a América Latina nos fóruns internacionais". Atualmente, cerca de 80% da população mundial vive em países em desenvolvimento. Dois deles -Índia e China- totalizam quase um um terço da população mundial.
Contudo, os 15% mais ricos concentram 85% da renda mundial, enquanto os 85% mais pobres detêm apenas 15%, sendo a pobreza a principal causa mortis do mundo. O próprio FMI, na voz de Michel Camdessus, já advertiu que "a pobreza é uma ameaça sistêmica fundamental à estabilidade em um mundo que se globaliza".
Instaura-se um círculo vicioso em que a desigualdade econômica fomenta a desigualdade política no exercício do poder no plano internacional e vice-versa. Atente-se para o fato de que 48% do poder de voto no FMI concentra-se em sete Estados (EUA, Japão, França, Reino Unido, Arábia Saudita, China e Rússia) e, no Banco Mundial, 46% do poder de voto concentra-se nesses mesmos Estados.
Há que fortalecer a democratização, a transparência e a "accountability" dessas instituições, ecoando a voz dos países em desenvolvimento. Esse mesmo imperativo é lançado à ONU, criada em 1945, na geopolítica do pós-guerra, da qual participavam em média 60 Estados -hoje a ordem internacional conta com quase 200.
Daí a necessidade de revitalizar o papel das Nações Unidas e assegurar aos seus órgãos (principalmente ao Conselho de Segurança) maiores legitimidade e representatividade.
Além de ter de assegurar espaços decisórios mais democráticos, a agenda internacional enfrenta um desafio central: garantir o direito ao desenvolvimento, em sua dimensão nacional e internacional, o que envolve: a) a proteção às necessidades básicas de justiça social; b) o componente democrático na formulação e implementação de políticas públicas; e c) a adoção de políticas nacionais, bem como de cooperação internacional.
Observa Thomas Pogge que, "em 2000, os países ricos gastaram cerca de US$ 4,650 bilhões em assistência ao desenvolvimento aos países pobres. Contudo, venderam aos países em desenvolvimento aproximadamente US$ 25,438 bilhões em armamentos -o que representa 69% do total do comércio internacional de armas. Os maiores vendedores de armas são: EUA (com mais de 50% das vendas), Rússia, França, Alemanha e Reino Unido".
No mesmo sentido, afirma Amartya Sen: "Os principais vendedores de armamentos no mercado global são os países do G8, responsáveis por 84% da venda de armas no período de 1998 a 2003. (...) Os EUA, sozinhos, foram responsáveis pela venda de metade das armas comercializadas no mercado global, e dois terços dessas exportações foram direcionadas aos países em desenvolvimento".
Esses desafios se inserem em um momento estratégico, marcado não apenas pela reinvenção da arquitetura internacional mas também por uma política renovada no campo das relações internacionais por parte da única superpotência mundial.
Se a era Bush adotou como vértice uma política internacional guiada pelo unilateralismo extremo, pelo direito da força e pelo "hard power", a era Obama aponta a uma política internacional guiada pelo "clever power", a propiciar o multilateralismo e o diálogo intercultural, transitando da ideia do "choque civilizatório" para a ideia do "diálogo civilizatório".
Desenvolvimento, segurança, democracia e direitos humanos são termos inderdependentes e inter-relacionados. Em uma arena cada vez mais complexa, fundamental é avançar na afirmação da justiça global nos campos social, econômico e político, a compor uma nova arquitetura capaz de responder aos desafios da agenda contemporânea, da nova dinâmica de poder no âmbito internacional e da necessária transformação das organizações internacionais, em um crescente quadro de responsabilidades compartilhadas.

FLÁVIA PIOVESAN, 40, doutora em direito constitucional e direitos humanos e professora dos programas de pós-graduação da PUC-SP e da PUC-PR, é procuradora do Estado de São Paulo e membro da Força Tarefa da ONU (UN high level task force) para a Implementação do Direito ao Desenvolvimento.

Uma tragédia: o destino violento do jovem brasileiro

Valor Econômico

24/07/2009

A extensão será a de um genocídio: terão sido assassinados no Brasil 33.504 jovens de 12 a 18 anos, no período de 2006 a 2012, persistindo as condições existentes em 2006. É uma estimativa desalentadora do Laboratório de Análise da Violência, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em estudo elaborado para o Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens, iniciativa do Observatório das Favelas, da Unicef e da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal.

O levantamento, feito nas 267 cidades brasileiras com mais de 100 mil habitantes, é um retrato da violência contra os jovens e de uma flagrante desigualdade social. Enquanto a mortalidade infantil declina, em resposta a programas de segurança alimentar e nutricional, saneamento básico, vacinação e atenção à saúde da família, aumenta o número de mortos entre crianças e adolescentes (de 12 a 18 anos) e jovens (de 19 a 29 anos). Na faixa de 12 a 18 anos, o foco do estudo da Uerj, o risco de ser morto é 12 vezes maior para os homens em relação às mulheres e mais do dobro dos negros em relação aos brancos. Do total de adolescentes e jovens mortos nessa faixa de idade, 45% o são por assassinato. Na média das 267 cidades pesquisadas, o risco de ser assassinado por armas de fogo é 3,2 maior do que ser morto por qualquer outro meio.

A subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança, Carmen Oliveira, em matéria no jornal "O Globo" na edição do dia 22, aponta três fatores como maiores responsáveis pela vitimização de jovens: dívidas de usuários de drogas com traficantes, exploração sexual das meninas e disputas territoriais entre gangues. Seja qual for a razão do assassinato, todavia, a história de violência se inicia na evasão escolar.

A violência produz, assim, um corte social e etário: uma criança pobre consegue romper a barreira da morte no nascimento e escapa de ser um dos 24,9 mortos por mil nascidos vivos (em números de 2006); consegue sobreviver até os cinco anos e não se inclui na estatística de 20 mortos por mil nascidos vivos e, a partir daí, figura como estatística em índices menores de letalidade. Aos 12 anos, no entanto, suas chances de morrer antes dos 19 aumentam de forma considerável, e começarão a declinar apenas quando completar 29 anos.

Surpreende no levantamento o fato de os maiores centros urbanos não figurarem no topo do índice desenvolvido, o Índice de Homicídios na Adolescência. O primeiro lugar em assassinatos de jovens é Foz do Iguaçu, onde têm morte violenta 9,7 em cada mil pessoas de 12 a 18 anos. Governador Valadares, em Minas Gerais, alcança a marca dos 8,5 jovens perdidos por assassinato e ocupa o segundo lugar no ranking. O Rio está em 21º lugar na lista, e São Paulo está na 151ª posição.

Ainda assim, no Rio, a dimensão do problema é grande: a capital ostenta um índice de 4,92 mortos por mil jovens de 12 a 18 anos e tem o maior número de vítimas em números absolutos, mais do que o dobro da média nacional do IHA, de 2,03 por mil. Segundo o estudo, contribuem para esse alto índice igualmente, e de forma definitiva, o tráfico de drogas e a violência policial. É uma situação em que o jovem fica encurralado entre a violência do crime e a violência oficial - e esta configura a única forma como o Estado chega a ele, por meio de ações policiais que podem também vitimá-lo.

São Paulo, surpreendentemente, tem um IHA abaixo da média: 1,42 por mil. Os especialistas afirmam que a baixa letalidade de jovens na capital paulista decorre da queda geral de homicídios no Estado, que acontece desde 2001.

A explosão de assassinatos de jovens, todavia, não ocorre de forma homogênea. Dos 267 municípios estudados, 34% têm o IHA inferior a um adolescente assassinado por mil. Os números saltam quando a cidade fica numa rota de tráfico de drogas, como é o caso de Governador Valadares, e onde existe um maior número de armas de fogo, principal instrumento dos assassinatos. Aí retorna-se à complexa situação do Rio de Janeiro: na média, os 23 municípios do Estado com mais de 100 mil habitantes têm uma taxa de risco de morte de armas 6,2 vezes maior que os demais meios para matar. Na média nacional, essa taxa é de 3,2.

Missão aponta violações dos direitos humanos

Correio Braziliense

24/07/2009

Rodrigo Craveiro

Entidades denunciam que golpistas cometeram execuções extrajudiciais
“Aparentemente, vemos uma calmaria por aqui. Mas pode vir uma noite em que eles entrarão em sua casa e o levarão.” As palavras da hondurenha Gabriela — ela não quis ser identificada, com medo de represálias — expressavam bem o clima em Tegucigalpa, às vésperas do anunciado retorno do presidente deposto Manuel Zelaya à capital. Também coincidiam com “graves violações” dos direitos humanos denunciadas ontem por 15 delegados da Federação Internacional de Direitos Humanos, do Centro pela Justiça e o Direito Internacional, entre outros organismos. “Nossa missão identificou a existência de graves violações aos direitos humanos ocorridas no país após o golpe de Estado”, afirmou Enrique Santiago, presidente da Federação de Associações de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos da Espanha.
Morador de Tegucigalpa, o empresário Armando Suárez F., de 39 anos, contou ao Correio, pela internet, que o presidente de fato, Roberto Micheletti, impôs um isolamento informativo e manipulador aos cidadãos, o que leva as pessoas a temerem a volta de Zelaya. “A guerra de tensão coletiva se soma a uma péssima energia sentida aqui. Essa tensão faz com que os moradores considerem que haverá uma batalha entre o bem e o mal”, alerta.
As violações denunciadas pela missão incluem execuções extrajudiciais durante o toque de recolher noturno, pressões sobre a imprensa não ligada ao governo de fato e “a suspensão dos direitos fundamentais dos hondurenhos”. As vítimas da violência citadas no informe incluem um jornalista, um político esquerdista, um sindicalista e um manifestante pró-Zelaya. Armando garantiu à reportagem que intelectuais, líderes ruralistas e sindicalistas foram capturados. “Alguns foram soltos, mas de outros nada se sabe”, disse.

Esforço
Numa última tentativa de pôr fim à crise, o presidente da Costa Rica, Oscar Arias, apresentou na noite de quarta-feira a Declaração de San José. No documento, ele propõe a formação de um “governo de unidade e reconciliação nacional” encabeçado pelo próprio Zelaya. Consultada pela reportagem, a economista Lesly Sánchez, de 32 anos, moradora de Tegucigalpa, opinou que não pode haver reconciliação nacional se Zelaya seguir com a ideia de instalar uma Assembleia Constituinte.
Até o fechamento desta edição, Zelaya preparava a volta ao país. Em entrevista concedida em Manágua, ele prometeu que cruzaria ainda hoje a fronteira desarmado. “Irei acompanhado de minha mulher e meus filhos”, disse. O temor de um banho de sangue era claro ontem. Com os policiais em greve, o Exército de Honduras começava a se concentrar na fronteira com a Nicarágua. A polícia nicaraguense reforçou sua presença na região e membros da chamada Resistência se dirigiam à área.
Em Brasília, o chanceler Celso Amorim defendeu o diálogo. “Não creio que os esforços não deram resultado, eles não foram esgotados, há coisas a fazer”, declarou. Ele lembrou que o Brasil sugeriu que países da região pressionem pelo retorno de Zelaya. “Os golpistas não têm futuro. Como instituição, não têm futuro. A questão é que eles compreendam isso logo, para evitar uma situação mais grave”, disse. “A comunidade internacional não será leniente se algo ocorrer com o presidente Zelaya.”
COLABOROU VIVIANE VAZ

“Não pode haver reconciliação se Manuel Zelaya seguir com a ideia de impor a Assembleia Constituinte. Pode haver reconciliação entre um povo diante da ingerência por parte de um governo estrangeiro? Somos soberanos e almejamos a paz. Nosso exército está preparado para garantir a segurança”
» LESLY SÁNCHEZ,
32, ECONOMISTA, VIVE EM TEGUCIGALPA

Arquivo Pessoal
“Meu país está dividido. Um dos graves problemas consiste no isolamento manipulador causado pelo governo de Roberto Micheletti. Isso se soma a uma péssima energia aqui. E faz com que os moradores considerem que haverá uma batalha entre o bem e o mal quando Manuel Zelaya retornar”
» ARMANDO SUÁREZ F.,
39, EMPRESÁRIO, VIVE EM TEGUCIGALPA.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

A firmeza necessária

Jornal do Brasil

22/07/2009

Coisas da Política

Mauro Santayana

Se a comunidade internacional se mantiver firme, como até agora, o retorno de Zelaya ao poder em Honduras poderá ser o fim de quase dois séculos de caudilhismo militar na América Latina. A mudança de postura dos países centrais, ao apoiarem a decisão da OEA e das Nações Unidas, é o grande fato novo e alentador deste novo século. Ao que parece, já não lhes interessa fomentar a violência política na América Latina, como ocorria até recentemente. Os novos desafios do mundo não admitem essas manobras sujas da geopolítica.

Os golpistas alegam que Zelaya violara a Constituição, ao aspirar à reeleição, mediante referendo popular. Admitindo-se que plebiscitos são controvertidos, pela sua natureza maniqueísta, e que sua convocação violava a carta política, caberia processo político regular contra o presidente. O usurpador Micheletti alega que o Poder Legislativo e a Suprema Corte aprovaram a destituição do presidente, mas só o fizeram depois do fato consumado. Zelaya poderia ter sofrido processo regular de impeachment e deixado o poder, se fosse o caso, como ocorreu a Fernando Collor. Quando os juízes aprovam a invasão do domicílio do chefe de Estado, madrugada alta, o sequestro da família por homens armados e sua expulsão sumária do território nacional, quem está violando a Constituição é a Suprema Corte. O mesmo ocorre com a maioria parlamentar que aprova o golpe. Além disso, a população de Honduras parecia satisfeita com seu presidente, não obstante as dificuldades econômicas históricas, por se tratar de uma das mais infelizes repúblicas da América Central. O termo banana republic foi criado, em 1904, exatamente para identificar Honduras, pelo escritor norte-americano O. Henry, em seu livro de contos Cabbages and kings. O intervencionismo norte-americano na região, em favor da United Fruit e Standard Fruit, é conhecido. Em 1911 e 1912, os americanos enviaram seus marines a Honduras, a fim de garantir a isenção de impostos às empresas bananeiras, por 25 anos.

A técnica do golpe é a mesma, e não há pais desta nossa infeliz América Latina que não tenha sofrido a violência, sempre executada pelas Forças Armadas, em benefício de um general qualquer, sempre títere de Washington, ou de civis dispostos à obediência. Em nossos países tem vigorado, desde a independência, a máxima de Arturo Illia: "A los militares, o se les manda, o se les obedece". Com sua visão de Estado, Jefferson, que participou ativamente, com La Fayette e outros, da redação dos primeiros rascunhos da Constituição Francesa de 1791, sugeriu que o texto determinasse a toda autoridade militar submissão direta a uma autoridade civil. Para nossa desgraça, em busca do poder a qualquer preço, os políticos batem à porta dos quartéis e pedem a intervenção armada. Mesmo quando os governos militares parecem necessários para a consolidação do Estado – como no caso das guerras de libertação de nossos vizinhos e, em nosso caso, da proclamação da República – os efeitos históricos são péssimos. Não são poucos os jovens oficiais que sonham ser, um dia, Bolívar e, em nosso caso, Deodoro ou Floriano (não falemos em Castello Branco, Costa e Silva, Médici e outros).

República é sinônimo de democracia, de Estado de direito. Não há meia democracia ou Estado mais ou menos de direito. Os conflitos políticos são inevitáveis, e inerentes à democracia, e só são resolvidos com democracia.

Não há como contemporizar, no caso hondurenho. Se o usurpador insistir em impedir o retorno de Zelaya, cabe à comunidade internacional avançar em sua condenação à aventura liberticida, e isolar o regime, até que o país retorne à normalidade republicana. É preciso registrar que toda a América Latina se encontra sob o meridiano de Tegucigalpa. E não podemos, no Brasil, baixar a guarda. Já estão circulando, pela internet, textos pedindo o retorno dos militares ao poder. Os que respeitamos as Forças Armadas e com elas contamos para a defesa permanente da soberania nacional, não podemos desonrá-las, ao admitir tal hipótese. Fez bem Celso Amorim em reiterar a Hillary Clinton nossa firme posição contra o golpe.

Os conflitos políticos são os tributos que pagamos à liberdade. E é preferível a corrupção com a imprensa livre, que a denuncie, mesmo com possíveis excessos, do que a corrupção sob o segredo das ditaduras, que só vamos conhecer décadas depois.

Paraguai poderá vender excedente, decide Lula

Valor Econômico

22/07/2009

Energia: Decisão passa, porém, pela alteração de duas leis e é difícil que seja implementada no curto prazo

Daniel Rittner e Paulo de Tarso Lyra, de Brasília

Em meio às posições divergentes do Itamaraty e do Ministério de Minas e Energia, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva arbitrou a favor da diplomacia: o Paraguai poderá vender a energia excedente de sua cota da usina hidrelétrica de Itaipu, diretamente e de forma gradual, no mercado livre brasileiro. No entanto, há grandes chances de que a decisão não tenha nenhum efeito prático no curto prazo, como desejam as autoridades do setor elétrico.

Para permitir a transação, será necessário alterar pelo menos duas leis - a 5.899, de 1973, e a 10.438, de 2002. Ambas definem a Eletrobrás como responsável pela comercialização de todos os "serviços de eletricidade" de Itaipu. A primeira dá suporte ao tratado firmado entre os dois países. A segunda tratava essencialmente do Proinfa, mas também abrangia a negociação da energia da usina binacional. No sábado, em Assunção, deverão serão anunciados "grupos de trabalho" para encaminhar o assunto juridicamente e estabelecer o ritmo de acesso da autarquia paraguaia Ande ao mercado livre.

Hoje o Paraguai, que consome apenas 5% da energia produzida pela usina, vende o excedente de sua cota à Eletrobrás, pelo preço fixo de US$ 45. Isso gera US$ 120 milhões em compensações para o governo paraguaio, já descontando os recursos destinados a royalties e ao pagamento da dívida assumida por Itaipu Binacional para a construção da usina.

Lula poderá anunciar um pré-acordo com o presidente do Paraguai, Fernando Lugo, mas precisará do consentimento do Congresso para tornar efetiva a atuação da Ande no mercado livre brasileiro. A avaliação, segundo fontes que participam das negociações, é que o assunto seja colocado em "banho-maria" pelo menos até as eleições presidenciais de 2010.

Todos os representantes do governo brasileiro se calaram sobre os termos do acordo, alegando que não vão "negociar pela imprensa". Apesar do mistério, foram dadas publicamente sinalizações de que algumas propostas deverão passar obrigatoriamente pelo Congresso, sem mudanças na essência do Tratado de Itaipu. "Dentro do tratado, existem alguns anexos que podem ser alterados. Essas mudanças também poderão vir de outros acordos internacionais firmados com o Paraguai. De qualquer maneira, essas alterações terão de ser aprovadas pelo Legislativo", disse Marco Aurélio Garcia, assessor de assuntos internacionais.

A Lugo, o governo brasileiro pode transmitir de que está empenhado em permitir o acesso da Ande ao país, mas um dos poucos resultados concretos para o Paraguai será o aumento no valor das compensações. Esse valor subirá imediatamente para US$ 240 milhões, mas os vizinhos querem mais. Sem comentar a possibilidade de elevar ainda mais esse montante, que fica aquém das pretensões paraguaias, Marco Aurélio afirmou que a saída busca manter "a fluidez nas relações entre os dois país", sem prejudicar a soberania brasileira. "O Brasil não vai rasgar dinheiro e jogá-lo pela janela. Como acreditamos que o Paraguai também não vá fazer isso."

O assessor disse que, nos cálculos feitos pelo governo, não estão previstos impactos inflacionários com as propostas feitas ao Paraguai. A única preocupação, segundo ele, é com a segurança energética brasileira. Marco Aurélio disse ser comum, em questões complexas como essa, divergências de pontos de vistas entre os vários setores do governo. Lembrou também que, no início do governo de Evo Morales, as relações entre o Brasil e a Bolívia eram conflituosas, mas que elas agora se estabilizaram para os dois lados. "Não fomos nós quem inventamos Itaipu nem a dependência do gás boliviano. Temos que administrar essas situações de forma responsável", disse.

Uma missão de negociadores brasileiros viaja hoje a Assunção para dar continuidade às discussões. O Ministério de Minas e Energia preocupa-se com o encarecimento das tarifas residenciais, já que o acesso do Paraguai ao mercado livre brasileiro pode tirar energia do mercado regulado. Nas distribuidoras do Sul e do Sudeste, incluindo grandes concessionárias como a Eletropaulo e a Cemig, a energia proveniente de Itaipu representa até 25% das suas carteiras de fornecimento.

Para evitar reflexos negativos nas tarifas, a entrada da Ande no mercado livre brasileiro deverá ser bastante gradual. Mas, além disso, fontes do governo argumentam que a situação atual do setor elétrico não preocupa. Há uma "sobra" de 4 mil MW médios até 2013 e o mercado livre tem mais oferta do que demanda. Segundo essas fontes, o Paraguai não teria como fazer contratos de curto prazo em valores superiores aos pagos pela Eletrobrás, de US$ 45 por megawatt-hora.

Nas propostas brasileiras, esse valor pode subir para US$ 47, no mínimo. O detalhe é que hoje, no mercado livre, os contratos entre fornecedores e grandes consumidores têm sido celebrados com preços em torno de R$ 90 por MWh. Em contratos de longo prazo, pode chegar a R$ 100 ou pouco mais do que isso. Ou seja, pelo menos hoje, não haveria vantagens ao Paraguai deixar de negociar com a Eletrobrás e vender sua energia excedente de Itaipu no mercado livre brasileiro.

Ontem, o presidente Lula se reuniu com seus principais auxiliares do setor elétrico no Centro Cultural Banco do Brasil (sede provisória do Executivo, enquanto o Palácio do Planalto está em reformas). Participaram o diretor-geral brasileiro de Itaipu, Jorge Samek, o secretário-executivo de Minas e Energia, Márcio Zimmermann, e o presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), Maurício Tolmasquim, além de Marco Aurélio. O ministro Edison Lobão e a chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, estão em viagem aos Estados Unidos.

domingo, 19 de julho de 2009

Historiografia de 1789

Folha de São Paulo, domingo, 19 de julho de 2009

Órfãos de majestade
Historiadora Mona Ozouf defende que a Revolução Francesa não foi a luta do povo "bom" contra o rei "mau"

RENATO JANINE RIBEIRO

Nas últimas décadas, as interpretações da Revolução Francesa [1789] se dividiram em duas vertentes. À esquerda, [o historiador francês] Michel Vovelle promoveu o estudo de lutas populares, fazendo também bom uso da história das mentalidades cunhada por [Lucien] Febvre e [Marc] Bloch.

Em 1989, Vovelle foi convidado por Mitterrand [presidente da França de 1981 a 1995] a dirigir as comemorações acadêmicas do bicentenário da Revolução, o que fez com um congresso mundial e pluralista. Já François Furet (1927-97), ex-comunista, comandou uma revisão da historiografia revolucionária, denunciando Robespierre e o terror. Sua equipe, da qual fez parte Mona Ozouf, autora de um belo "Varennes - A Morte da Realeza", que acaba de sair em português, soube estudar a fundo as ideias em jogo na época revolucionária. Digamos que, para ele, a revolução tinha acabado; para Vovelle, ela continuava.
Furet deve muito a Tocqueville - que em 1856 publicou "O Antigo Regime e a Revolução", ora reeditado em português. O grande problema que Tocqueville vê no processo revolucionário (que ele não aplaude nem condena) é que a monarquia absoluta não dera lugar para os cidadãos treinarem o manejo da coisa pública.

Já na Inglaterra, júris e parlamentos treinaram os cidadãos para decidir em matéria política e judiciária, isso desde os séculos 12 e 13.

Teoria ou prática

Sem poderem praticar a política, os franceses a teorizaram. A França tem em 1789 grandes teorias sobre o poder (é o século dos "philosophes"), mas pouco conhecimento prático. Para os ingleses, é o contrário.
Tocqueville prefere, na política, a prática.
Como a teoria francesa quer fundar a sociedade desde o zero (veja-se "O Contrato Social" de Rousseau), a revolução tenta varrer o passado.
Daí, o risco do terror. Para ele, a revolução completa um trabalho de centralização administrativa iniciado pelo Antigo Regime; teria sido preciso tanto sangue e guerra para chegar a um resultado que o governo anterior produziria?



Fernando Novais [historiador], certa vez, criticou Furet e seus mentores: disse que, contra Robespierre, eles retomavam a posição dos "monarchiens", monarquistas constitucionais que ficaram sem lugar naqueles inícios dos anos 1790 em que nem a corte, querendo restaurar o absolutismo, nem os revolucionários, querendo os direitos humanos, aceitavam um compromisso - uma França que seria inglesa, como?
Se não tinha 600 anos de participação nos assuntos públicos...

Revolução e cinema

Mas o melhor, aqui, é passar para o cinema. Ariane Mnouchkine [diretora francesa] filmou em 1974 uma bela peça: "1789". Ela começa em 1791, quando Luís 16 e Maria Antonieta tentam fugir para o estrangeiro, mas são reconhecidos na cidadezinha de Varennes e forçados a voltar a Paris.
No palco vemos todas as mesuras típicas de cortesãos. Mas, de repente, soa um grito:
"Não é assim que vamos contar essa história!". E há um segundo começo: uma camponesa vai dar à luz quando um nobre, vindo da caça, lava as botas na bacia de água quente que estava reservada para o parto. "1789" é uma peça do povo, que revive a revolução, tanto que termina com o público dançando ao som da "Ode à Alegria" de Beethoven.

Ettore Scola [cineasta italiano] rodou, em 1982, "Casanova e a Revolução", obra de ficção em que o aventureiro veneziano [Giacomo Casanova, interpretado pelo ator Marcello Mastroianni] acaba, sem querer, no meio da fuga para Varennes. Parece uma resposta a Mnouchkine.

O momento alto é quando uma condessa (Hanna Schygulla) explica o que o rei pretendia. Ele trajaria suas vestes solenes e, mostrando-se ao povo com elas, sem os (maus) intermediários que eram os deputados à Assembleia, restabeleceria a boa relação entre o pai que tudo sabe e protege seus súditos e estes, que são seus filhos inocentes e ignorantes.

Obviamente, isso já era impossível. Foram-se os tempos da realeza paternalista. Esse filme é Furet, é Ozouf -que ainda não escrevera seu "1791" ["Varennes - A Morte da Realeza"], mas que o termina citando a película.

Maus vizinhos

O que nos mostram Scola e Ozouf? Que a revolução não é a luta do bem contra o mal (ok), nem do bom povo contra o mau rei. É o fim de um tempo em que a realeza era paternal e o começo dos tempos em que vivemos a dificuldade de nos tornarmos irmãos, primos ou mesmo vizinhos, porque já não pensamos o poder na dicotomia entre o bom pai e o usurpador mau (Hamlet é o grande exemplo desse confronto, com um pai homônimo assassinado pelo mau tio Cláudio).

Mas o que falta a Ozouf, cujo livro é primoroso? Falta-lhe enfatizar que, se a realeza morre, quem a mata é a nobreza. "O rei era bom", dizia [o historiador Jules] Michelet em sua "História da Revolução Francesa", e era exatamente esse o problema: atendia a tudo o que lhe pediam os nobres. E eles, mostra H. Taine nas "Origens da França Contemporânea", haviam deixado de cumprir suas obrigações para com os inferiores.

Uma coisa era a nobreza ter prerrogativas, mas também deveres com os pobres. Outra foi ela ficar apenas nos privilégios, desdenhando o povo. O rei era bom, ele poderia aceitar uma monarquia constitucional (e Furet estaria feliz), que evoluiria à inglesa num século 19 pacífico. Mas a aristocracia era a má intermediária -ela, não os revolucionários condenados pela condessa no filme.

Quem matou a monarquia não foi a multidão que em 1792 invadiu as Tulherias [em Paris] em resposta à invasão da França pelas monarquias coligadas.
Foi a própria coalizão reacionária, somada a uma aristocracia idem. Em Varennes, as coisas parecem indefinidas. Quando o rei -preso, não há como esquecê-lo- é trazido a Paris, um cartaz difundido no caminho diz tudo: "Qualquer pessoa que aplaudir o rei será açoitada, quem o insultar será enforcado". Ele continua um personagem sagrado, e por isso a pena para o insulto é maior do que para o aplauso. Mas, se os óleos da coroação ainda ungem o seu corpo, o poder já lhe escapa.
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RENATO JANINE RIBEIRO é professor de ética e filosofia política na USP e autor de "O Afeto Autoritário" (ed. Ateliê), entre outros livros.

sábado, 18 de julho de 2009

Organização e Paz

Folha de S. Paulo

18/07/2009

Roberto Rodrigues

Os governos devem dar condições para que cresçam as instituições preocupadas com o bem-estar coletivo
QUANTO MAIS organizada for uma sociedade, tanto mais transparente ela será, tanto mais democrático será o regime. E a transparência é uma premissa fundamental para o funcionamento da democracia. Com essa condição, fica muito mais difícil que organismos do Estado produzam, por exemplo, atos secretos, escondidos da sociedade.
Portanto, governos democráticos sérios devem criar cada vez melhores condições para o crescimento de instituições capazes de contribuir efetivamente para a melhor organização social. Essa função vem ganhando importância nos tempos atuais por causa da lamentável perda de protagonismo das grandes instituições multilaterais.
A própria ONU, cuja missão essencial é garantir a paz, não vem conseguindo cumprir seu papel. Agora mesmo está às voltas com os experimentos bélicos da Coreia do Norte, mas talvez seu maior fracasso tenha sido não conseguir impedir a invasão do Iraque na era Bush. Sua similar continental, a OEA, também se atrapalhou toda com o recente episódio em Honduras.
A FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) vem tentando, há mais de uma década, a implementação de programas que reduzam a fome no mundo, tendo estabelecido metas realistas para isso. No entanto, acaba de anunciar que o número global de famintos cresceu, e deve superar neste ano a cifra de 1 bilhão.
A OMC, desde 2001 empenhada numa rodada de negociações objetivando ampliar o comércio agrícola no mundo, o que ajudaria a melhorar a renda dos países mais pobres, reduzindo a fome de suas populações, não avança quase nada. E pior, nem sequer consegue que os países- -membros cumpram suas decisões em painéis específicos, como aquele em que o Brasil venceu contra os Estados Unidos nos subsídios ao algodão: condenados, os EUA continuam subsidiando e nada acontece.
Essa incapacidade -que se deve em parte à "soberania" de cada país, ao seu livre arbítrio- vai desmoralizando as organizações multilaterais, colocando em risco a paz universal, a democracia e o bem-estar dos povos. Tudo isso reforça a necessidade de as sociedades se articularem mais e melhor, para se autogestionarem com transparência e contribuírem para o aperfeiçoamento das instituições.
É nesse cenário que o cooperativismo vem ganhando espaços crescentes no mundo desenvolvido. O cooperativismo é o braço econômico da organização da sociedade, assim como o sindicalismo é seu braço político, secundado pelo associativismo e pelas ONGs. Cooperativismo é uma doutrina regida por princípios e valores universalmente aceitos, e associa 800 milhões de pessoas em todos os países. Se a cada cooperado correspondessem três agregados, o número de cidadãos ligados ao movimento chegaria à metade da população da Terra. É um contingente monumental em defesa da paz e da democracia.
Aliás, seus princípios são os mesmos dos governos sérios: justiça social com distribuição de riqueza, pleno emprego, segurança alimentar, sustentabilidade produtiva, segurança jurídica, enfim, os alicerces da democracia.
O Brasil ainda engatinha no setor, com 7 milhões de cooperados, ou 15% da população, contados os agregados. Muito menos que o mundo todo. Mas vamos crescendo e bem, sob a batuta da OCB (Organização das Cooperativas Brasileiras), contribuindo de forma efetiva para o desenvolvimento sustentável do país.

ROBERTO RODRIGUES, 66, coordenador do Centro de Agronegócio da FGV, presidente do Conselho Superior do Agronegócio da Fiesp e professor do Departamento de Economia Rural da Unesp - Jaboticabal, foi ministro da Agricultura (governo Lula). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

Brasil cede ao Paraguai em acordo de Itaipu

O Estado de S. Paulo

18/07/2009

Raquel Landim e Denise Chrispim Marin

O Brasil vai permitir que o Paraguai venda livremente sua cota de energia de Itaipu no mercado brasileiro, acabando com a obrigação de operar apenas com a Eletrobrás. Mas a mudança seria feita de forma gradual e estaria completa em 2023, quando o tratado entre os dois países será renegociado.

Com a concessão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ajuda na sobrevivência política do colega Fernando Lugo, acuado pelas revelações de que teve filhos quando era bispo. A avaliação no governo brasileiro é que, sem a compreensão do Brasil, Lugo não termina o mandato.

A nova proposta foi entregue na quinta-feira ao governo paraguaio pela embaixada do Brasil em Assunção. Segundo um dos principais negociadores, o Paraguai conquista a "soberania energética", enquanto o Brasil ganha "garantia de fornecimento" porque os paraguaios não poderão vender energia de Itaipu para outros países.

A medida se somará ao pacote para fomentar o setor produtivo paraguaio que Lula ofereceu duas vezes neste ano, que foi desconsiderado por Lugo. A expectativa é que os presidentes assinem um acordo sobre o tema na próxima sexta-feira, em Assunção, na reunião do Mercosul. Seria o fim a uma disputa que contamina as relações bilaterais e o bloco há 11 meses.

O assunto causou polêmica no governo, mas prevaleceu a posição do Itamaraty. O Ministério de Minas e Energia era contra, por temer aumento no preço pago pelo consumidor pela energia de Itaipu. A diretoria brasileira da binacional está decepcionada com a decisão.

O acordo só foi possível depois que o Paraguai trocou os negociadores. O engenheiro Ricardo Canese irritou o Brasil ao questionar a legitimidade da dívida de Itaipu e ao dizer que recorreria à arbitragem internacional. Lugo escolheu então o diretor-geral paraguaio da binacional, Carlos Mateo Balmelli, para cuidar do assunto. A proposta de entrada gradual do Paraguai no mercado livre brasileiro é de Balmelli.

A avaliação no governo paraguaio é que suas demandas foram atendidas. O único ponto pendente é o reajuste do valor pago ao Paraguai por ceder sua energia. O país consome apenas 5% da produção de Itaipu. Os negociadores brasileiros vão reapresentar a oferta de elevar dos atuais US$ 105 milhões para US$ 215 milhões. O Paraguai, que chegou a pedir US$ 800 milhões, espera que chegue a US$ 240 milhões.

O pacote traz ainda a criação de um fundo binacional e a abertura de uma linha de US$ 1,5 bilhão no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Os recursos financiariam uma linha de transmissão de energia de Itaipu a Assunção de US$ 450 milhões.

No Itamaraty, a perspectiva é que o pacote será aceito. Com o gesto adicional do Brasil, Lugo poderia rotulá-lo como uma "vitória" de sua diplomacia e não mais como "espelhinhos e migalhas" do imperialismo brasileiro.