domingo, 12 de julho de 2009

O golpe das mentiras

O Estado de S. Paulo

12/07/2009

Mario Vargas Llosa

Despertar um presidente constitucionalmente eleito à força de baionetas e enviá-lo para o exílio sem lhe dar nem tempo para tirar o pijama, como os militares hondurenhos fizeram com Manuel Zelaya há duas semanas, é um ato de barbárie política. Foi certa a enérgica condenação desse abuso pelas Nações Unidas, pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pela maioria dos países do mundo todo.

Muito bem, estabelecido este princípio, de que a interrupção da democracia por uma ação militar não se justifica nunca, é preciso analisar esse incidente mais a fundo e com prudência, porque, nesse golpe de Estado, a fronteira entre a verdade e a mentira é mais escorregadia do que uma enguia.

Talvez mais do que o próprio ato do assalto à residência do chefe de Estado hondurenho, deve-se condenar os militares e os juízes que deram a ordem para isso e, com esse abuso, transformaram numa vítima da democracia e quase em herói da liberdade um demagogo irresponsável como Manuel Zelaya que, em flagrante violação da Constituição que jurou respeitar, pretendia realizar um referendo para se fazer reeleger, uma pretensão condenada pela Corte Suprema e pelo Ministério Público do país.

E por causa disso, o Congresso hondurenho iniciara um processo para destitui-lo da presidência. Esse era o procedimento legítimo em defesa da democracia, e foi freado e descaracterizado pela ação militar, no que pareceu uma confusão digna de um manicômio.

A tal ponto que nada menos que o comandante Hugo Chávez, o comandante Daniel Ortega, Evo Morales e até Raúl Castro apareceram rapidamente em cena, liderando um protesto continental em defesa da lei e da democracia, exigindo sanções contra Honduras e convocando uma reunião da Alba (Aliança Bolivariana para as Américas) à qual o desorientado secretário-geral da OEA, José Miguel Insulza, deu, com sua presença, uma aura de legitimidade.

O fato de Chávez, grande desestabilizador da democracia latino-americana, ex-golpista e um megalômano que transformou a Venezuela numa pequena satrapia particular, aspirando fazer o mesmo com o restante da América Latina, arrogar-se do papel de defensor do estado de direito hondurenho, foge ao senso comum e à racionalidade. Além disso, um outro fato ficou evidente: alguma coisa já estava corrompida antes desse golpe. Na verdade, quando ocorreu a intervenção militar, Honduras estava prestes a cair, depois da Bolívia, Nicarágua e Equador, na órbita de influência de Hugo Chávez. Manuel Zelaya era a última conquista do caudilho venezuelano, que o havia subornado, da mesma maneira que fez com outros vassalos da região, vendendo o seu petróleo mais barato e oferecendo créditos generosos. E, sobretudo, apoiando sua ânsia por uma reeleição. Nem ignorante, tampouco um indolente, Manuel Zelaya, figura destacada da oligarquia rural hondurenha, ligado no passado a matanças de camponeses, e eleito presidente como candidato do Partido Liberal, de centro-direita, que tinha um programa de apoio ao investimento externo e à empresa privada, prometendo acabar com a delinquência, aos poucos foi se convertendo às teses populistas e revolucionárias (ou seja, chavistas). Honduras ingressou na Alba, e ele começou a preparar sua permanência indefinida no cargo, por meio de uma reforma constitucional, como foi feito por Chávez e seus discípulos, ou seja, a escória política da América Latina.

Mas, diferentemente do que ocorrem em países como Equador, Bolívia ou Nicarágua (na outra ponta do espectro político, a Colômbia de Uribe, um mandatário democrata que, por desgraça, aderiu também ao sinistro esporte da reeleição), onde os presidentes candidatos à reeleição contavam com uma base popular que apoiava seus projetos, em Honduras as pretensões de Zelaya desde o princípio não tiveram apoio e foram rechaçadas em todo o espectro político. Todas as instituições resistiram à sua tentativa, a Corte Suprema, o Tribunal de Justiça, o Tribunal Eleitoral, todos os partidos democráticos (a começar pelo seu próprio, o Liberal), o Ministério Público do país e a opinião pública em geral. Não foi somente uma rejeição da transformação ideológica do volúvel mandatário, mas também uma clara tomada de posição da população hondurenha contra a perspectiva de tornar-se um país dependente de Chávez , quer dizer, uma pequena ditadura populista transformada em feudo do caudilho venezuelano.

É nesse contexto que se deve julgar a situação em Honduras. Não se trata de justificar uma ação militar ignóbil, que só serviu para desacreditar algumas instituições e o povo, que resistiram corajosamente a objetivos claramente antidemocráticos de um mandatário sem princípios. Mas não devemos incorrer, acreditando ser uma defesa da democracia, numa operação que pode acabar legitimando os planos inconstitucionais, de reeleição e entrega de Honduras ao poder chavista de Manuel Zelaya.

O que pode ser feito para reconstituir a democracia hondurenha abalada? O ideal seria recolocar Zelaya na presidência, desde que renuncie ao seus planos de reeleição, e garantir que as eleições de novembro sejam realizada de maneira correta e sob vigilância das Nações Unidas. Mas isso parece difícil neste momento, já que a situação estão tão deteriorada, como ficou flagrante em 5 de julho, quando a fracassada tentativa do presidente deposto de retornar a Tegucigalpa, provocou violentos incidentes, com muitas pessoas feridas.

Honduras retirou-se da Organização dos Estados Americanos, o que não deve surpreender ninguém, dada a inutilidade dessa instituição que, além do mais, tem a nefasta característica de tornar também inúteis seus secretários-gerais, incluindo aqueles que, como José Miguel Insulza, pareciam mais sagazes do que os outros, de maneira que a OEA, quanto menos intervir tanto melhor. A mediação do presidente da Costa Rica, Óscar Arias, Premio Nobel da Paz, é uma boa ideia: é um estadista respeitado e respeitável, bom negociador e um autêntico democrata.

Por outro lado, é preciso evitar de qualquer maneira que essa tensão existente se degrade num derramamento de sangue. Chávez ameaçou com uma intervenção militar, em que provavelmente levaria consigo a Nicarágua de Daniel Ortega, que o governo hondurenho acusou de mobilizar tropas na fronteira com Honduras. Com certeza, não há um modo de comprovar se são verdadeiras as notícias de que a fronteira já vinha sendo atravessada por comandos venezuelanos e cubanos, como foi denunciado pela imprensa hondurenha, ou apenas campanha de propaganda em defesa do governo de Roberto Micheletti. Mas, diante dos antecedentes e do contexto político da América Central, elas também não podem ser descartadas. A situação instável e precária de Honduras, agora exposta à opinião pública internacional, é propícia a uma insurreição teleguiada de Caracas.

Talvez esses riscos possam ser afastados antecipando as eleições presidenciais marcadas para novembro. Esse escrutínio teria de ser realizado o mais breve possível, o que será viável se a comunidade internacional colaborar com a infraestrutura eleitoral, sob a responsabilidade e supervisão das Nações Unidas, com observadores internacionais da União Europeia e organizações políticas e de direitos humanos, como o Centro Carter, Anistia Internacional e Americas Watch. Não vejo outra maneira mais rápida de reconstruir o estado de direito e acabar com essa situação anômala que vive Honduras por culpa dos militares que tomaram a presidência do país e das manobras astutas de Manuel Zelaya e o seu guru ideológico, Hugo Chávez.

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