quarta-feira, 15 de julho de 2009

Modelo em xeque

O Estado de S. Paulo

15/07/2009

André Meloni Nassar
O presidente Barack Obama tem afirmado que os padrões de consumo nos EUA precisam mudar. Ou seja, os EUA deverão deixar de ser o dinamizador do comércio mundial. Para o presidente norte-americano, os países com superávit de comércio com os EUA deverão buscar alternativas para alocar sua capacidade produtiva, construída para atender à crescente demanda norte-americana, estimulando o desenvolvimento dos seus mercados domésticos. Não há por que não acreditar nas afirmações do presidente dos EUA. É isso mesmo que deve acontecer.
Nossa reação, aqui, do "outro lado do Atlântico", foi de apoio. Ou seja, como encaramos os norte-americanos como perdulários, vemos com bons olhos a racionalização do consumo naquele país. Os mais otimistas podem ainda encontrar razões mais nobres para suportar menor consumo nos EUA: economia de recursos naturais escassos e de fontes de energia. Somos tomados por uma sensação de alívio: finalmente os norte-americanos descobriram que aquele modelo de sociedade não era sustentável e o mundo agradece. Será mesmo que o mundo agradece? Não teria tanta certeza.
Assim como o mercado financeiro ganhou sofisticação e complexidade no mundo da globalização financeira, o mesmo aconteceu com o comércio mundial. Em parte estimulado pela abertura de mercados resultante da Rodada Uruguai da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de acordos bilaterais firmados entre diversos países ao longo dos anos 2000, mas, sobretudo, como resultado da forte expansão do consumo dos norte-americanos, o comércio mundial, em especial dos produtos manufaturados, passou a fazer parte de uma grande e integrada cadeia produtiva. Como toda cadeia produtiva, construída e organizada para agregar valor aos seus integrantes, o comércio mundial hoje reflete as vantagens competitivas e o grau de especialização de cada elo do suprimento e da manufatura dos produtos que, no fim do processo, chegam aos portos norte-americanos.
Dessa forma, assim como os títulos do mercado imobiliário norte-americano foram vendidos e refinanciados inúmeras vezes no mercado financeiro, os produtos manufaturados exportados pela China para os EUA tiveram seus componentes e matérias-primas importados, pelos chineses, de outros países asiáticos. Esse tipo de conformação de cadeia produtiva, com especialização de fornecedores nas etapas do processo localizadas em diferentes países e elevada alavancagem de comércio - para usar um termo do mercado financeiro -, fez sentido até hoje porque a demanda parecia infinita.
Agora que o dinamizador da demanda disse que vai consumir menos, esse modelo será posto em xeque. Não porque não funcione mais, mas porque passará por transformações. A mais importante razão que levará às transformações nesse modelo é indiretamente fruto da queda de demanda nos EUA: com menor demanda mundial e deslocamento de parte da produção para o mercado doméstico, os fornecedores dos produtos finais - em outras palavras, a China - farão todos os esforços necessários para internalizar as cadeias de suprimento, como estratégia de agregação de valor e de renda doméstica. Sendo donos do mercado consumidor, os chineses não se darão por satisfeitos com o modelo atual, em que ainda são grandes compradores de componentes e apenas montadores dos produtos finais. Esse modelo pode ser aceito para vender aos EUA, mas não para atender ao próprio consumidor chinês. O governo da China já fez seus movimentos iniciais utilizando mecanismos para estimular produtores a comprar produtos locais, em vez dos importados, e esse tipo de ação deverá ser intensificado cada vez mais, à medida que o excesso de produção é deslocado para o consumidor local.
Dois fatos comprovam que o comércio mundial está alavancado. O primeiro vem de uma simples comparação entre o crescimento do PIB e das exportações mundiais. Quando selecionamos dados históricos de um e outro, ambos em dólar a preços correntes, observamos que de 1980 a 2002 a relação exportações-PIB sempre oscilou ao redor 14%. Nesse período o crescimento de ambos foi muito semelhante, mostrando que o comércio é resultado da expansão mundial. É interessante notar que no período pré-conclusão da Rodada Uruguai - antes de 1995, portanto - a relação se concentrava mais ao redor de 12% e, entre 1995 e 2002, ficou muito mais próxima de 15%, comprovando que a rodada teve algum efeito positivo em termos de liberalização.
A partir de 2003 o cenário mudou de figura. A relação exportações-PIB saltou dos 14% em 2002 para um recorde de 23% em 2008. Ou seja, nesse período o comércio mundial cresceu mais intensamente do que a economia mundial. A entrada da China na OMC explica em parte esse crescimento, mas não totalmente. Enquanto o PIB mundial cresceu a uma taxa de 7,4% ao ano, as exportações cresceram 16,3% ao ano. Essa diferença de crescimento demonstra bem o fenômeno da alavancagem do comércio.
Esse fenômeno pode ser observado também quando se decompõe a cadeia de suprimentos de certos equipamentos eletrônicos. Um documento recém-publicado por uma universidade norte-americana avalia a cadeia de valor na produção de um iPod rastreando a origem dos principais componentes da máquina. Embora montado e finalizado na China, com exceção do seu disco rígido, todos os demais componentes vêm de outros países. O iPod exportado pela China é um caso típico de alavancagem de comércio.
Por que o menor consumo dos EUA é ruim para a economia mundial, pelo menos no padrão em que vivemos nos últimos anos?
Porque vai necessariamente acabar com essa alavancagem de comércio, que tanto beneficiou os países em desenvolvimento. O impacto será tanto menor quanto maior for o mercado doméstico de cada país.
André Meloni Nassar é diretor-geral do Instituto de Estudos
do Comércio e Negociações Internacionais (Icone).

Nenhum comentário: