domingo, 31 de maio de 2009

Uso de crianças-soldados choca os peruanos

O Globo

31/05/2009

Meninos são doutrinados por grupos que se originaram no Sendero Luminoso e hoje estão ligados ao narcotráfico

Cristina Azevedo

Numa clareira, um grupo de 17 meninos entra em formação. Punho cerrado ao lado da cabeça numa estranha continência, repetem com suas vozes infantis: — Viva o marxismo, leninismo, maoísmo, principalmente maoísmo, para a revolução proletária e socialista mundial.

São meninos de 10 a 12 anos, mas muitos parecem não ter mais de 8. Em outra cena, manejam fuzis com a mesma naturalidade com que jogam futebol.

As cenas são do programa “Punto Final”, que vai ao ar hoje, na emissora Frecuencia Latina, mas as imagens antecipadas durante a semana sacudiram os peruanos.

Elas mostram crianças recrutadas por grupos armados, resquícios do movimento Sendero Luminoso, hoje associados ao tráfico de drogas: — Os meninos de 11 a 13 anos são encarregados de matar os militares agonizantes e recolher as armas — conta de Lima, por telefone, o antropólogo Jaime Antezana, especialista em Sendero e narcotráfico. — São crianças crescidas no sangue.

Abimael Guzmán chama grupo de mercenário

As primeiras informações sobre a existência das novas criançassoldados peruanas surgiram em abril. Num ataque que deixou 15 soldados mortos, sobreviventes contaram ter visto meninos entre os guerrilheiros.

Mas agora, em vez de relatos, os peruanos estão vendo na TV e na internet uma prática da época do Sendero que parecia já ter acabado: o sequestro e doutrinamento de crianças.

As cenas do programa foram gravadas na zona do Valle del Río Apurímac-Ene, conhecida como Vrae, 350 quilômetros a sudeste de Lima. Uma terra ocupada por migrantes nos anos 50, que levaram o hábito de mascar a folha de coca, dando início ao cultivo. Depois, vieram os cartéis mexicanos e colombianos.

Hoje, 60% da cocaína produzida no Peru vêm dessa região, onde o Sendero teve forte presença.

— Ali não existe o Estado — conta Eduardo Tocht, pesquisador do Centro de Estudo e Promoção do Desenvolvimento.

Dando cobertura às rotas do tráfico, os grupos que sobraram após a desarticulação do Sendero, nos anos 90, conseguiram sobreviver e crescer. Hoje, há quem diga que eles não apenas controlam as rotas da droga, como têm seu próprio cultivo. Nessa cadeia, crianças transformamse em soldados, outras ajudam as famílias a cultivar a coca e há as que fazem o transporte da droga, a pé, com mochilas.

— O Sendero como conhecíamos não existe mais — conta Tocht. — Há grupos que se autodenominam Sendero e que pertenceram a ele, mas que hoje estão ligados ao narcotráfico.

Foi apenas em 2006 que um desses grupos lançou um manifesto e adotou um novo nome: Partido Comunista do Peru Marxista Leninista Maoísta. Liderado por Víctor Quispe Palomino, o Camarada José, eles apresentam um discurso anti-imperialista, em busca de legitimidade. As declarações causaram tanta polêmica que Abimael Guzmán, o líder do Sendero capturado em 1992, disse que “os terroristas do Vrae são mercenários”.

Um modelo ao estilo da guerrilha colombiana

O recrutamento de crianças levou a Coordenação Nacional de Direitos Humanos, que reúne 67 entidades, a comunicar a situação à ONU.

— Isso é inaceitável. Também o Exército recrutou menores de idade, e os militares nos disseram que fizeram mil jovens com menos de 18 anos darem baixa — explica Ronald Gamarra, secretárioexecutivo do grupo.

As crianças no grupo foram sequestradas em povoados pobres ou são filhas da antiga “massa cativa” do Sendero — cerca de 250 pessoas que estavam sob poder do grupo na época de sua derrocada.

— O que acontece agora é uma reprodução de antigas práticas pelo que chamo de narcosenderismo — diz Antezana. — Recrutam crianças e passam frases ideológicas que elas repetem sem saber o significado.

Para Antezana, o grande choque veio do fato de ver que a organização cresceu, tem logística militar sofisticada e faz um trabalho ideológico, mesmo que seu núcleo seja o tráfico. Hoje, o grupo tem uma postura mais ao estilo das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, diz.

— Eles representam um perigo maior do que o Sendero representou — afirma.

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