domingo, 3 de maio de 2009

Pânico moral

Folha de São Paulo

03/05/2009

O historiador inglês Peter Burke relembra a criação de boatos e culpabilizações devido à tragédias e epidemias e ressalta o papel crucial do jornalismo
A epidemia é uma ameaça real, mas há o perigo de que as pessoas reajam a ela de maneira excessiva ou errada

PETER BURKE, COLUNISTA DA FOLHA

Uma das desvantagens da globalização, no sentido de eficiência ampliada das comunicações, é que não só as mensagens como as doenças podem se espalhar mais rápido do que no passado, e a atual epidemia de gripe suína exemplifica esse fato muito bem.
A epidemia é claramente uma ameaça real. Mesmo assim, existe o perigo de que as pessoas reajam de maneira excessiva a ela, ou reajam de maneira errada, o que poderia resultar em pânico coletivo. Pânicos coletivos -ou "pânicos morais", como alguns sociólogos os denominam- são um fenômeno comum, talvez até comum demais.
Ocasionalmente o perigo é imaginário, como na onda de pânicos relacionados a bruxas que se espalhou pela Europa nos séculos 16 e 17 e resultou na morte de milhares de pessoas inocentes.
Na China, em 1768, por exemplo, surgiu um grande pânico causado por boatos de que pessoas sem moradia estariam roubando as almas das pessoas comuns, e foi necessária uma intervenção do governo para acalmar a situação.
Na metade de 1789, quando a Revolução Francesa estava começando, um boato (hoje conhecido como "La Grande Peur", ou "o grande medo") se espalhou pelas regiões rurais do país. De acordo com o boato, salteadores estavam se preparando para atacar aldeias e roubar sua comida, como parte de um complô da aristocracia contra o povo.
Em consequência, os camponeses se armaram e alguns deles decidiram atacar as casas dos nobres, em uma espécie de golpe preventivo.
Já em outras ocasiões o perigo é real, e não imaginário, mas os boatos servem para amplificá-lo, como no caso da praga que se abateu sobre a Europa em 1348 e retornou em diversas ocasiões -em Milão e outras cidades do norte da Itália em 1630, em Londres em 1665 e assim por diante.

Bodes expiatórios
Na esfera econômica, um pânico pode bastar para produzir os efeitos cuja possibilidade desperta o medo das pessoas, para começar.
Um exemplo vívido -e que oferece paralelos desconfortáveis com relação à situação presente- é o do pânico financeiro que tomou os EUA em 1873.
A crise surgiu depois de um surto de gripe equina e do colapso de um grande banco (o Jay Cooke & Co.) e resultou em uma depressão econômica que durou alguns anos.
Em casos de pânico coletivo, é comum que surja uma busca por bodes expiatórios. Em outras palavras, grupos ou até mesmo indivíduos são culpados por situações que resultam, ao menos em parte, de debilidades do sistema econômico, social ou político.
Não há nada de surpreendente nisso: indivíduos são visíveis, enquanto sistemas trabalham por efeito de uma "mão invisível". Como resultado, histórias sobre complôs são tema recorrente nos pânicos.
Esses complôs são em geral atribuídos a grupos que já foram descritos como "demônios folclóricos".
Em outras palavras, pessoas que são alvo de preconceitos em determinadas culturas -os católicos (em culturas protestantes), os judeus, os jesuítas, os aristocratas, os banqueiros (de olhos azuis ou de olhos castanhos), os maçons ou os comunistas. São grupos suspeitos de conspirar para envenenar, infectar, queimar, sequestrar ou empobrecer as pessoas comuns ou para promover um golpe de Estado ou uma revolução.
A praga que atingiu Milão em 1630 e tem parte importante em "Os Noivos" ["I Promessi Sposi"], o grande romance de Alessandro Manzoni, foi atribuída por alguns aos chamados "untori", um grupo que espalhava um unguento mortífero pela cidade.
Histórias sobre vilões que envenenam os reservatórios de água ou satanistas que torturam e matam crianças estão em circulação há muitos séculos (pelo menos desde o século 14).
Nesse contexto, não parece irracionável falar em surtos de paranoia coletiva, desde que não descartemos os pânicos como completamente irracionais, patológicos ou absurdos.
Pode haver bons motivos para uma atmosfera de pânico ou incerteza que leve à difusão de rumores desse tipo.

Medo das bruxas
Os pânicos podem representar reação excessiva, mas são reação a um problema real. As bruxas não existiam (ou ao menos não tinham os poderes de causar o mal que lhes eram atribuídos), mas o medo de bruxas expressava tensões sociais reais.
Nunca existiram ladrões de almas, mas os rumores sobre eles expressavam ansiedade da parte das pessoas domiciliadas quanto ao número de pessoas que levavam uma existência nômade nas estradas chinesas.
Os salteadores não estavam mais ativos na França no verão de 1789 do que em outras ocasiões, mas os boatos sobre sua ação e sobre a conexão entre salteadores e a aristocracia nos dizem algo sobre os problemas e os temores dos camponeses franceses da época.
Não havia complôs para espalhar a praga, quer em Milão em 1630 ou em Londres em 1665, mas a praga mesma era um perigo muito real.

Caminho do meio
Será possível encontrar um caminho intermediário entre ignorar ameaças reais e sucumbir a pânicos coletivos? Os meios de comunicação têm papel importante a desempenhar, quanto a isso.
Os rumores que transmitem e amplificam os pânicos são muitas vezes reações à falta de informações confiáveis.
Se podemos afirmar que um pânico se assemelha a uma doença coletiva, o remédio -ou ainda melhor, o profilático- está no jornalismo responsável, quer na televisão, no rádio ou nos jornais.

PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar). Ele escreve regularmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Paulo Migliacci.

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