O Globo
31/05/2009
Segregação de mulheres é face mais visível do opressor e rico regime da Arábia Saudita
Deborah Berlinck - Enviada especial a RIAD
Um grupo de mulheres desceu de um carro preto, escoltado por um homem. O único indício de que eram do sexo feminino era a abaya, a túnica das mulheres sauditas.
Nem traço de pele, do olho, dos pés ou da silhueta. Usavam luvas, sob um calor de quase 40 graus, e tinham o rosto coberto por um véu sem orifícios. Tudo preto.
Iam rezar numa mesquita? Não, entraram em disparada num moderníssimo shopping de Riad, capital da Arábia Saudita, direto para a butique Guess, marca americana de roupa jovem e sexy.
— Aqui é 8 ou 80. Tem gente que quer ser 8, superliberada, ou 80, super-religiosa — comentou a carioca Iara Silva, 48 anos, ao cruzar com os vultos negros.
Iara anda coberta dos pés à cabeça por opção: se converteu ao Islã. Da infância no colégio de freiras Pio XII, em Guadalupe, essa filha de militar católico foi parar na Arábia Saudita após se casar com um nova-iorquino convertido ao Islã.
O que Iara chama de mulher “liberada” equivale a uma freira no Brasil. A maioria das mulheres sauditas, além do véu, usa uma espécie de máscara que só deixa os olhos de fora. A liberada mostra o rosto, e as “superliberadas” maquiam exageradamente os olhos, usam a túnica ligeiramente apertada e, quando podem, mostram um pedaço do cabelo.
Sutileza que só saudita percebe.
Bem-vindo à Arábia Saudita. Neste país, dono de 25% das reservas confirmadas de petróleo do mundo, uma família — Saud — instaurou um regime monárquico absolutista, e já exercia o poder antes mesmo da criação do reino, em 1932.
Não há partidos políticos nem Constituição.
Quem questiona o regime ou a religião é preso.
Para acalmar os insatisfeitos, a família real, com seus inúmeros príncipes (calcula-se em 200 os descendentes diretos do rei e em 7 mil os membros da família), distribui privilégios. A família controla o petróleo, o que a torna fonte de emprego.
E tem apoio dos EUA.
— O poder quase absoluto da família corre o risco de durar enquanto durarem as reservas de petróleo — avalia Pascal Ménoret, pesquisador da Universidade de Princeton, nos EUA, e autor de “O enigma saudita”.
A Arábia Saudita pratica uma interpretação fundamentalista do Islã sunita, conhecida como wahhabismo. O país funciona segundo a sharia (lei islâmica). A religião dita cada aspecto da vida: a forma como as mulheres se vestem, como os homens se portam, o que comem.
O dia-a-dia dos sauditas gira em torno da família. Alguns, como Abdullah al-Mousa, comerciante, olham para o Ocidente como um antro de perdição: — Estive na França, na Holanda, na Suíça.
É horrível! A vida em família está sendo destruída. As pessoas estão vivendo separadas, sozinhas.
Mas os religiosos estão submetidos à família real, diz Ménoret. E, na falta de códigos, o sistema judiciário virou loteria: — Quando você entra num tribunal ou numa delegacia, tudo é possível — diz.
Por lei, mulheres são tratadas como crianças
Mulher não tem vez. De todas as violações de direitos humanos na Arábia Saudita, que incluem decapitação em praça pública, a segregação de mulheres é a parte mais visível. Maha alQahtani, 36 anos, estudou e morou 12 anos com o marido saudita nos EUA. De volta a Riad, em 2002, com diploma universitário, criou um pequeno negócio com uma amiga americana. Mas não pode assinar um papel sem o marido.
— Não é só a questão da mulher. Aqui, não temos direitos básicos como seres humanos.
Mulheres, na Arábia Saudita, são consideradas, por lei, menores de idade. São tratadas como crianças: não podem andar sozinhas, falar com homem que não seja da família, exibir o corpo, abrir conta em banco ou ter passaporte. Para tudo, precisam da permissão de um homem (pai, irmão, marido e até do filho).
Em novembro de 2007, uma jovem de 19 anos, estuprada por sete homens, foi condenada a 200 chicotadas e seis meses de prisão por estar num carro com um amigo. Isso gerou protestos até do governo americano. O rei perdoou. Não existem estatísticas de estupro. Mas a palavra corre na boca das meninas, sobretudo as jovens. Para Al Jahara Khaled, de 18 anos, a abaya acaba sendo proteção.
— É proteção. Mas é também a nossa essência.
Às vezes desejo não usá-la. Mas aí penso: é ótimo, assim as pessoas não veem como estou vestida — disse, apontando para o sapato verde, que não combina com a camiseta rosa.
A cirurgiã plástica Claudia Alves Silva Machado — a primeira brasileira com contrato para trabalhar numa clínica saudita — consegue ver romantismo onde ativistas do mundo inteiro veem discriminação e humilhação das mulheres.
— Mudei meus conceitos desde que cheguei aqui. Mulher é superprotegida. Vejo os cuidados que eles têm com mulher, na preservação dos costumes. Tem muita mulher que trabalha e tudo o que ela ganha é dela — conta.
Na verdade, a Arábia Saudita tem uma das mais baixas taxas de mulheres trabalhadoras do mundo, segundo a Human Rights Watch: 4%.
Vista do alto, Riad é uma cidade cheia de pontos pretos: as mulheres nas suas túnicas. Não dá para ficar muito na rua: a túnica vira uma estufa insuportável. As ruas são o espelho da contradição de um país que oscila entre as tentações do século XXI e costumes medievais.
Numa praça no centro de Riad, cabeças literalmente rolam. É o lugar de execuções. O ritual da decapitação acontece às sexta-feiras de manhã, como na época de Maomé: com um facão de forma arredondada. Amir, filho de Iara, já assistiu a quatro. O que sentiu? — É como se fosse um filme na TV — diz.
Há sinais de mudanças no país desde que o rei Abdullah assumiu o comando, em 2005, depois da morte do rei Fahd. No mesmo ano, ele autorizou as primeiras eleições municipais.
Uma reforma no Ministério tirou conservadores de posições-chave no governo e nomeou uma mulher como vice-ministra para educação de mulheres.
Uma reforma que passa longe do que o economista Mohamad al-Qahtani e sua mulher, Maha, sonham para o país. O casal assinou no dia 13 de maio, com um grupo de 75 sauditas, uma petição ao rei pedindo o equivalente a uma revolução: direito de escolher um Parlamento, fim de tribunais secretos, liberdade de expressão, pluralismo político e cultural, fim da discriminação contra mulheres. Enfim, democracia.
Mas o rei acaba de anular as eleições locais parciais programadas para este ano. Para Qahtani, é justamente a ausência de liberdade que faz proliferar grupos terroristas no país.
— Dê às pessoas a liberdade de expressão, deixe que sejam parte da sociedade. Democracia é uma experiência. As pessoas podem errar na primeira escolha, mas, na segunda, acertam.
Deborah Berlinck - Enviada especial a RIAD
Um grupo de mulheres desceu de um carro preto, escoltado por um homem. O único indício de que eram do sexo feminino era a abaya, a túnica das mulheres sauditas.
Nem traço de pele, do olho, dos pés ou da silhueta. Usavam luvas, sob um calor de quase 40 graus, e tinham o rosto coberto por um véu sem orifícios. Tudo preto.
Iam rezar numa mesquita? Não, entraram em disparada num moderníssimo shopping de Riad, capital da Arábia Saudita, direto para a butique Guess, marca americana de roupa jovem e sexy.
— Aqui é 8 ou 80. Tem gente que quer ser 8, superliberada, ou 80, super-religiosa — comentou a carioca Iara Silva, 48 anos, ao cruzar com os vultos negros.
Iara anda coberta dos pés à cabeça por opção: se converteu ao Islã. Da infância no colégio de freiras Pio XII, em Guadalupe, essa filha de militar católico foi parar na Arábia Saudita após se casar com um nova-iorquino convertido ao Islã.
O que Iara chama de mulher “liberada” equivale a uma freira no Brasil. A maioria das mulheres sauditas, além do véu, usa uma espécie de máscara que só deixa os olhos de fora. A liberada mostra o rosto, e as “superliberadas” maquiam exageradamente os olhos, usam a túnica ligeiramente apertada e, quando podem, mostram um pedaço do cabelo.
Sutileza que só saudita percebe.
Bem-vindo à Arábia Saudita. Neste país, dono de 25% das reservas confirmadas de petróleo do mundo, uma família — Saud — instaurou um regime monárquico absolutista, e já exercia o poder antes mesmo da criação do reino, em 1932.
Não há partidos políticos nem Constituição.
Quem questiona o regime ou a religião é preso.
Para acalmar os insatisfeitos, a família real, com seus inúmeros príncipes (calcula-se em 200 os descendentes diretos do rei e em 7 mil os membros da família), distribui privilégios. A família controla o petróleo, o que a torna fonte de emprego.
E tem apoio dos EUA.
— O poder quase absoluto da família corre o risco de durar enquanto durarem as reservas de petróleo — avalia Pascal Ménoret, pesquisador da Universidade de Princeton, nos EUA, e autor de “O enigma saudita”.
A Arábia Saudita pratica uma interpretação fundamentalista do Islã sunita, conhecida como wahhabismo. O país funciona segundo a sharia (lei islâmica). A religião dita cada aspecto da vida: a forma como as mulheres se vestem, como os homens se portam, o que comem.
O dia-a-dia dos sauditas gira em torno da família. Alguns, como Abdullah al-Mousa, comerciante, olham para o Ocidente como um antro de perdição: — Estive na França, na Holanda, na Suíça.
É horrível! A vida em família está sendo destruída. As pessoas estão vivendo separadas, sozinhas.
Mas os religiosos estão submetidos à família real, diz Ménoret. E, na falta de códigos, o sistema judiciário virou loteria: — Quando você entra num tribunal ou numa delegacia, tudo é possível — diz.
Por lei, mulheres são tratadas como crianças
Mulher não tem vez. De todas as violações de direitos humanos na Arábia Saudita, que incluem decapitação em praça pública, a segregação de mulheres é a parte mais visível. Maha alQahtani, 36 anos, estudou e morou 12 anos com o marido saudita nos EUA. De volta a Riad, em 2002, com diploma universitário, criou um pequeno negócio com uma amiga americana. Mas não pode assinar um papel sem o marido.
— Não é só a questão da mulher. Aqui, não temos direitos básicos como seres humanos.
Mulheres, na Arábia Saudita, são consideradas, por lei, menores de idade. São tratadas como crianças: não podem andar sozinhas, falar com homem que não seja da família, exibir o corpo, abrir conta em banco ou ter passaporte. Para tudo, precisam da permissão de um homem (pai, irmão, marido e até do filho).
Em novembro de 2007, uma jovem de 19 anos, estuprada por sete homens, foi condenada a 200 chicotadas e seis meses de prisão por estar num carro com um amigo. Isso gerou protestos até do governo americano. O rei perdoou. Não existem estatísticas de estupro. Mas a palavra corre na boca das meninas, sobretudo as jovens. Para Al Jahara Khaled, de 18 anos, a abaya acaba sendo proteção.
— É proteção. Mas é também a nossa essência.
Às vezes desejo não usá-la. Mas aí penso: é ótimo, assim as pessoas não veem como estou vestida — disse, apontando para o sapato verde, que não combina com a camiseta rosa.
A cirurgiã plástica Claudia Alves Silva Machado — a primeira brasileira com contrato para trabalhar numa clínica saudita — consegue ver romantismo onde ativistas do mundo inteiro veem discriminação e humilhação das mulheres.
— Mudei meus conceitos desde que cheguei aqui. Mulher é superprotegida. Vejo os cuidados que eles têm com mulher, na preservação dos costumes. Tem muita mulher que trabalha e tudo o que ela ganha é dela — conta.
Na verdade, a Arábia Saudita tem uma das mais baixas taxas de mulheres trabalhadoras do mundo, segundo a Human Rights Watch: 4%.
Vista do alto, Riad é uma cidade cheia de pontos pretos: as mulheres nas suas túnicas. Não dá para ficar muito na rua: a túnica vira uma estufa insuportável. As ruas são o espelho da contradição de um país que oscila entre as tentações do século XXI e costumes medievais.
Numa praça no centro de Riad, cabeças literalmente rolam. É o lugar de execuções. O ritual da decapitação acontece às sexta-feiras de manhã, como na época de Maomé: com um facão de forma arredondada. Amir, filho de Iara, já assistiu a quatro. O que sentiu? — É como se fosse um filme na TV — diz.
Há sinais de mudanças no país desde que o rei Abdullah assumiu o comando, em 2005, depois da morte do rei Fahd. No mesmo ano, ele autorizou as primeiras eleições municipais.
Uma reforma no Ministério tirou conservadores de posições-chave no governo e nomeou uma mulher como vice-ministra para educação de mulheres.
Uma reforma que passa longe do que o economista Mohamad al-Qahtani e sua mulher, Maha, sonham para o país. O casal assinou no dia 13 de maio, com um grupo de 75 sauditas, uma petição ao rei pedindo o equivalente a uma revolução: direito de escolher um Parlamento, fim de tribunais secretos, liberdade de expressão, pluralismo político e cultural, fim da discriminação contra mulheres. Enfim, democracia.
Mas o rei acaba de anular as eleições locais parciais programadas para este ano. Para Qahtani, é justamente a ausência de liberdade que faz proliferar grupos terroristas no país.
— Dê às pessoas a liberdade de expressão, deixe que sejam parte da sociedade. Democracia é uma experiência. As pessoas podem errar na primeira escolha, mas, na segunda, acertam.
Um comentário:
Eu nunca assiti a uma execucao, mas Deborah Berlinck diz no artigo que eu assisti a 4!!! Quem quiser saber mais sobre como e vivendo na Arabia Saudita, pais em que resido nos ultimos 16 anos, e so escrever para cariocainriyadh@hotmail.com.
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