Valor Econômico
15/05/2009
Maria Cristina Fernandes
Não há registro de subsecretário de Estado para a América Latina mais crítico da política americana para o continente que Arturo Valenzuela, o cientista político chileno de 66 anos, há meio século morador dos Estados Unidos, que foi nomeado para o posto esta semana pelo presidente Barack Obama.
A sabatina a que se submeterá no Congresso será um termômetro para o limite das mudanças que as convicções de Valenzuela imporão ao cargo. Não há alterações na política antidrogas, da lei de imigração ou na sobretaxa de importações que não encontrem ali os maiores focos de resistência.
As convicções de Valenzuela são bem conhecidas pelo Congresso americano. Em depoimento à Casa, em março de 2007, Valenzuela discorreu sobre os maiores fracassos da política de George W.Bush para a região.
Começou por classificar o apoio a Pedro Carmona, o líder da federação empresarial venezuelana que mobilizou o golpe militar que afastou Hugo Chávez do cargo por 48 horas em 2002, como o gesto mais desastrado da diplomacia americana nas crises por que tem passado a região nos últimos anos.
Desnudou as sanções sofridas pelo México e pelo Chile que, assentados no Conselho de Segurança Nacional das Nações Unidas, negaram apoio à ação militar contra o Iraque. Mostrou como o Ato Patriótico, aprovado pelo Congresso americano na esteira do ataque terrorista de 11 de setembro, dificultou o consenso em torno de uma lei de imigração, aumentando o risco potencial à segurança do país trazido pela existência de 12 milhões de trabalhadores ilegais.
Corresponsabilizou o governo americano por recusar à Argentina, em 2001, pacote de ajuda financeira semelhante àquele que socorrera o Brasil e o México nos anos Bill Clinton, o que teria empurrado o presidente argentino Fernando de la Rua à renúncia e mergulhado o país na pior recessão de sua história.
Denunciou o reducionismo das políticas de cooperação com países como Colômbia e Peru que privilegiam o combate às drogas em detrimento de acordos bilaterais de comércio que confrontam o protecionismo agrícola americano.
O tom cáustico do depoimento foi aliviado em raros momentos como o elogio à convergência entre os governos brasileiro e americano na importância estratégica do biocombustível.
Se a crítica de Valenzuela à política externa do bushismo para a América Latina deve-se ao seu engajamento no governo de seu antecessor, isso só reforça a percepção do coordenador do MBA em Relações Internacionais da FGV, Matias Spektor, sobre o perfil marcadamente político de sua escolha.
Será certamente a primeira vez que o cargo será ocupado por alguém que já atuou como consultor em propostas de reforma política, eleitoral e constitucional em cinco países da região - Bolívia, Chile, Equador, Colômbia e Brasil, como está descrito na sua página na internet da Universidade de Georgetown.
Construiu uma reputação crítica ao binômio presidencialismo/multipartidarismo que marca a engenharia institucional das democracias latino americanas numa produção acadêmica que soma nove livros sobre a região. Militou na defesa do parlamentarismo como solução institucional para a América Latina na companhia de intelectuais e políticos tucanos, como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, de quem é próximo.
Para o coordenador do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da USP, Rafael, Villa, ele reune três características que o distinguem de todos que já passaram pela pasta: o conhecimento sobre os sistemas políticos latino-americanos, a experiência em assuntos diplomáticos da região, adquirida no governo Clinton, e a atuação na defesa de direitos humanos em organizações não-governamentais.
A diplomacia deverá lhe impor a lei do silêncio em críticas como a que fez recentemente à reeleição do presidente da Colômbia, Cesar Gaviria. Na avaliação de Spektor, o que o perfil político da escolha indica é que a América Latina pode vir a ter uma visibilidade maior na política externa americana do que sob a condução de Thomas Shannon, o diplomata de carreira que hoje ocupa o cargo.
Spektor chama a atenção não apenas para a força do Congresso na formulação da política externa como para a contraface de Valenzuela na Casa Branca, Dan Restrepo, assessor de Obama para a América Latina durante a campanha que hoje tem assento no Conselho de Segurança Nacional. Restrepo não tem posições visivelmente conflitantes com as de Valenzuela, mas, ao contrário deste, que se incorporou à equipe pelas mãos de Hillary Clinton, está com Obama desde sempre.
Igualmente cético sobre as chances de mudanças significativas na política externa americana para a região, Bernardo Sorj, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vê uma agenda marcadamente comercial, ditada pelo avanço da China na região, mas aposta no simbolismo da indicação de Valenzuela.
Conta, por exemplo, que, antes da indicação, o futuro subsecretário demonstrou sensibilidade ao diagnóstico de falência da política antidrogas nas Américas formulada pelos ex-presidentes Cesar Gaviria (Colômbia), Ernesto Zedillo (México) e Fernando Henrique Cardoso que tocou em temas polêmicos como a descriminalização de drogas leves.
Não há quem aposte na desmilitarização da política antidrogas na região, mas Spektor, por exemplo, antevê um debate mais intenso com o Congresso americano sobre políticas de restrição ao comércio de armas. É uma antiga demanda mexicana, em apuros para combater seus narcotraficantes que cruzam a fronteira para se abastecer. A questão é saber se os EUA de Obama terão mudado a ponto de aceitar que o ponto chave da diplomacia americana para a região está, na realidade, em suas políticas domésticas.
Maria Cristina Fernandes é editora de Política.
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