Época
25/05/2009
Para o ex-presidente, o problema do Brasil não é mais o desenvolvimento – é educação e segurança
Helio Gurovitz e Paulo Moreira Leite
ÉPOCA – Desde aquela ideia dos BRICs, muitos dizem que o Brasil é um país que terá um grande futuro, mesmo da explosão da crise. O que o senhor acha disso?
Fernando Henrique Cardoso - Os BRICs foram uma criação do [banco americano] Goldman Sachs. Como conceito, isso não existe. São países absolutamente disparatados, que têm em comum só uma coisa: são grandes, são populosos. O critério não é desenvolvimento propriamente dito da economia, nem da sociedade. É peso na economia global. E a população conta. Eu tive um professor de economia política, um francês chamado Paul Hugon, que vinha da Faculdade de Direito da França, de Lyon. Ele tinha uma enorme confiança no Brasil por causa do desenvolvimento demográfico. Os economistas depois vieram criticar isso, falar que o que importa é a renda per capita, a massa populacional. Pelo contrário, olha a Índia, a China. Agora voltamos à ideia de que a massa populacional tem importância. Mas não é só isso, porque a Indonésia tem massa de população também. A Nigéria também tem. Então é a massa de população, mais um certo avanço tecnológico, de inserção na economia global, etc. Nesse sentido, como a economia está globalizada em função não da população, mas da internet, da interconexão dos fluxos de finanças no mundo todo – o que é específico da economia atual é essa rápida conexão dos fluxos financeiros e a possibilidade de dispersão do processo produtivo com controle, por causa também da internet –, na medida em que esses países se inserem na economia global, acho que tem sentido falar em BRICs. Mas eles são muitos díspares. O interessante é que faz pouco tempo já se começava a pensar que o B ia sair, e a sigla ia virar RICs. Não virou RICs. Projetando isso para daqui a 11 anos, provavelmente essas massas populacionais, com a condição de que a sociedade se organize, de que a economia se modernize e possa ser interconectada, terão um papel.
ÉPOCA – Em que medida essa crise, ao colocar o poderio americano numa perspectiva um pouco mais perto do chão, representa uma oportunidade para nós?
FHC - Dependendo de como saiam os outros países, o Brasil pode relativamente sair-se melhor. O que não quer dizer que não tenha havido perda geral, porque crise é perda geral. Ninguém sabe quanto o mundo perdeu de riqueza, mas calcula-se de 30 a 40, 50 trilhões. É brutal. Portanto, vamos ver quem vai perder mais e quem vai perder menos. Os Estados Unidos certamente vão perder. Mas duvido que os Estados Unidos, mesmo depois da crise, não saiam ainda à frente, porque hoje a economia americana deve ser de 15 trilhões. A nossa é 1,3. A americana é 15, para ter uma ideia. A chinesa deve ser da ordem de 4...
ÉPOCA – É por aí.
FHC - Portanto, é muito longe ainda da economia americana. A russa não é maior que a nossa. O problema, para responder quem vai sair melhor, é quem vai ser mais afetado. Seguramente, as economias em que o sistema financeiro era mais forte serão mais afetadas, quer dizer, Europa e Estados Unidos. A crise estourou ali, no sistema financeiro. Agora, as economias que são muito, como eles chamam em inglês, export-oriented (orientadas para exportações), como a China, vão sofrer também, porque os grandes mercados são os mercados europeu, americano e japonês, que estão caindo. E isso nos afeta também, porque, mesmo que a gente exporte para a China, a China vai importar menos, porque ela usa uma parte do minério de ferro nosso para virar aço para exportar para os Estados Unidos. E os países que têm uma economia, digamos, mais diversificada, como é o caso do Brasil, provavelmente têm mais recursos de defesa. [Mais] até do que a [economia] chinesa, porque agora é que [lá] estão dizendo: “Vamos fazer uma reorientação do mercado externo para o mercado interno”. Aqui, a nossa economia não é muito aberta.
ÉPOCA – Apesar de tudo...
FHC - Apesar de tudo. Em proporção, a parte de importação e exportação é menos de 20%. Então, é possível que relativamente saiamos melhor. Agora, tudo vai depender de quanto dura a crise. Porque, se a crise for de mais longo prazo, acaba produzindo desgastes maiores. Se ela for de curto prazo – entendendo, por curto prazo, uns 2 anos e já passou 1 –, se até meados do ano que vem isso não tiver sido retomado, aí as conseqüências começam a se complicar e nós também perdemos velocidade. É difícil que o Brasil, neste ano, cresça muito mais que ao redor de zero. Não dá, não tem como. Isso é uma coisa ruim, porque fomos mais uma vez pegos quando estávamos alçando voo. Não é a primeira vez. Aconteceu em 2001, aconteceu no ano passado também. Vai alçando voo, de repente vem um vento negativo – e lá vai. Isso diminui a capacidade de alcançarmos a velocidade de cruzeiro. E o problema, para 2020, é quem terá alcançado a velocidade de cruzeiro. Que tenha um desenvolvimento sustentável, mantidas as pré-condições para o crescimento e desenvolvimento científico e tecnológico que deem base a uma economia mais moderna, instituições que possam funcionar para permitir uma integração saudável no mercado internacional. Vou pegar um exemplo absurdo: ontem veio aqui o Michael Pettis, professor da Universidade de Pequim. Ele é americano e mora em Pequim há 7 anos. Para minha surpresa, ele tem uma visão pessimista sobre o que possa acontecer na China. Ele acha que o sistema financeiro chinês é um sistema precário e que não é tão fácil fazer essa transição da exportação para o consumo. Diz que os chineses são altamente tendentes a poupar e que agora é preciso gastar. Eles não reagem à baixa da taxa de juros. Se você baixa o juro, não é por isso que eles compram, eles não saem gastando. Então, se a economia da China desandar, complica mais ainda o panorama todo.
ÉPOCA – A China apareceu com um modelo de desenvolvimento novo no mundo nos últimos anos. É uma proposta que, por um lado, causa horror para a gente, porque é baseada em pouca liberdade, num modelo autoritário, centralizador, mão-de-obra barata etc. Por outro lado, gerou um mercado gigantesco, gerou uma forma de desenvolvimento que alguns chegaram a entender que seria o novo motor da economia. Qual é a sua opinião?
FHC - Sem dúvida alguma, [a China] cresceu muito. Se transformou num motor até para a própria economia brasileira, nossas exportações cresceram muito para lá. Mas, guardadas as proporções, de 15 trilhões para 4. Motor do mundo mesmo é Europa, Estados Unidos e Japão. E continuam sendo. A China ainda vai ser, mas às vezes exageram um pouco. Vamos discutir mais um pouquinho a ideia do motor. Quem é que arranca? A China tem esse modelo de desenvolvimento que é bastante enaltecido. Mas, como sou mais velho que vocês, lembro de como a gente enaltecia o modelo japonês e, antes do japonês, o soviético. A certa altura, eles disseram: “Vamos ultrapassar os Estados Unidos”. E estavam ultrapassando em produção siderúrgica, de cimento etc. E por que caíram? Aí é uma característica do capitalismo. O modo capitalista de produção depende continuamente de inovações. A grande transformação que ocorreu nos últimos anos, a partir dos anos 70, foi a da cibernética, da informática. Foi uma mudança brutal. E, depois, a velocidade enorme nos fluxos de capital e, bem depois, o descolamento que vimos agora entre a base produtiva e o fluxo de capital. A União Soviética estava crescendo muito. Ela mandou o Sputnik para o espaço antes do mundo ocidental – parecia que ia fazer tudo antes. Parou pela falta de desenvolvimento no setor que se modernizou mais, na base da internet precisamente. Onde eles fizeram grandes avanços, senão não poderiam mandar o Sputnik? Na base do hardware. Quando houve a miniaturização, o PC, essas coisas, eles não conseguiram acompanhar. Tentaram imitar quando os japoneses e coreanos entraram na corrida, já nos anos 80. A cada dois meses, chegava um novo gadget, um novo instrumento. Eles não acompanharam. Tem um livro do Manoel Castells que analisa isso, que mostra o seguinte: que o comando militar soviético percebeu isso. E, como tudo na União Soviética tinha sido feito endogenamente, eles competiam, fizeram a bomba atômica, o Sputnik, iam avançando. Mas era tudo endogenamente, com um método mais brutal do que sofisticado. Quando perceberam que o sofisticado ia mais depressa, o que os soviéticos fizeram? Começaram a copiar. Eles colocaram a máquina industrial soviética...
ÉPOCA – Aí começou a engenharia reversa...
FHC - Engenharia reversa, imitar, aquela coisa toda. Mas não deu tempo. E mais: como a sociedade soviética era autoritária, o que aconteceu? Eles não difundiram para a sociedade os avanços tecnológicos. No cotidiano, o que aconteceu nos últimos 50 anos teve um impacto maior do que a revolução industrial. Na revolução industrial, a máquina a vapor mudou muita coisa, a locomotiva também, mas quantas pessoas andavam de locomotiva? Isso não afetava o dia-a-dia. Agora não. [A mudança] o afeta o dia-a-dia das pessoas. No caso das sociedades ocidentais, primeiro afeta a vida da família, da mulher, household. Com máquina de lavar roupa, telefone celular, fax. Na União Soviética, eles tinham medo da transmissão de dados. E o mundo moderno vive da transmissão de dados. Digitalizou tudo.
ÉPOCA – Então há uma relação com o modelo político.
FHC - Sim. Por isso não sei qual vai ser a capacidade de a China seguir. É um ponto de interrogação. Não estou dizendo que não vá seguir. Mas não sei. Será que, na nova onda de desenvolvimento, a China terá condições de acompanhar? Assisti anteontem a uma exposição sobre o que está sendo feito na internet nos Estados Unidos. Você agora vai ter um chip pendurado aqui, e o chip lê para você as coisas. Você quer saber que horas são, você pega o chip, você põe assim, desenha no seu braço um relógio e dá a hora. E por aí vai. É uma coisa que você fica aterrorizado. Como é que isso vai se traduzir na produção depois? Não sei. É preciso saber. E a questão do regime político tem certas consequências para a adaptação da modernidade.
ÉPOCA – Muita gente diz isso.
FHC - Não sei na China como vai ser isso. Não estou dizendo que eles não sejam capazes – eles já foram capazes de muita coisa.
ÉPOCA – Se eles têm força para ser motor do mundo...
FHC - Não sei se têm isso aí. Há muito tempo tenho na minha cabeça – pode ser que eu esteja errado, isso é mera percepção, não é nenhuma análise – que a força americana advém da relação da universidade com a produção e o governo. Conseguiram um modelo em que o motor daquilo ali é a inovação tecnológica, que se transmite para a empresa e para o governo. E há universidades suficientemente fortes para não temer a relação nem com o Estado nem com a empresa. Estão em permanente ligação.
ÉPOCA – É o modelo do Vale do Silício?
FHC - É isso mesmo. Isso funcionou. Como vai ser na nova etapa? O que vai acontecer nesses próximos anos? Que impacto isso vai ter? E os sistemas políticos têm uma certa [influência]. Eu diria que uma das vantagens que o Brasil tem é que conseguimos, bem ou mal, começar a institucionalizar a democracia. Liberdade e regulação. A China conseguiu uma certa modernização dessa dicotomia no setor empresarial. Não no político. No empresarial, eles conseguiram conviver com uma certa capacidade de controle e com um espaço de ação. A Rússia conseguiu menos. Até hoje, dá a sensação de que a Rússia não conseguiu ainda. Em função, em parte, dessa herança. Ela continua autoritária, com gangues, continua sem haver propriamente um estado de direito que garanta a propriedade.
ÉPOCA – E isso não garante um ambiente de negócios que atrai capitais produtivos...
FHC - Exatamente. E [a Rússia] está recuando. Ela é muito rica porque ela tem petróleo, tem ouro, tem metais... Nós temos talvez melhores condições de saída. É possível que tenhamos melhores condições de saída. Digo sempre que é possível porque depende do engenho humano. Aqui tivemos a sorte: o sistema econômico e o sistema político foram sendo montados e, até agora, a sociedade começa a ter uma certa movimentação, uma capacidade de organização, as ONGs se desenvolveram, há programas sociais para poder incorporar mais gente. Nossa sociedade se ocidentalizou.
ÉPOCA – No bom sentido.
FHC - No bom sentido. A chinesa até certo ponto. A indiana, não sei dizer, tenho muita dificuldade. fui mais à Índia que à China, mas sinto mais facilmente a China que a Índia. A Índia é mais complicada, é um mosaico. É muito mais heterogênea. A China tem uma coisa interessante. Escrevi um artigo que chama a atenção para isso. Um dos teóricos da formação do capitalismo foi Max Weber. Curiosamente, Weber tem uma análise na qual ele diz que uma das eventuais possibilidades históricas de desenvolvimento do capitalismo era na China – e diz por quê. Cito até isso. Não vamos entrar em detalhes porque desvia do nosso foco, mas, primeiro, a China é mais homogênea, como cultura e tal. Segundo, ela tinha o mandarinato. O mandarinato era a meritocracia. Mandarim não era um titulo dado: é mérito.
ÉPOCA – É algo que o Partido [Comunista Chinês] preserva.
FHC - Preserva. O sistema tem isso: é uma burocracia meritocrática. Uma forma de promover os melhores. O mandarim não herdava o título. Eram concursos, exames e exames o tempo todo. Eles fazem isso na China de alguma maneira. O partido acompanha a carreira, analisa, prepara gerações. Descobriram uma maneira de mudar em que eles mudam por geração. Passou o tempo, muda. Não é como nós, que mudamos com a eleição. Esse professor que esteve aqui me disse o seguinte: uma das províncias de lá, o nome eu já esqueci, tem 100 milhões de habitantes e só pode mandar não me lembro se 7 ou 17 estudantes para uma universidade de altíssima categoria. São só os melhores mesmo. Não sei se isso dá certo. Tomara dê, mas está em aberto. Nós aqui, nosso caminho já está mais ou menos previsto. É difícil que você dê um golpe e retroceda. Na Rússia, não está seguro. Já retrocedeu.
ÉPOCA – Quando o senhor fala de engenho humano, que o futuro depende do engenho humano, do que está falando, genericamente?
FHC - É preciso liderança e capacidade, que não é do líder, é da sociedade, de, num momento histórico, aceitar a inovação. Você não inova quando quer e porque quer. Você inova quando existe alguém ou alguéns, normalmente alguéns, que venham com uma fresta e quando a sociedade se abre para ver a fresta. É difícil porque ao contrário do sentido comum, ninguém gosta de mudar nem de reformar, porque tem medo. Maquiavel já dizia que o problema da reforma é que os que vão ser beneficiados não sabem que vão ser, e os que vão perder percebem na hora e gritam. Então, não é fácil essa mudança, essa reforma necessária. É preciso liderança, mas não é só liderança – é uma brecha histórica. Por que eu chamei atenção para a coisa americana da universidade? Porque lá eles rotinizaram a mudança. São predispostos a aceitar a mudança. Vimos agora a eleição do Obama. É uma prova de mudança. Saiu do Bush – que foi eleito, fez guerra e, depois da guerra, foi reeleito – para o contrário. E isso não desorganiza a sociedade. Vai sair na China, vi hoje, a memória do primeiro-ministro chinês [Jao Jiang]. O Deng Xiaoping liquidou com ele. Porque ele quis liberalizar um pouco mais, deu briga na cúpula. No mundo ocidental, são descobertas formas de mudança sem necessariamente quebrar. Na Rússia, fizeram uma tentativa de compor uma mudança e é muito difícil mudar. Na África, é dificílimo tirar o presidente.
ÉPOCA – E no Brasil?
FHC - No Brasil, entramos já numa fase que vai indo. Por isso, é muito importante que não haja quebra de regras.
ÉPOCA – Mas na história brasileira, nos momentos em que a mudança se tornou necessária, houve ruptura institucional...
FHC - Houve ruptura. Até a minha posse. Mas aqui já temos flexibilidade suficiente na sociedade, pesos e contrapesos para impedir algo disruptivo. E os líderes entendem isso. O Lula entende isso, sente isso. Querer é uma coisa – e poder é outra. Mas não é porque não pode, é que não dá, vai ser fora da regra. Acho eu, e tomara que seja, porque isso é bom para o país. É difícil o aprendizado de alternância sem ruptura. Por que eu me esforcei tanto na transição? Por isso. Porque eu tinha consciência disso. Não dá para chegar a um ponto em que a sociedade se divida irremediavelmente. Por que eu me opus ao impeachment do Lula? Não porque seja ilegal, legalmente podia. Porque, mesmo que ele ganhasse, perdia, porque se criaria uma divisão na sociedade. Não pode. Historicamente, a sociedade tem que absorver esse processo todo e desenvolver mecanismos de defesa. Então nossa sociedade vai estar melhor desse ponto de vista também em 2020. A despeito da crise, porque sou realista o suficiente para perceber que a crise vai nos infligir mais danos do que parece...
ÉPOCA – Mais danos do que benefícios.
FHC - Mais danos do que benefícios. É crise, mas, a despeito disso, temos a elasticidade para voltar a crescer e avançar, como os Estados Unidos, como a Europa. E a China, vai também. Precisa ver até que ponto isso vai impactar na sociedade chinesa.
ÉPOCA – Quando o senhor fala em avançar, a gente como país teria que avançar por onde?
FHC - Estamos muito intoxicados pela questão da previsão do mercado, da economia. É compreensível, e isso foi um fator limitativo enorme. Essa limitação, de alguma maneira, foi pouco a pouco superada. Agora temos outras que não conseguimos ainda enfrentar. Vou usar uma frase banal: não fizemos a revolução educacional no Brasil. Isso não quer dizer que não tenhamos nos empenhado. Não estou falando uma coisa partidária, nem defesa do que fiz. Houve acesso à educação? Houve. Pela primeira vez, todas as crianças estão na escola. Isso é muita coisa, são 40, 50 milhões de crianças. O Brasil não avalia o que é isso. Todo dia estão na escola e todo dia comem na escola. Quando vejo o negócio de Fome Zero, esqueceram que temos o maior programa nutricional do mundo: a merenda. E não é do meu governo, vem de antes. O que eu fiz foi municipalizar a compra. Mas já estava aí e continua. Não estou querendo negar os avanços ocorridos. Mas, se você tem pela primeira vez a possibilidade de as crianças terem acesso à escola, os pais não tiveram. Então há um problema complicado, porque, se você vai no Japão, na China, na Coreia, a cultura tradicional era uma cultura bastante enraizada. A família, embora não tivesse talvez educação formal, tinha valores importantes e transmitia aos filhos. Parte da cultura, em sentido antropológico, a família garantia. Aqui, com a migração interna, com a desorganização familiar, com a pobreza, com tudo isso e com falta de escola, não tem. Então, a escola no Brasil não tem em casa. Talvez o diferencial maior no resultado escolar dos alunos seja a casa, a família.
ÉPOCA – Muita gente diz que o Brasil tem uma janela de oportunidade para aproveitar, para educar o seu povo. Que, até agora, a gente veio na base da mão-de-obra, da riqueza natural, de coisas que não precisa fazer muito esforço intelectual para produzir. E que a gente tem uns 20 anos aí, porque depois vem a África. Depois eles vão chegar com tudo também. E que, se a gente não aproveitar esses anos...
FHC - É a brecha demográfica. Nossa população média não é velha ainda e já não é tão nova. Isso é importante e dura 20, 30 anos. E temos que aproveitar. Até certo ponto, aproveitamos. Mas a pressão sobre o mercado de trabalho está diminuindo. Agora aumentou, o desemprego dobrou por causa da crise. Ninguém prestou atenção: de 4,5% para 9%. Pelo Dieese são 15%. Cresceu bastante. Mas imagina se a pressão demográfica fosse como há 10 anos, quando o volume de gente que chegava ao mercado de trabalho era maior. Essa brecha permite que seja efetivamente possível investir mais na educação. Investimos, mas não o suficiente, porque aí é fácil falar e difícil fazer. Uma escola que oferece 3, 4 horas de aula para uma criança, uma criança que não tem sustento cultural na família, não oferece nada. Então, se você quiser chegar, olhando para frente, em melhor condição, é preciso acelerar o que já começou – uma transformação maior na educação. Já começou, é indiscutível. Em vários Estados você tem esforços, isso é inegável. Mas é preciso haver um esforço persistente para ampliar a permanência da criança na escola. O mais difícil ainda, melhorar o nível dos professores. Isso é crucial. E ter a coragem de entender que, no mundo moderno, não podemos continuar ensinando coisas que não são úteis, que não são necessárias. [É preciso] mudar o currículo profundamente. Não sei a resposta. Não sei se o que eu vou dizer tem sentido: será que são necessários 5 anos para se formar em direito? Por que 5? Quantos para se formar em economia? A velocidade do mundo é tal que você hoje talvez não precise de tanto tempo. E estudamos na escola coisas que não são úteis. Até hoje sou capaz de recitar para vocês pedaços do Cícero (Gallia est omnes divisa in partes três, quarum unam...). Isso nunca me serviu para nada. Estudei 7 anos de latim. É melhor aprender bem o português. E talvez o inglês. Não estamos fazendo o que os chineses estão fazendo. Eles estão alfabetizando em inglês maciçamente. Nós aqui ainda não. Matemática, coisas elementares. Como é que vai ser a formação? Fui, até agora, professor da Brown University, nos Estados Unidos. Uma grande universidade, Ivy League, uma das melhores. O aluno entra lá no “college”, faz o primeiro ano, o segundo ano. O terceiro ano já começa a ser diferente: ele faz o currículo dele. E não há contradição em estudar poesia grega, matemática e biologia. Aqui, vejo nos meus netos: é uma angústia. Com 17, 18 anos, têm que escolher a profissão. Entrou ali é uma gaveta, não sai, é um túnel. E é um massacre para conseguir entrar. Tenho uma neta que entrou em três faculdades de direito. Terminou o primeiro ano e desistiu, “ah, eu não quero isso”. Então perdeu tudo, volta, vai fazer outra coisa. Quem tem 17 anos não sabe o que quer. Era preciso ter uma base maior, dar mais flexibilidade, mais liberdade. É o contrário do que se costuma fazer no Brasil, [com uma] regra geral para o país todo. Se você quiser uma sociedade dinâmica e moderna, é o contrário. Não sei se, no futuro, você vai ter um curso de engenharia. Aliás, o que se chama hoje de engenharia é muito diferente do que no meu tempo se chamava de engenharia. Tem engenharia de alimentos, tem engenharia disso, daquilo. Daqui a pouco tem engenharia de turismo. São coisas diferentes porque o mundo é outro. Ainda estamos nesse aspecto um pouco ossificados, temos uma visão um pouco coimbrã das coisas. Mudar a educação é não só uma questão de acesso, o que se ensina no primário e secundário, mas também depois no próprio conteúdo do que se ensina. É dar mais flexibilidade na formação porque a pessoa não vai ter mais emprego, vai ter ocupação.
ÉPOCA – Tem um ponto, presidente, que o senhor mencionou: a ponte da universidade para a empresa. Aqui no Brasil, a gente tem a impressão de que é muito difícil você transformar o conhecimento em produto. E isso é crucial para ser competitivo no mundo de hoje. O que o Brasil deveria fazer?
FHC - Se você pegar as universidades, tradicionalmente é verdade isso. O brasileiro tem receio. Imagina uma empresa contratar um departamento. “Isso é inaceitável, é privatização”.
ÉPOCA – Que é palavrão aqui...
FHC - É palavrão. Mas o que está acontecendo? Está havendo uma multiplicação de escolas à parte desse mundo tradicional. As empresas também estão investindo mais em treinamento e educação. Mas ainda estamos longe. Vamos ver pela Petrobrás. Ela forma geólogos. Propicia os cursos de formação. Por isso o Brasil avança, porque a sociedade brasileira avançou mais que o Estado brasileiro. Se a sociedade precisa de outras coisas, ela faz, inventa uma saída. Não é o ideal, mas funciona. Porque a sociedade aqui é vibrante. E, na medida em que a gente consegue quebras as regras, não ser tão centralizado em Brasília... Tenho horror à centralização em Brasília, não porque eu tenha nada contra Brasília, mas o mundo moderno não funciona assim. O mundo moderno não funciona com estruturas hierárquicas e centralizadas. Ele funciona com estruturas mais dinâmicas, como a Al-Qaeda. Organiza, desorganiza, por cissiparidade, células, rejunta mais adiante. Como você aprende a mexer com internet? É fazendo, naturalmente. E nossa escola não é a escola do fazer. Temos sementes de modificação, em São Paulo, por exemplo, temos esse sistema de escola profissional técnica, as Fatecs e Etecs. São interessantes. Recebo aqui uma vez por mês, às vezes duas, estudantes do curso secundário do último ano. Eles visitam as coisas daqui, depois têm uma conversa comigo. É muito interessante. Eles dão o tema sobre o qual querem discorrer – só não pode partido, eleição, para não pensarem que estou doutrinando. É interessante: as Fatecs funcionam, você não vê diferença. Às vezes, para melhor. Também não vejo diferença entre ensino público e privado no nível. Outra coisa interessante é que as moças são mais audaciosas nas perguntas que os homens, em geral. Perguntam mais. A escolarização da mulher é superior à do homem, em geral. No começo, ficam um pouco encabulados, mas depois perguntam com muita propriedade. Não lembro o nome da última escola que esteve aqui. Só fizeram perguntas apropriadas.
O outro gargalo que eu vejo não tem nada a ver diretamente com a economia – claro que pressupõe uma economia dinâmica e um estado mais ou menos organizado para poder ampliar a educação e tal. O outro problema complicado é segurança, segurança pública. E aí vem droga, vem tudo junto. Ainda não encaramos isso na política, na visão do que é o Brasil do futuro. Um país decente é um país que tem crescimento, tem emprego, tem educação, mas tem segurança também. Desde segurança jurídica, acesso à justiça, essa coisa toda. Vou contar um caso só. Outro dia fui chamado, faz uns meses aí, pelo juiz [Fausto] De Sanctis, como testemunha de acusação do caso do dossiê Cayman.
ÉPOCA – Isso ainda existe?
FHC - Isso faz 10 anos. É a primeira vez que me chamam. Há dez anos, um caso que envolvia o presidente da República, um governador e dois ministros. Se, nesse caso, levam 10 anos para a primeira audiência, você imagina o que acontece... Não acontece nada. Então, segurança jurídica, segurança das pessoas, o que fazer com o crime. Algo está avançando. Você vê o caso de São Paulo. Aqui nesta região, o centro ampliado, a taxa de homicídio é acho que de 10 por 100 mil. É uma taxa mais ou menos igual à de primeiro mundo. Se você for andar por aí, podem roubar teu bolso, furto é muito maior, mas o homicídio caiu. E a gente sabe por que caiu. Participei com o instituto de um seminário, e em Harvard também existe um monte de estudos para mostrar que há uma relação entre a diminuição nas taxas de criminalidade e a quantidade de pessoas na cadeia. Tem que prender. Mas o outro lado é que a cadeia virou escola de crime. E o governo muitas vezes perde o controle sobre a cadeia, como aconteceu há alguns anos atrás naquele mês de maio. Como é que muda a cabeça também da própria justiça e do legislador? Tem uma porção de penalidades que não deviam ser de cadeia, porque senão você não tem cadeia suficiente para quem é criminoso mesmo e vai ensinar a quem não é tão criminoso assim o crime lá na cadeia. Em certas áreas, como é que você treina o juiz para entender? É muito difícil. Essas coisas a gente está longe de entender que são problemas para o crescimento do país, não da economia. Do país. Da vida da sociedade, da nação. O importante, daqui a 20 anos, não é saber quanto está o PIB. O PIB vai variar, acho que vai ser 0 esse ano. E ai, a culpa é do governo? A culpa não é de ninguém, pode ter sido um erro de política aqui e lá, mas são circunstâncias, o sistema capitalista funciona como sanfona mesmo, vai ter crise, pode regular à vontade.
ÉPOCA – O senhor está falando que, daqui a 20 anos, o importante vai ser como ficou nossa vida?
FHC - Isso, a vida das pessoas. A vida não é só mercado, não é só economia. Depende da segurança num sentido amplo, depende da educação...
ÉPOCA – Quer dizer, ao contrário do que disse a Margaret Thatcher, existe a sociedade.
FHC - Exatamente isso, a sociedade existe, não é o mercado (risos). A sociedade existe e as pessoas vivem na sociedade. Quando você tem predominância, como tínhamos no Brasil frequentemente, o que é que regulava e regula [a vida] até hoje? É quase só o mercado. Isso é ruim. Você não tem valores, não tem outras atividades, não tem lazer. Vocês poderiam fazer na revista, entrevistar a camada jovem, mas jovem mesmo, 18 anos, o que eles veem? Quais são os temas que os sensibilizam? Em várias classes, da alta à baixa. Essa meninada que votou no Obama, aqui estaria onde? Quem é que simboliza a aspiração dos que estão vindo? Que provavelmente vão estar muito mais focados no tema da felicidade – do bem-estar, não no sentido da riqueza material, do bem-estar mesmo, saúde, segurança – do que no resto. E não vão ficar tão preocupados, como a minha geração e até agora, com emprego, emprego, estágio. Minha filha, que tem 45 anos ou mais, renunciou à posição de professora da USP. Renunciou. Porque ela trabalha com educação, tem uma ONG importante e isso limitava o tempo dela. E o salário é baixo. Ela é doutora, tem uma carreira e renunciou. Isso, para a minha geração, é impensável. A gente tinha medo de ficar sem emprego. Já que você tem um emprego, segura, né? Até a aposentadoria. Para sempre. Para sempre. Não, as pessoas estão mais predispostas a mudar. Então é preciso perguntar a essa nova geração como vai ser a vida daqui a algum tempo, o que você quer fazer? Não sei se haverá tanta obsessão, como na minha geração e na de vocês também, pelo trabalho, que ocupa todo mundo em seu tempo inteiro.
ÉPOCA – Será que, então, a gente vai para aquela sociedade do lazer, como Marx dizia no Capital...
FHC - Se você lê começar a ler O Capital, no volume terceiro é fantástico. Tirando a parte política, que é uma visão da história que não se concretizou, a utopia dele era boa. No fundo, era mais sociedade e menos Estado, e era mais livre. Isso só pode ser imaginado quando a sociedade sair da escassez.
ÉPOCA – O senhor acha que a gente está indo para uma coisa menos de escassez?
FHC - Espero. Comparando quando eu nasci para hoje, que dúvida? A classe média brasileira não era o que ela é hoje não. Sou de classe média, nunca fui pobre. Mas, naquele tempo, a coisa era mais contada. Porque era contada na sociedade, havia menos bens materiais também. Quando eu era criança, queijo vinha de Portugal, queijo do reino, aquela bola. E uva também era importada. E pêra, maçã e tudo o mais, numa época do ano.
ÉPOCA – Qual era a utopia da geração do senhor, quando o senhor estava se formando?
FHC - Foi uma época boa, foi bem em 52, 53, Getúlio... Daí veio logo o Juscelino...
ÉPOCA – Pois é, o Brasil ali só dava certo.
FHC - Só. Liberdade e crescimento. Mas é a ideia de ter um país mais fechado. Muita reação contra...
ÉPOCA – Isso não vem de volta agora com essa crise?
FHC - Mas não consegue. Não consegue. Está de volta no jornal, na internet, mas no dia-a-dia acabou isso, não tem como. O fluxo de ideias, de bens, de serviços.
ÉPOCA – Mas essa visão assim, liberdade e crescimento, uma coisa fechada, era mesmo um sonho do Brasil, essa coisa daquela Copa de 58 que foi muito importante, aquela afirmação brasileira...
FHC - Era muito importante, mas hoje estamos mais tranquilos quanto a isso. Usando o slogan do Stephen Zweig: o Brasil era o país do futuro. Já não é mais, já está aqui. Eu disse há alguns anos isso: o nosso problema não é mais de subdesenvolvimento, é de injustiça. Para o nível de desenvolvimento que nós temos, temos muita injustiça. É um problema quase moral. Não se justifica ter tanta desigualdade e tanta pobreza, dado o nível de desenvolvimento que temos. Não tínhamos esse desenvolvimento naquele tempo.
ÉPOCA – O sonho era alcançá-lo, por isso o desenvolvimento era uma ideia de todo mundo, certo?
FHC - Porque era necessário. E ainda é, claro. Mas hoje o desenvolvimento está inscrito na natureza da sociedade: vai crescer. Não tenho certeza se vai ser uma boa sociedade. Ou seja: se vai ter felicidade, acesso à segurança, educação, lazer. E, se você não tiver educação e cultura, não vai fruir. É a tragédia de uma certa camada da população brasileira que enriqueceu muito. O que ela faz? Ela come, engorda, faz dieta. Viaja, chega lá e não sabe falar a língua, volta, acha tudo ruim. Você, no futuro, terá que ter pessoas capazes de fruição. Não é fruição material só. Fruição espiritual também.
ÉPOCA – Numa entrevista anos atrás, o senhor previu que estávamos indo para um sistema financeiro descolado da produção, você usava a expressão ciranda financeira. E o senhor dizia que o mundo precisava de um governo global.
FHC - Continuo achando.
ÉPOCA – Por que é tão difícil avançar nisso aí?
FHC - Porque fomos criados na ideia da soberania. Essa terra é minha, eu nasci aqui, eu tenho limite, eu tenho fronteira, eu tenho um Estado que controla essa fronteira etc. Isso vai continuar a existir. Vai continuar e é necessário que seja assim. Só que, com a globalização, não dá para dirigir a partir só disso. Alguns temas transcendem a fronteira, inclusive ecologia. Sempre falo do Gorbachev, disse até a ele quando ele veio aqui 5 anos depois de 92, e eu era presidente. Aquilo foi uma mudança importantíssima, porque ele era o chefe do Partido Comunista, o chefe da União Soviética, e ele disse: “Olha, não dá para pensar em bomba atômica, porque a bomba atômica atinge a todos, tem que pensar em ecologia”. Então, não basta Estado nacional nem classe. Isso não vai abolir Estado nacional, nem classe, nem portanto as lutas de classe, mas há uma área do mundo hoje que, por causa da expansão da economia e da expansão da tecnologia, afeta a todos. E tudo ficou mais ou menos transnacionalizado. Você pega o crime, o crime é internacional. Toda essa questão do meio ambiente e aquecimento global, tudo isso é internacional. A economia, o dinheiro, a água. Não é criar um governo mundial, isso não existe. O Kant dizia, a respeito da paz universal: para ter isso, tem que ter um direito internacional.
ÉPOCA – Tinha que ter alguma instância jurídica que fosse capaz de regulamentar.
FHC - Bom, eu acho que algum progresso houve nessa direção em certas áreas. Por exemplo, o genocídio. É crime contra a humanidade. E nós temos o Tribunal Penal Internacional. É um começo. Agora, a regulação financeira. Os Estados Unidos sempre se opuseram a aceitar qualquer regulação. Deu no que deu agora. Não é que, se tivesse regulação muito grande, a crise não ia vir. A crise ia vir. Ela pode diminuir como no Brasil, porque nós regulamos mais e defendemos o sistema financeiro. Mas é preciso ter alguns órgãos de articulação no nível global. Eu acho que isso está se discutindo neste momento. O que se faz na Basiléia, no BIS (Bank of International Settlements). O que se faz lá? Isso vai ter mais força, menos força? Quem controla as organizações internacionais? FMI, Banco Mundial.
ÉPOCA – O FMI teve um ressurgimento...
FHC - Teve. O FMI, que estava morrendo, voltou aí. Olha, desde o meu tempo eu dizia: o problema do FMI não é que ele seja forte demais, ele é fraco. Primeiro, quem manda nele é o Tesouro dos Estados Unidos. Eu não estou dizendo coisa que eu ouvi falar. Eu telefonava pro Clinton: “Olha, esse pessoal tá maluco, querem que baixe a taxa de juros e eu não vou fazer”. Então, claramente você hoje precisaria não só do que está sendo feito. Deram US$ 750 bilhões ao FMI, uma loucura. Pouco, para o que se tem no mundo, mas nunca tiveram tanta possibilidade. Mas não mexeram na estrutura de mando do FMI. Os Estados Unidos têm direito de veto.
ÉPOCA – Eles andaram distribuindo um pouco ali, mas realmente muito pouco, a diferença é...
FHC - ...muito pequena. Mas vai indo nessa direção. Isso não quer dizer que você vai acabar com o Banco Central de cada país. Pode até ser. Mas é muito pouco provável que a China, ou o Brasil, ou os Estados Unidos aceitem.
ÉPOCA – Há uma tese aí de que você conseguiria fazer isso num prazo de 30 anos, mas que no começo ia ter que pegar quatro moedas fortes e estabelecer...
FHC - ...uma cesta de moedas. Mas isso não acaba com o Banco Central propriamente. Acaba com uma referência, que hoje é o dólar. Você substitui o dólar, que é a discussão que está aí. Os chineses estão aí com uma reserva de US$ 1,4 trilhões e estão assustados. E se o dólar desvaloriza? Há uma discussão nesse sentido. Eu acho possível que se aceite uma cesta de moedas. Não vamos esquecer que as moedas mudaram muito. A libra, que foi uma moeda de reserva, deixou de ser. O franco suíço já foi mais importante. É difícil, sei lá, que seja a moeda chinesa, porque não tem conversibilidade.
ÉPOCA – E, na hora que ela for conversível, muda tudo lá. Eles vão ter que aceitar uma coisa que eles não aceitam que é perder o valor da moeda, e aí deixa de ser esse exportador maravilhoso que é hoje.
FHC - Não vai ser fácil. Mas eu acho que é possível que se baixe, para ter mais uma moeda de reserva. O euro já foi importante nesse sentido, mas eu acho que, independentemente disso, você vai ter que ter modos de articular as regras do capital financeiro. Não é só para evitar a crise. É para amenizar, não haver um descontrole. Tudo o que não é estritamente banco ficou sem regra: banco de investimento, fundo hedge...
ÉPOCA – O senhor foi surpreendido pelo tamanho desta crise? Porque o que o senhor disse lá em 97, parece que está falando de Lehman Brothers.
FHC - Se você for ver recentemente, eu fiquei muito impactado com uma reunião de um seminário que assisti em maio de 2007 nos Estados Unidos, no Citigroup, onde estava claro que o negócio estava estourado. Só que eu vim aqui, fui numa reunião com uns economistas ligados ao PSDB e ninguém levou a sério (risos).
ÉPOCA – Quando a coisa está quase estourando, ninguém quer ver.
FHC - E, olha, eu não sou economista, estou de acordo com vocês. Mas eu vi uma coisa um pouquinho diferente, e tal. Tinha um cara lá com quem eu negociei a dívida externa nossa, do Brasil, que escreveu um artigo, o Bill Rhodes. E eu dei o artigo do Bill Rhodes para eles lerem. Ele dizia isso: a crise está aí. Esta crise estava na cara já em 2007. Quantas vezes muitos de nós escreveram que era insustentável a política americana por causa dos déficits públicos. Só que é assim, toda crise é igual. Você acha que ainda tem um pouquinho mais, vai ganhar um pouquinho mais, e, se você está ganhando, eu também tenho que fazer a mesma coisa, senão eu perco. Aí vai voltar o Marx, que dá lá a explicação do mecanismo de crise.
"O país do futuro já está aqui"
Para o ex-presidente, o problema do Brasil não é mais o desenvolvimento – é educação e segurança
Helio Gurovitz e Paulo Moreira Leite
ÉPOCA – É aquela irracionalidade intrínseca.
FHC - Ela é intrínseca, porque, se você regular tudo, é uma economia planejada...
ÉPOCA – Mas isso é natureza humana, porque isso está baseado em emoções humanas, é a cobiça e...
FHC - E vai assumir o risco. Se não tiver isso, você faz uma coisa burocrática. Que também não deu certo e perdeu para isso. Então, você está entre a cruz e a caldeirinha, porque se regula é pior, se não regula, não evita...
ÉPOCA – Agora, o senhor acha que a economia do mundo, como tendência, está indo para haver mais Estado, mais regulamentação, ou menos?
FHC - Eu acho que o chamado neoliberalismo, o Consenso de Washington, aquilo foi um momento: o Thatcherismo, o Reaganismo, acho que um momento que passou. Provavelmente, nós vamos ter vários modelos. Não há um caminho, não há um capitalismo, um modo total de organização. Você vê o mundo eslavo e é outro mundo. Você pega o mundo nórdico, eles têm um sistema que não é igual ao americano. A França não é igual à Alemanha. Você tem mais Estado na França do que na Alemanha, mais regulação financeira. Na Inglaterra, que era tão mais próxima do modelo americano, o Gordon Brown foi o mais intervencionista. Eu acredito também que o modelo anglo-saxão é muito próprio dos anglo-saxões, de correr risco em tudo, até na previdência. Se você colocar isso no mundo latino, é muito difícil. E não sei se é vantajoso. Agora, o que também não pode é fazer o oposto. Nós estamos ainda no oposto, com essa previdência desigual...
ÉPOCA – De certa forma, o senhor está dizendo o seguinte: lá fora, eles têm um recuo em relação a uma coisa que é exagerada para um lado, mas o nosso problema aqui ainda é o anterior.
FHC - É o anterior. Nós não somos o modelo de futuro lá de fora.
ÉPOCA – O que estão falando por aí é um pouco isso: “Ah, não, nós não fizemos aquilo, então nos saímos melhor...”
FHC - Esqueceram que nós estamos bem pelo que nós fizemos: abertura da economia. Nem era possível não abrir a economia. Tinha que abrir. Tinha gente que era contra, falava: “Vai sucatear a indústria”. Que sucatear, estamos ricos, graças a que nós abrimos a economia. Exatamente o contrário. Enfim, há outros problemas, pensando no futuro, que são preocupantes a meu ver também, porque, bem ou mal, depois da 2ª Guerra Mundial, você conseguiu um certo pacto. Agora não tem. Esse é um ponto complicado. Você tem o mundo islâmico, que é uma realidade, com 1 bilhão de pessoas. E daqui a pouco alguém tem dúvida de que o Irã vai poder fazer bomba atômica?
ÉPOCA – Dizem que em três anos.
FHC - Vai poder. Nós aqui podemos, não fazemos porque não queremos. E ainda bem que não queremos. Então, o Paquistão tem bomba atômica. A própria Rússia foi acossada, o Bush fustigou a Rússia o tempo todo. Agora, de uma maneira equivocada, porque ele não queria nem conversar. A Rússia está hoje nessa confusão, mas ela tem arma atômica e tem riqueza. Você pode pensar no mundo sem que a Rússia sente à mesa? É difícil. Ela tem fronteira com a China. Ela pode fazer aliança com a China. Ela tem ingerência sobre o Oriente Médio legitimamente, não invadiu lá o Afeganistão. Tem o Japão que está lá. Tem esse mundo aqui. Outro dia escrevi um artigo propondo um International New Deal. É preciso fazer um novo pacto internacional.
ÉPOCA – É um pouco o que começaram com o G-20.
FHC - Começaram, começaram. Já está ampliando. O problema do G-20 é que ele ainda é uma fotografia. Reúne os países para uma fotografia e vai embora, não tem nada por trás (risos).
ÉPOCA – Esse mundo é mais perigoso? No mundo da Guerra Fria, todos estávamos submetidos a duas forças. De repente caiu, mas parecia que tinha uma hegemonia americana que garantia segurança, mas não chegou a existir.
FHC - Você não teve a pax americana e os chineses até agora ainda estão retraídos. O que os chineses fizeram sobre o Iraque? Nada. Quanto eles vão dar para o FMI agora? Muito pouco. Quer dizer, eles não estão ainda colocando o dedo deles no mundo porque eles têm uma coisa de longo prazo, vão crescer mais etc. Não dão a impressão também que estejam numa posição bélica. As duas superpotências congelaram o mundo, mas não houve guerra. Agora, não está congelado o mundo, mas guerrinhas tem em todo lado. A pergunta é: isso é bom ou é mau? Pro Brasil, não é mau, porque você não tem constrangimento, pode jogar com mais liberdade. Jogar mais cartas, dar mais espaço de manobra. Para o mundo, à medida que você não tem as Nações Unidas fortalecidas, é complicado. Você não tem como parar com uma área de conflito. Aqui para o Brasil, não, porque, por sorte, nós não estamos em área de conflito. O Mercosul não foi para cá, não foi para lá, mas uma coisa é verdade: a relação entre Brasil e Argentina é boa. Então, você não tem a corrida armamentista que tem no Paquistão, tem na Índia, tem na Coreia, tem no Iraque, tem em todo lugar do mundo. Mas, como tem em todo lugar do mundo, e como os Estados Unidos nunca deixaram as Nações Unidas terem um papel mais relevante, e não tiveram condições de impor a pax americana, nós estamos com esse buraco. De fato e apesar de tudo, o que sobrou aí foram as Nações Unidas. E os americanos, depois da tentativa na guerra do Iraque de ter apoio, não tiveram apoio e congelaram. Precisa ver o que o Obama vai fazer. Ele está fazendo coisas. Eu acho que não é só simbólico, um negro que virou presidente dos Estados Unidos. Ele tem programa.
ÉPOCA – Como o senhor vê o Obama, o que ele está fazendo, o que ele pensa?
FHC - Eu não conheço o Obama. Nunca estive com ele. Só o vi uma vez num discurso lá na convenção do Partido Democrata. Ele impressiona no falar. Eu tinha medo de que ele fosse só discurso, mas olha. Ele falou com o pessoal do Irã, ele deu uma mensagem, não é fácil. Bem ou mal, ele começou a descongelar Cuba. Com o México, eles mudaram a linha. Agora, ontem, na Comissão Latino-Americana de drogas, o novo czar antidrogas norte-americano veio para a nossa posição. Ele disse que a guerra às drogas fracassou. Está vendo alguma coisa lá na frente. Eles enviaram um secretário para o hemisfério nosso aqui, que é meu amigo pessoal há 30 anos.
ÉPOCA – O Valenzuela?
FHC - Valenzuela, exatamente. É um cara aberto, que já foi ligado ao Clinton. Ele nasceu no Chile. É meu amigo há 30 anos. Agora mesmo estive lá com ele. Eu sabia que ele ia ser nomeado. Ele me disse, estava no processo. Dei uma aula lá em Georgetown, dei aula na classe dele. São sinais, o tipo de gente que está sendo mobilizado, inclusive o enviado do Obama para o Iraque e o Afeganistão, o Holbrooke, eu conheço, é um cara bom. Enfim, ele está dando sinais de mudança. Na parte financeira menos. Ele está patinando, no fundo não mudou nada.
ÉPOCA – Ele conseguiu adiar um pouquinho algumas questões que eram um pouco urgentes...
FHC - Eu vejo uma coisa curiosa: você tem hoje uma enorme liquidez no mundo. Quando veio a crise, secou o fluxo financeiro, os mercados acabaram. Agora, com a injeção de dinheiro na Europa, nos Estados Unidos, tem muita liquidez no mundo. E as pessoas não usam a liquidez.
ÉPOCA – Está todo mundo com medo.
FHC - Com medo. Se você fosse banqueiro, você ia emprestar dinheiro a quem? A quem te pede não, quem te pede deve estar na pior. E os que não precisam, os que têm dinheiro, ficam assim: “Eu não vou fazer investimento novo”. Parou. O problema na crise começou como crise financeira, de imóveis, mas hoje está no consumo. Os mercados encolheram. E vão ter que encolher, porque, com o tal descolamento entre a base produtiva e o crédito, as finanças, nós estamos ajustando. E, para ajustar, vai ter que dar uma encolhida muito grande. Está dando uma encolhida. Você pode dar liquidez que não adianta. Aí o governo diz: “Eu dei dinheiro ao banco e o banco não emprestou para ninguém”. Mas muito pouca gente quer, e os que querem não pagam. A inadimplência continua grande. Enquanto estivermos assim, não tem como acomodar esse processo. Vai ter problema. E eu não vejo como tenham atacado esse processo lá nos Estados Unidos. Aqui é diferente, aqui foi indireto, o que encolheu mais foi o mercado lá de fora. Aqui dentro começa agora. Você vê nesses últimos quatro meses a curva de desemprego deu uma subida. E a massa real de renda caiu. Então, isso vai diminuir o consumo. E, quando você diminui o consumo, aumenta ao desemprego. Embora o governo esteja fazendo duas coisas: dando dinheiro para o consumidor, ou diminuindo o imposto para o consumidor. Não adianta muito, porque, para quem consome, no mês seguinte acabou. Comprou, acabou. E o governo perde receita fiscal. E está dando dinheiro para salvar empresas, aí à larga. Se você está com dificuldade, está salvo. Desde que seja grande. É válido. Eu entendo até, diante das circunstâncias tão dramáticas.
ÉPOCA – É a forma política de gerir a economia...
FHC - Eu acho difícil que, a longo prazo, isso dê certo.
ÉPOCA – O presidente Lula tem essa simpatia nos círculos internacionais. O Obama falou que ele é o cara...
FHC - Estava exagerando (risos). Mas enfim, de qualquer maneira...
ÉPOCA – O senhor é amigo do Clinton, foi em Camp David. Essa relação pessoal, isso pode ser bom para o governo, é bom para o país?
FHC - Os países não se movem por sentimentos, nem dos presidentes, nem de ninguém. Eles se movem por interesses. Então isso é relativo. Obviamente, em certas circunstâncias ajuda. Por exemplo, com a relação que eu tinha com o Clinton, eu podia telefonar para ele com mais liberdade, ele também.
ÉPOCA – Deu para pleitear coisas?
FHC - Ah, deu, deu. Por exemplo, tanto eu como o Ricardo Lagos tentamos ajudar a Argentina com o Bush. Não conseguimos, havia muito preconceito com o governo argentino. Aí foi complicado o negócio. Então, que ajuda, ajuda. É decisivo? Não é. Do ponto de vista da percepção, da valorização do país, ajuda. Por acaso, li hoje um artigo que os autores me mandaram sobre a diplomacia brasileira. Ele mostra que, a partir do meu governo e com o do Lula, mudou o estilo por causa disso. Porque os presidentes são mais ativos no relacionamento. E aí já muda, porque obviamente a visibilidade do país começa a se relacionar com o desempenho do próprio país.
ÉPOCA – Na verdade, não é o desempenho que cria tudo isso?
FHC - Esse desempenho em vários setores. A democracia é importante, manter a democracia, ter uma economia aberta.
ÉPOCA – O senhor vê algum risco para a democracia do Brasil?
FHC - Não.
ÉPOCA – E de a gente desabar, de nossa economia ir para o buraco?
FHC - Eu acho que não agora. Não acho, por causa do mercado interno, das nossas políticas públicas. O Estado brasileiro, ao contrário do que se pensa, é um Estado equipado. Qual é o problema? Tem vários. Mas, quando você está em uma situação econômica de escassez, ou em uma situação fiscal ruim, o Estado fica onipotente. Por exemplo, quando eu fui ministro da Fazenda, estava tudo no chão. Não tinha nada. Você não tinha cálculo possível. Você não sabia quem devia quanto a quem no país. Cada Estado com um débito, débito na Caixa Econômica, uma loucura, inflação enorme. Então, o Estado fica parado, dá a impressão que tudo é uma porcaria. Você põe em ordem, você vê que tem um Estado, tem uma estrutura. Essa estrutura fica lá, fica amortecida às vezes com processos políticos, mas tem, tem concursos. Você tem o Itamaraty, tem as Forças Armadas, tem toda a burocracia do Banco Central, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica. Tem o lado muito menos eficiente dos ministérios sociais – mas se começou a corrigir isso com cursos de gestores. Polícia. Eu reabri curso de Polícia Federal. Estava fechado. Melhorou a qualidade da polícia. Então, quando você tem, como o Lula, a possibilidade de ampliar mais ainda o custo, você vê que o Estado respondeu. O problema agora é o oposto, acho que você desprofissionalizou o Estado por uma questão partidária. O Estado, incluindo as empresas estatais. As nomeações são do PT. Isso é uma espécie de cupim. Está comendo, ninguém vê, quando você vê, o livro acabou. Está comendo a máquina pública. Mas, de qualquer maneira, temos uma burocracia razoável. O Brasil tem, o Chile tem. O México, mais ou menos, mas tem. Colômbia tem. Argentina nunca teve. Uruguai tem. É curioso, o Peru não tem. E ter ou não ter uma burocracia com capacidade para definir e implementar políticas públicas faz a diferença. Porque você tem armas para atuar. E o Brasil tem uma outra coisa que as pessoas notam pouco, mas é importante: nós temos um sistema nosso de poupança, para fazer capital aqui. O centro financeiro funciona. Você poupa em reais, não poupa em dólares. E o governo toma emprestado em reais, não em dólares. Olha, isso era um inferno no meu tempo, eu dizia para o pessoal, FMI, banqueiros internacionais, agências de rating. “Ah, a dívida interna está crescendo muito”. Eu esqueço a dívida interna. A dívida interna no máximo dá em inflação. Não dá calote. O calote é interno. Pelo Collor ter feito o calote, caiu, porque o calote é em nós. Como é que se beneficia o governo brasileiro: nós temos dinheiro no banco, esse banco pega e compra títulos do governo. Nós somos credores do governo brasileiro. A população brasileira. Não são os bancos em si, mas quem tem conta em banco, quanto maior a conta, mais você é credor. De qualquer maneira, isso é feito internamente. Na Argentina, quando eles deram o calote, arrebentaram os italianos, os espanhóis. No México, os americanos. Aqui não, a poupança é interna.
ÉPOCA – Uma ideia que o tempo todo que o senhor está falando: a gente tem um caminho meio próprio, né. A gente se autofinancia, a gente se abre, mas não e abre muito...
FHC - Comparativamente sim. Tem outra coisa: o Brasil, pela distância que está dos polos, é um subpolo. O Chile é um país que avançou, mas não é polo, não pode ser polo, pelo tamanho. Aqui, nós temos agricultura, e muito boa. O pessoal só falava da reforma agrária e estava havendo a revolução agrícola. Isso sim, foi o meu tempo. Nós que forçamos a acabar com a dívida do Banco do Brasil, que é uma sede do financiamento rural, demos força para a Embrapa, o BNDES financiou a modernização da frota. Então, tem uma boa agricultura. Nós temos indústria, que aumentou muito.
ÉPOCA – A gente sempre protegeu essa indústria, nunca expôs totalmente.
FHC - Não, sempre. Quando houve a privatização, sempre houve a preocupação que os setores não ficassem só na mão dos estrangeiros. Veja as telecomunicações. Uma parte brasileira. Siderurgia, papel e celulose.
ÉPOCA – E tem a história dos bancos. Os bancos estrangeiros vieram para cá e se deram mau.
FHC - Se arrebentaram. Quer dizer, aqui tem uma capacidade produtiva que tem sua musculatura. E isso está ligado também à capacidade tecnológica nossa. Universidades. Nós temos universidades. O pessoal fala mal, fala mal, mas temos universidades. Tem alguma coisa que alimenta esse processo. Isso é uma coisa que não se construiu do dia para a noite, vem vindo. Da vinda da corte para cá, que trouxe as instituições estatais portuguesas. Olha aqui, uma vez eu convidei o Jorge Sampaio, presidente de Portugal, para assistir a um desfile de 7 de setembro. É tradição, você convida algum presidente. No 7 de setembro, quando estava desfilando a tropa, o locutor dizia: “Esse batalhão regimento Andrade Neves foi formado por provisão de sua majestade a rainha Maria I” – que nasceu em Portugal. E veio para cá. Quer dizer, tem estruturas públicas. E, quando eu digo público, é além do estatal. As empresas estatais brasileiras sempre foram quase todas do mercado, tiveram mercado. Não todas, os Correios não. Mas a Petrobras e o Banco do Brasil, sempre tiveram ações. Volta Redonda, Siderúrgica Nacional, no mercado. As telefônicas, sabe quanto por cento o governo tinha quando nós privatizamos? 19,5%.
ÉPOCA – Era o maior acionista...
FHC - Era o maior e tinha o bloco de controle. E tinham feito uma privatização sem ninguém saber. Você comprava o telefone e vinha uma ação. Dez ações. Alguém mais esperto ia lá e comprava suas ações, você vendia por nada. Boa parte foi privatizada na surdina. O controle não, nós privatizamos 19%. Porque já era, já estava no mercado.
ÉPOCA – A Petrobras é meio assim.
FHC - Na Petrobrás, a maioria não é do governo. Ele tem o controle. Quando você vai no México, não é assim. A Pemex não é assim. Então a Pemex faz o que fizeram agora na Venezuela. A Pemex faz um duto direto dela para o Tesouro Nacional. A carga tributária do México é 17, 18%. E isso não é possível. Por que faz isso? Porque tudo o que a Pemex ganhar vai para lá.
ÉPOCA – Mas só agora tiraram a Petrobras da conta do superávit.
FHC - Só agora tiraram. Mas então você tem certas especificidades. A Índia tem as especificidades dela; o Japão tem as suas. Você pensar que o sistema capitalista é uma coisa homogênea é um equívoco. As regras de mercado estão aí, mas as instituições são historicamente construídas. O Japão não é assim. O Japão sempre teve um sistema de proteção ao trabalho diferente do resto do mundo. Como é que chamam? Job for life. A estabilidade na mão da empresa, não tinha regra do governo para isso. A Índia eu não conheço bem, mas a Índia tem outro sistema. A gente pensa que tudo é o capitalismo anglo-saxão. Não é assim.
ÉPOCA – Vai diminuir essa hegemonia cultural do pensamento anglo-saxão?
FHC - Eu acho bom, porque você vai ter mais diversidade no mundo. Isso você vai ver, a globalização não é a expansão do capitalismo anglo-saxão. É outro engano, não tem nada a ver com imperialismo. A globalização foi uma revolução tecnológica que juntou todas as economias: a chinesa, a japonesa, a nossa, a coreana. Só não junta mais a cubana porque não deixam. A americana, a europeia e tal. Então, não vai desaparecer globalização nenhuma. Pode desaparecer a hegemonia cultural do modelo particular dentro desse sistema mais global. Isso dá mais espaço de respiração. Então, provavelmente dentro dos anos 2020, o Brasil vai poder respirar com mais tranqüilidade. E aí nós temos uma vantagem também, se esse mundo for para maior diversidade e governos menos fechados. Eu não penso num governo global, mundial não: tem que ter estruturas que possam se conectar e desconectar. Nós aí temos uma vantagem cultural: é aqui o verdadeiro melting pot. Não são os Estados Unidos, é o Brasil. Você, pela cara, não sabe quem é brasileiro. Mas não é só isso. Você tem preconceito, tem nos Estados Unidos também, tem em toda parte. Mas você não tem aqui segregação, nem uma cultura diferenciada. Não há uma cultura branca e uma cultura negra. Não tem. Você não tem uma comida branca e uma comida negra. A comida nossa é uma confusão, é brasileira. Nesse sentido, nossa capacidade plástica é maior. O que não é mau também. Nós somos bastante diversificados aqui dentro, mas tem um ponto de unificação. Lá, você vai num restaurante que tenha música negra, que tenha soul music ou um tipo de jazz. Aqui mistura na cultura, o que eu acho bom. Você vê que pessimista eu não sou.
ÉPOCA – Pois é, eu estava tentando pegar um pessimismo aí, mas não achei não.
FHC - Esse americano que veio aqui, esse professor, ele disse: “Eu sou pessimista. Eu vou fazer uma análise pessimista”. E ele é mesmo. Nada vai dar certo.
ÉPOCA – Eles adoram, né? Tem um nicho de mercado para isso.
FHC - É o que eu disse, como eu sou o único pessimista lá na China, eu vou para tudo quanto é seminário. Todo mundo lá: “A China tem um futuro brilhante”, e eu: “Não tem”. Aqui no Brasil é variável, mas a maioria acha que não vai dar certo. Eu acho que vai dar certo.
Helio Gurovitz e Paulo Moreira Leite
ÉPOCA – Desde aquela ideia dos BRICs, muitos dizem que o Brasil é um país que terá um grande futuro, mesmo da explosão da crise. O que o senhor acha disso?
Fernando Henrique Cardoso - Os BRICs foram uma criação do [banco americano] Goldman Sachs. Como conceito, isso não existe. São países absolutamente disparatados, que têm em comum só uma coisa: são grandes, são populosos. O critério não é desenvolvimento propriamente dito da economia, nem da sociedade. É peso na economia global. E a população conta. Eu tive um professor de economia política, um francês chamado Paul Hugon, que vinha da Faculdade de Direito da França, de Lyon. Ele tinha uma enorme confiança no Brasil por causa do desenvolvimento demográfico. Os economistas depois vieram criticar isso, falar que o que importa é a renda per capita, a massa populacional. Pelo contrário, olha a Índia, a China. Agora voltamos à ideia de que a massa populacional tem importância. Mas não é só isso, porque a Indonésia tem massa de população também. A Nigéria também tem. Então é a massa de população, mais um certo avanço tecnológico, de inserção na economia global, etc. Nesse sentido, como a economia está globalizada em função não da população, mas da internet, da interconexão dos fluxos de finanças no mundo todo – o que é específico da economia atual é essa rápida conexão dos fluxos financeiros e a possibilidade de dispersão do processo produtivo com controle, por causa também da internet –, na medida em que esses países se inserem na economia global, acho que tem sentido falar em BRICs. Mas eles são muitos díspares. O interessante é que faz pouco tempo já se começava a pensar que o B ia sair, e a sigla ia virar RICs. Não virou RICs. Projetando isso para daqui a 11 anos, provavelmente essas massas populacionais, com a condição de que a sociedade se organize, de que a economia se modernize e possa ser interconectada, terão um papel.
ÉPOCA – Em que medida essa crise, ao colocar o poderio americano numa perspectiva um pouco mais perto do chão, representa uma oportunidade para nós?
FHC - Dependendo de como saiam os outros países, o Brasil pode relativamente sair-se melhor. O que não quer dizer que não tenha havido perda geral, porque crise é perda geral. Ninguém sabe quanto o mundo perdeu de riqueza, mas calcula-se de 30 a 40, 50 trilhões. É brutal. Portanto, vamos ver quem vai perder mais e quem vai perder menos. Os Estados Unidos certamente vão perder. Mas duvido que os Estados Unidos, mesmo depois da crise, não saiam ainda à frente, porque hoje a economia americana deve ser de 15 trilhões. A nossa é 1,3. A americana é 15, para ter uma ideia. A chinesa deve ser da ordem de 4...
ÉPOCA – É por aí.
FHC - Portanto, é muito longe ainda da economia americana. A russa não é maior que a nossa. O problema, para responder quem vai sair melhor, é quem vai ser mais afetado. Seguramente, as economias em que o sistema financeiro era mais forte serão mais afetadas, quer dizer, Europa e Estados Unidos. A crise estourou ali, no sistema financeiro. Agora, as economias que são muito, como eles chamam em inglês, export-oriented (orientadas para exportações), como a China, vão sofrer também, porque os grandes mercados são os mercados europeu, americano e japonês, que estão caindo. E isso nos afeta também, porque, mesmo que a gente exporte para a China, a China vai importar menos, porque ela usa uma parte do minério de ferro nosso para virar aço para exportar para os Estados Unidos. E os países que têm uma economia, digamos, mais diversificada, como é o caso do Brasil, provavelmente têm mais recursos de defesa. [Mais] até do que a [economia] chinesa, porque agora é que [lá] estão dizendo: “Vamos fazer uma reorientação do mercado externo para o mercado interno”. Aqui, a nossa economia não é muito aberta.
ÉPOCA – Apesar de tudo...
FHC - Apesar de tudo. Em proporção, a parte de importação e exportação é menos de 20%. Então, é possível que relativamente saiamos melhor. Agora, tudo vai depender de quanto dura a crise. Porque, se a crise for de mais longo prazo, acaba produzindo desgastes maiores. Se ela for de curto prazo – entendendo, por curto prazo, uns 2 anos e já passou 1 –, se até meados do ano que vem isso não tiver sido retomado, aí as conseqüências começam a se complicar e nós também perdemos velocidade. É difícil que o Brasil, neste ano, cresça muito mais que ao redor de zero. Não dá, não tem como. Isso é uma coisa ruim, porque fomos mais uma vez pegos quando estávamos alçando voo. Não é a primeira vez. Aconteceu em 2001, aconteceu no ano passado também. Vai alçando voo, de repente vem um vento negativo – e lá vai. Isso diminui a capacidade de alcançarmos a velocidade de cruzeiro. E o problema, para 2020, é quem terá alcançado a velocidade de cruzeiro. Que tenha um desenvolvimento sustentável, mantidas as pré-condições para o crescimento e desenvolvimento científico e tecnológico que deem base a uma economia mais moderna, instituições que possam funcionar para permitir uma integração saudável no mercado internacional. Vou pegar um exemplo absurdo: ontem veio aqui o Michael Pettis, professor da Universidade de Pequim. Ele é americano e mora em Pequim há 7 anos. Para minha surpresa, ele tem uma visão pessimista sobre o que possa acontecer na China. Ele acha que o sistema financeiro chinês é um sistema precário e que não é tão fácil fazer essa transição da exportação para o consumo. Diz que os chineses são altamente tendentes a poupar e que agora é preciso gastar. Eles não reagem à baixa da taxa de juros. Se você baixa o juro, não é por isso que eles compram, eles não saem gastando. Então, se a economia da China desandar, complica mais ainda o panorama todo.
ÉPOCA – A China apareceu com um modelo de desenvolvimento novo no mundo nos últimos anos. É uma proposta que, por um lado, causa horror para a gente, porque é baseada em pouca liberdade, num modelo autoritário, centralizador, mão-de-obra barata etc. Por outro lado, gerou um mercado gigantesco, gerou uma forma de desenvolvimento que alguns chegaram a entender que seria o novo motor da economia. Qual é a sua opinião?
FHC - Sem dúvida alguma, [a China] cresceu muito. Se transformou num motor até para a própria economia brasileira, nossas exportações cresceram muito para lá. Mas, guardadas as proporções, de 15 trilhões para 4. Motor do mundo mesmo é Europa, Estados Unidos e Japão. E continuam sendo. A China ainda vai ser, mas às vezes exageram um pouco. Vamos discutir mais um pouquinho a ideia do motor. Quem é que arranca? A China tem esse modelo de desenvolvimento que é bastante enaltecido. Mas, como sou mais velho que vocês, lembro de como a gente enaltecia o modelo japonês e, antes do japonês, o soviético. A certa altura, eles disseram: “Vamos ultrapassar os Estados Unidos”. E estavam ultrapassando em produção siderúrgica, de cimento etc. E por que caíram? Aí é uma característica do capitalismo. O modo capitalista de produção depende continuamente de inovações. A grande transformação que ocorreu nos últimos anos, a partir dos anos 70, foi a da cibernética, da informática. Foi uma mudança brutal. E, depois, a velocidade enorme nos fluxos de capital e, bem depois, o descolamento que vimos agora entre a base produtiva e o fluxo de capital. A União Soviética estava crescendo muito. Ela mandou o Sputnik para o espaço antes do mundo ocidental – parecia que ia fazer tudo antes. Parou pela falta de desenvolvimento no setor que se modernizou mais, na base da internet precisamente. Onde eles fizeram grandes avanços, senão não poderiam mandar o Sputnik? Na base do hardware. Quando houve a miniaturização, o PC, essas coisas, eles não conseguiram acompanhar. Tentaram imitar quando os japoneses e coreanos entraram na corrida, já nos anos 80. A cada dois meses, chegava um novo gadget, um novo instrumento. Eles não acompanharam. Tem um livro do Manoel Castells que analisa isso, que mostra o seguinte: que o comando militar soviético percebeu isso. E, como tudo na União Soviética tinha sido feito endogenamente, eles competiam, fizeram a bomba atômica, o Sputnik, iam avançando. Mas era tudo endogenamente, com um método mais brutal do que sofisticado. Quando perceberam que o sofisticado ia mais depressa, o que os soviéticos fizeram? Começaram a copiar. Eles colocaram a máquina industrial soviética...
ÉPOCA – Aí começou a engenharia reversa...
FHC - Engenharia reversa, imitar, aquela coisa toda. Mas não deu tempo. E mais: como a sociedade soviética era autoritária, o que aconteceu? Eles não difundiram para a sociedade os avanços tecnológicos. No cotidiano, o que aconteceu nos últimos 50 anos teve um impacto maior do que a revolução industrial. Na revolução industrial, a máquina a vapor mudou muita coisa, a locomotiva também, mas quantas pessoas andavam de locomotiva? Isso não afetava o dia-a-dia. Agora não. [A mudança] o afeta o dia-a-dia das pessoas. No caso das sociedades ocidentais, primeiro afeta a vida da família, da mulher, household. Com máquina de lavar roupa, telefone celular, fax. Na União Soviética, eles tinham medo da transmissão de dados. E o mundo moderno vive da transmissão de dados. Digitalizou tudo.
ÉPOCA – Então há uma relação com o modelo político.
FHC - Sim. Por isso não sei qual vai ser a capacidade de a China seguir. É um ponto de interrogação. Não estou dizendo que não vá seguir. Mas não sei. Será que, na nova onda de desenvolvimento, a China terá condições de acompanhar? Assisti anteontem a uma exposição sobre o que está sendo feito na internet nos Estados Unidos. Você agora vai ter um chip pendurado aqui, e o chip lê para você as coisas. Você quer saber que horas são, você pega o chip, você põe assim, desenha no seu braço um relógio e dá a hora. E por aí vai. É uma coisa que você fica aterrorizado. Como é que isso vai se traduzir na produção depois? Não sei. É preciso saber. E a questão do regime político tem certas consequências para a adaptação da modernidade.
ÉPOCA – Muita gente diz isso.
FHC - Não sei na China como vai ser isso. Não estou dizendo que eles não sejam capazes – eles já foram capazes de muita coisa.
ÉPOCA – Se eles têm força para ser motor do mundo...
FHC - Não sei se têm isso aí. Há muito tempo tenho na minha cabeça – pode ser que eu esteja errado, isso é mera percepção, não é nenhuma análise – que a força americana advém da relação da universidade com a produção e o governo. Conseguiram um modelo em que o motor daquilo ali é a inovação tecnológica, que se transmite para a empresa e para o governo. E há universidades suficientemente fortes para não temer a relação nem com o Estado nem com a empresa. Estão em permanente ligação.
ÉPOCA – É o modelo do Vale do Silício?
FHC - É isso mesmo. Isso funcionou. Como vai ser na nova etapa? O que vai acontecer nesses próximos anos? Que impacto isso vai ter? E os sistemas políticos têm uma certa [influência]. Eu diria que uma das vantagens que o Brasil tem é que conseguimos, bem ou mal, começar a institucionalizar a democracia. Liberdade e regulação. A China conseguiu uma certa modernização dessa dicotomia no setor empresarial. Não no político. No empresarial, eles conseguiram conviver com uma certa capacidade de controle e com um espaço de ação. A Rússia conseguiu menos. Até hoje, dá a sensação de que a Rússia não conseguiu ainda. Em função, em parte, dessa herança. Ela continua autoritária, com gangues, continua sem haver propriamente um estado de direito que garanta a propriedade.
ÉPOCA – E isso não garante um ambiente de negócios que atrai capitais produtivos...
FHC - Exatamente. E [a Rússia] está recuando. Ela é muito rica porque ela tem petróleo, tem ouro, tem metais... Nós temos talvez melhores condições de saída. É possível que tenhamos melhores condições de saída. Digo sempre que é possível porque depende do engenho humano. Aqui tivemos a sorte: o sistema econômico e o sistema político foram sendo montados e, até agora, a sociedade começa a ter uma certa movimentação, uma capacidade de organização, as ONGs se desenvolveram, há programas sociais para poder incorporar mais gente. Nossa sociedade se ocidentalizou.
ÉPOCA – No bom sentido.
FHC - No bom sentido. A chinesa até certo ponto. A indiana, não sei dizer, tenho muita dificuldade. fui mais à Índia que à China, mas sinto mais facilmente a China que a Índia. A Índia é mais complicada, é um mosaico. É muito mais heterogênea. A China tem uma coisa interessante. Escrevi um artigo que chama a atenção para isso. Um dos teóricos da formação do capitalismo foi Max Weber. Curiosamente, Weber tem uma análise na qual ele diz que uma das eventuais possibilidades históricas de desenvolvimento do capitalismo era na China – e diz por quê. Cito até isso. Não vamos entrar em detalhes porque desvia do nosso foco, mas, primeiro, a China é mais homogênea, como cultura e tal. Segundo, ela tinha o mandarinato. O mandarinato era a meritocracia. Mandarim não era um titulo dado: é mérito.
ÉPOCA – É algo que o Partido [Comunista Chinês] preserva.
FHC - Preserva. O sistema tem isso: é uma burocracia meritocrática. Uma forma de promover os melhores. O mandarim não herdava o título. Eram concursos, exames e exames o tempo todo. Eles fazem isso na China de alguma maneira. O partido acompanha a carreira, analisa, prepara gerações. Descobriram uma maneira de mudar em que eles mudam por geração. Passou o tempo, muda. Não é como nós, que mudamos com a eleição. Esse professor que esteve aqui me disse o seguinte: uma das províncias de lá, o nome eu já esqueci, tem 100 milhões de habitantes e só pode mandar não me lembro se 7 ou 17 estudantes para uma universidade de altíssima categoria. São só os melhores mesmo. Não sei se isso dá certo. Tomara dê, mas está em aberto. Nós aqui, nosso caminho já está mais ou menos previsto. É difícil que você dê um golpe e retroceda. Na Rússia, não está seguro. Já retrocedeu.
ÉPOCA – Quando o senhor fala de engenho humano, que o futuro depende do engenho humano, do que está falando, genericamente?
FHC - É preciso liderança e capacidade, que não é do líder, é da sociedade, de, num momento histórico, aceitar a inovação. Você não inova quando quer e porque quer. Você inova quando existe alguém ou alguéns, normalmente alguéns, que venham com uma fresta e quando a sociedade se abre para ver a fresta. É difícil porque ao contrário do sentido comum, ninguém gosta de mudar nem de reformar, porque tem medo. Maquiavel já dizia que o problema da reforma é que os que vão ser beneficiados não sabem que vão ser, e os que vão perder percebem na hora e gritam. Então, não é fácil essa mudança, essa reforma necessária. É preciso liderança, mas não é só liderança – é uma brecha histórica. Por que eu chamei atenção para a coisa americana da universidade? Porque lá eles rotinizaram a mudança. São predispostos a aceitar a mudança. Vimos agora a eleição do Obama. É uma prova de mudança. Saiu do Bush – que foi eleito, fez guerra e, depois da guerra, foi reeleito – para o contrário. E isso não desorganiza a sociedade. Vai sair na China, vi hoje, a memória do primeiro-ministro chinês [Jao Jiang]. O Deng Xiaoping liquidou com ele. Porque ele quis liberalizar um pouco mais, deu briga na cúpula. No mundo ocidental, são descobertas formas de mudança sem necessariamente quebrar. Na Rússia, fizeram uma tentativa de compor uma mudança e é muito difícil mudar. Na África, é dificílimo tirar o presidente.
ÉPOCA – E no Brasil?
FHC - No Brasil, entramos já numa fase que vai indo. Por isso, é muito importante que não haja quebra de regras.
ÉPOCA – Mas na história brasileira, nos momentos em que a mudança se tornou necessária, houve ruptura institucional...
FHC - Houve ruptura. Até a minha posse. Mas aqui já temos flexibilidade suficiente na sociedade, pesos e contrapesos para impedir algo disruptivo. E os líderes entendem isso. O Lula entende isso, sente isso. Querer é uma coisa – e poder é outra. Mas não é porque não pode, é que não dá, vai ser fora da regra. Acho eu, e tomara que seja, porque isso é bom para o país. É difícil o aprendizado de alternância sem ruptura. Por que eu me esforcei tanto na transição? Por isso. Porque eu tinha consciência disso. Não dá para chegar a um ponto em que a sociedade se divida irremediavelmente. Por que eu me opus ao impeachment do Lula? Não porque seja ilegal, legalmente podia. Porque, mesmo que ele ganhasse, perdia, porque se criaria uma divisão na sociedade. Não pode. Historicamente, a sociedade tem que absorver esse processo todo e desenvolver mecanismos de defesa. Então nossa sociedade vai estar melhor desse ponto de vista também em 2020. A despeito da crise, porque sou realista o suficiente para perceber que a crise vai nos infligir mais danos do que parece...
ÉPOCA – Mais danos do que benefícios.
FHC - Mais danos do que benefícios. É crise, mas, a despeito disso, temos a elasticidade para voltar a crescer e avançar, como os Estados Unidos, como a Europa. E a China, vai também. Precisa ver até que ponto isso vai impactar na sociedade chinesa.
ÉPOCA – Quando o senhor fala em avançar, a gente como país teria que avançar por onde?
FHC - Estamos muito intoxicados pela questão da previsão do mercado, da economia. É compreensível, e isso foi um fator limitativo enorme. Essa limitação, de alguma maneira, foi pouco a pouco superada. Agora temos outras que não conseguimos ainda enfrentar. Vou usar uma frase banal: não fizemos a revolução educacional no Brasil. Isso não quer dizer que não tenhamos nos empenhado. Não estou falando uma coisa partidária, nem defesa do que fiz. Houve acesso à educação? Houve. Pela primeira vez, todas as crianças estão na escola. Isso é muita coisa, são 40, 50 milhões de crianças. O Brasil não avalia o que é isso. Todo dia estão na escola e todo dia comem na escola. Quando vejo o negócio de Fome Zero, esqueceram que temos o maior programa nutricional do mundo: a merenda. E não é do meu governo, vem de antes. O que eu fiz foi municipalizar a compra. Mas já estava aí e continua. Não estou querendo negar os avanços ocorridos. Mas, se você tem pela primeira vez a possibilidade de as crianças terem acesso à escola, os pais não tiveram. Então há um problema complicado, porque, se você vai no Japão, na China, na Coreia, a cultura tradicional era uma cultura bastante enraizada. A família, embora não tivesse talvez educação formal, tinha valores importantes e transmitia aos filhos. Parte da cultura, em sentido antropológico, a família garantia. Aqui, com a migração interna, com a desorganização familiar, com a pobreza, com tudo isso e com falta de escola, não tem. Então, a escola no Brasil não tem em casa. Talvez o diferencial maior no resultado escolar dos alunos seja a casa, a família.
ÉPOCA – Muita gente diz que o Brasil tem uma janela de oportunidade para aproveitar, para educar o seu povo. Que, até agora, a gente veio na base da mão-de-obra, da riqueza natural, de coisas que não precisa fazer muito esforço intelectual para produzir. E que a gente tem uns 20 anos aí, porque depois vem a África. Depois eles vão chegar com tudo também. E que, se a gente não aproveitar esses anos...
FHC - É a brecha demográfica. Nossa população média não é velha ainda e já não é tão nova. Isso é importante e dura 20, 30 anos. E temos que aproveitar. Até certo ponto, aproveitamos. Mas a pressão sobre o mercado de trabalho está diminuindo. Agora aumentou, o desemprego dobrou por causa da crise. Ninguém prestou atenção: de 4,5% para 9%. Pelo Dieese são 15%. Cresceu bastante. Mas imagina se a pressão demográfica fosse como há 10 anos, quando o volume de gente que chegava ao mercado de trabalho era maior. Essa brecha permite que seja efetivamente possível investir mais na educação. Investimos, mas não o suficiente, porque aí é fácil falar e difícil fazer. Uma escola que oferece 3, 4 horas de aula para uma criança, uma criança que não tem sustento cultural na família, não oferece nada. Então, se você quiser chegar, olhando para frente, em melhor condição, é preciso acelerar o que já começou – uma transformação maior na educação. Já começou, é indiscutível. Em vários Estados você tem esforços, isso é inegável. Mas é preciso haver um esforço persistente para ampliar a permanência da criança na escola. O mais difícil ainda, melhorar o nível dos professores. Isso é crucial. E ter a coragem de entender que, no mundo moderno, não podemos continuar ensinando coisas que não são úteis, que não são necessárias. [É preciso] mudar o currículo profundamente. Não sei a resposta. Não sei se o que eu vou dizer tem sentido: será que são necessários 5 anos para se formar em direito? Por que 5? Quantos para se formar em economia? A velocidade do mundo é tal que você hoje talvez não precise de tanto tempo. E estudamos na escola coisas que não são úteis. Até hoje sou capaz de recitar para vocês pedaços do Cícero (Gallia est omnes divisa in partes três, quarum unam...). Isso nunca me serviu para nada. Estudei 7 anos de latim. É melhor aprender bem o português. E talvez o inglês. Não estamos fazendo o que os chineses estão fazendo. Eles estão alfabetizando em inglês maciçamente. Nós aqui ainda não. Matemática, coisas elementares. Como é que vai ser a formação? Fui, até agora, professor da Brown University, nos Estados Unidos. Uma grande universidade, Ivy League, uma das melhores. O aluno entra lá no “college”, faz o primeiro ano, o segundo ano. O terceiro ano já começa a ser diferente: ele faz o currículo dele. E não há contradição em estudar poesia grega, matemática e biologia. Aqui, vejo nos meus netos: é uma angústia. Com 17, 18 anos, têm que escolher a profissão. Entrou ali é uma gaveta, não sai, é um túnel. E é um massacre para conseguir entrar. Tenho uma neta que entrou em três faculdades de direito. Terminou o primeiro ano e desistiu, “ah, eu não quero isso”. Então perdeu tudo, volta, vai fazer outra coisa. Quem tem 17 anos não sabe o que quer. Era preciso ter uma base maior, dar mais flexibilidade, mais liberdade. É o contrário do que se costuma fazer no Brasil, [com uma] regra geral para o país todo. Se você quiser uma sociedade dinâmica e moderna, é o contrário. Não sei se, no futuro, você vai ter um curso de engenharia. Aliás, o que se chama hoje de engenharia é muito diferente do que no meu tempo se chamava de engenharia. Tem engenharia de alimentos, tem engenharia disso, daquilo. Daqui a pouco tem engenharia de turismo. São coisas diferentes porque o mundo é outro. Ainda estamos nesse aspecto um pouco ossificados, temos uma visão um pouco coimbrã das coisas. Mudar a educação é não só uma questão de acesso, o que se ensina no primário e secundário, mas também depois no próprio conteúdo do que se ensina. É dar mais flexibilidade na formação porque a pessoa não vai ter mais emprego, vai ter ocupação.
ÉPOCA – Tem um ponto, presidente, que o senhor mencionou: a ponte da universidade para a empresa. Aqui no Brasil, a gente tem a impressão de que é muito difícil você transformar o conhecimento em produto. E isso é crucial para ser competitivo no mundo de hoje. O que o Brasil deveria fazer?
FHC - Se você pegar as universidades, tradicionalmente é verdade isso. O brasileiro tem receio. Imagina uma empresa contratar um departamento. “Isso é inaceitável, é privatização”.
ÉPOCA – Que é palavrão aqui...
FHC - É palavrão. Mas o que está acontecendo? Está havendo uma multiplicação de escolas à parte desse mundo tradicional. As empresas também estão investindo mais em treinamento e educação. Mas ainda estamos longe. Vamos ver pela Petrobrás. Ela forma geólogos. Propicia os cursos de formação. Por isso o Brasil avança, porque a sociedade brasileira avançou mais que o Estado brasileiro. Se a sociedade precisa de outras coisas, ela faz, inventa uma saída. Não é o ideal, mas funciona. Porque a sociedade aqui é vibrante. E, na medida em que a gente consegue quebras as regras, não ser tão centralizado em Brasília... Tenho horror à centralização em Brasília, não porque eu tenha nada contra Brasília, mas o mundo moderno não funciona assim. O mundo moderno não funciona com estruturas hierárquicas e centralizadas. Ele funciona com estruturas mais dinâmicas, como a Al-Qaeda. Organiza, desorganiza, por cissiparidade, células, rejunta mais adiante. Como você aprende a mexer com internet? É fazendo, naturalmente. E nossa escola não é a escola do fazer. Temos sementes de modificação, em São Paulo, por exemplo, temos esse sistema de escola profissional técnica, as Fatecs e Etecs. São interessantes. Recebo aqui uma vez por mês, às vezes duas, estudantes do curso secundário do último ano. Eles visitam as coisas daqui, depois têm uma conversa comigo. É muito interessante. Eles dão o tema sobre o qual querem discorrer – só não pode partido, eleição, para não pensarem que estou doutrinando. É interessante: as Fatecs funcionam, você não vê diferença. Às vezes, para melhor. Também não vejo diferença entre ensino público e privado no nível. Outra coisa interessante é que as moças são mais audaciosas nas perguntas que os homens, em geral. Perguntam mais. A escolarização da mulher é superior à do homem, em geral. No começo, ficam um pouco encabulados, mas depois perguntam com muita propriedade. Não lembro o nome da última escola que esteve aqui. Só fizeram perguntas apropriadas.
O outro gargalo que eu vejo não tem nada a ver diretamente com a economia – claro que pressupõe uma economia dinâmica e um estado mais ou menos organizado para poder ampliar a educação e tal. O outro problema complicado é segurança, segurança pública. E aí vem droga, vem tudo junto. Ainda não encaramos isso na política, na visão do que é o Brasil do futuro. Um país decente é um país que tem crescimento, tem emprego, tem educação, mas tem segurança também. Desde segurança jurídica, acesso à justiça, essa coisa toda. Vou contar um caso só. Outro dia fui chamado, faz uns meses aí, pelo juiz [Fausto] De Sanctis, como testemunha de acusação do caso do dossiê Cayman.
ÉPOCA – Isso ainda existe?
FHC - Isso faz 10 anos. É a primeira vez que me chamam. Há dez anos, um caso que envolvia o presidente da República, um governador e dois ministros. Se, nesse caso, levam 10 anos para a primeira audiência, você imagina o que acontece... Não acontece nada. Então, segurança jurídica, segurança das pessoas, o que fazer com o crime. Algo está avançando. Você vê o caso de São Paulo. Aqui nesta região, o centro ampliado, a taxa de homicídio é acho que de 10 por 100 mil. É uma taxa mais ou menos igual à de primeiro mundo. Se você for andar por aí, podem roubar teu bolso, furto é muito maior, mas o homicídio caiu. E a gente sabe por que caiu. Participei com o instituto de um seminário, e em Harvard também existe um monte de estudos para mostrar que há uma relação entre a diminuição nas taxas de criminalidade e a quantidade de pessoas na cadeia. Tem que prender. Mas o outro lado é que a cadeia virou escola de crime. E o governo muitas vezes perde o controle sobre a cadeia, como aconteceu há alguns anos atrás naquele mês de maio. Como é que muda a cabeça também da própria justiça e do legislador? Tem uma porção de penalidades que não deviam ser de cadeia, porque senão você não tem cadeia suficiente para quem é criminoso mesmo e vai ensinar a quem não é tão criminoso assim o crime lá na cadeia. Em certas áreas, como é que você treina o juiz para entender? É muito difícil. Essas coisas a gente está longe de entender que são problemas para o crescimento do país, não da economia. Do país. Da vida da sociedade, da nação. O importante, daqui a 20 anos, não é saber quanto está o PIB. O PIB vai variar, acho que vai ser 0 esse ano. E ai, a culpa é do governo? A culpa não é de ninguém, pode ter sido um erro de política aqui e lá, mas são circunstâncias, o sistema capitalista funciona como sanfona mesmo, vai ter crise, pode regular à vontade.
ÉPOCA – O senhor está falando que, daqui a 20 anos, o importante vai ser como ficou nossa vida?
FHC - Isso, a vida das pessoas. A vida não é só mercado, não é só economia. Depende da segurança num sentido amplo, depende da educação...
ÉPOCA – Quer dizer, ao contrário do que disse a Margaret Thatcher, existe a sociedade.
FHC - Exatamente isso, a sociedade existe, não é o mercado (risos). A sociedade existe e as pessoas vivem na sociedade. Quando você tem predominância, como tínhamos no Brasil frequentemente, o que é que regulava e regula [a vida] até hoje? É quase só o mercado. Isso é ruim. Você não tem valores, não tem outras atividades, não tem lazer. Vocês poderiam fazer na revista, entrevistar a camada jovem, mas jovem mesmo, 18 anos, o que eles veem? Quais são os temas que os sensibilizam? Em várias classes, da alta à baixa. Essa meninada que votou no Obama, aqui estaria onde? Quem é que simboliza a aspiração dos que estão vindo? Que provavelmente vão estar muito mais focados no tema da felicidade – do bem-estar, não no sentido da riqueza material, do bem-estar mesmo, saúde, segurança – do que no resto. E não vão ficar tão preocupados, como a minha geração e até agora, com emprego, emprego, estágio. Minha filha, que tem 45 anos ou mais, renunciou à posição de professora da USP. Renunciou. Porque ela trabalha com educação, tem uma ONG importante e isso limitava o tempo dela. E o salário é baixo. Ela é doutora, tem uma carreira e renunciou. Isso, para a minha geração, é impensável. A gente tinha medo de ficar sem emprego. Já que você tem um emprego, segura, né? Até a aposentadoria. Para sempre. Para sempre. Não, as pessoas estão mais predispostas a mudar. Então é preciso perguntar a essa nova geração como vai ser a vida daqui a algum tempo, o que você quer fazer? Não sei se haverá tanta obsessão, como na minha geração e na de vocês também, pelo trabalho, que ocupa todo mundo em seu tempo inteiro.
ÉPOCA – Será que, então, a gente vai para aquela sociedade do lazer, como Marx dizia no Capital...
FHC - Se você lê começar a ler O Capital, no volume terceiro é fantástico. Tirando a parte política, que é uma visão da história que não se concretizou, a utopia dele era boa. No fundo, era mais sociedade e menos Estado, e era mais livre. Isso só pode ser imaginado quando a sociedade sair da escassez.
ÉPOCA – O senhor acha que a gente está indo para uma coisa menos de escassez?
FHC - Espero. Comparando quando eu nasci para hoje, que dúvida? A classe média brasileira não era o que ela é hoje não. Sou de classe média, nunca fui pobre. Mas, naquele tempo, a coisa era mais contada. Porque era contada na sociedade, havia menos bens materiais também. Quando eu era criança, queijo vinha de Portugal, queijo do reino, aquela bola. E uva também era importada. E pêra, maçã e tudo o mais, numa época do ano.
ÉPOCA – Qual era a utopia da geração do senhor, quando o senhor estava se formando?
FHC - Foi uma época boa, foi bem em 52, 53, Getúlio... Daí veio logo o Juscelino...
ÉPOCA – Pois é, o Brasil ali só dava certo.
FHC - Só. Liberdade e crescimento. Mas é a ideia de ter um país mais fechado. Muita reação contra...
ÉPOCA – Isso não vem de volta agora com essa crise?
FHC - Mas não consegue. Não consegue. Está de volta no jornal, na internet, mas no dia-a-dia acabou isso, não tem como. O fluxo de ideias, de bens, de serviços.
ÉPOCA – Mas essa visão assim, liberdade e crescimento, uma coisa fechada, era mesmo um sonho do Brasil, essa coisa daquela Copa de 58 que foi muito importante, aquela afirmação brasileira...
FHC - Era muito importante, mas hoje estamos mais tranquilos quanto a isso. Usando o slogan do Stephen Zweig: o Brasil era o país do futuro. Já não é mais, já está aqui. Eu disse há alguns anos isso: o nosso problema não é mais de subdesenvolvimento, é de injustiça. Para o nível de desenvolvimento que nós temos, temos muita injustiça. É um problema quase moral. Não se justifica ter tanta desigualdade e tanta pobreza, dado o nível de desenvolvimento que temos. Não tínhamos esse desenvolvimento naquele tempo.
ÉPOCA – O sonho era alcançá-lo, por isso o desenvolvimento era uma ideia de todo mundo, certo?
FHC - Porque era necessário. E ainda é, claro. Mas hoje o desenvolvimento está inscrito na natureza da sociedade: vai crescer. Não tenho certeza se vai ser uma boa sociedade. Ou seja: se vai ter felicidade, acesso à segurança, educação, lazer. E, se você não tiver educação e cultura, não vai fruir. É a tragédia de uma certa camada da população brasileira que enriqueceu muito. O que ela faz? Ela come, engorda, faz dieta. Viaja, chega lá e não sabe falar a língua, volta, acha tudo ruim. Você, no futuro, terá que ter pessoas capazes de fruição. Não é fruição material só. Fruição espiritual também.
ÉPOCA – Numa entrevista anos atrás, o senhor previu que estávamos indo para um sistema financeiro descolado da produção, você usava a expressão ciranda financeira. E o senhor dizia que o mundo precisava de um governo global.
FHC - Continuo achando.
ÉPOCA – Por que é tão difícil avançar nisso aí?
FHC - Porque fomos criados na ideia da soberania. Essa terra é minha, eu nasci aqui, eu tenho limite, eu tenho fronteira, eu tenho um Estado que controla essa fronteira etc. Isso vai continuar a existir. Vai continuar e é necessário que seja assim. Só que, com a globalização, não dá para dirigir a partir só disso. Alguns temas transcendem a fronteira, inclusive ecologia. Sempre falo do Gorbachev, disse até a ele quando ele veio aqui 5 anos depois de 92, e eu era presidente. Aquilo foi uma mudança importantíssima, porque ele era o chefe do Partido Comunista, o chefe da União Soviética, e ele disse: “Olha, não dá para pensar em bomba atômica, porque a bomba atômica atinge a todos, tem que pensar em ecologia”. Então, não basta Estado nacional nem classe. Isso não vai abolir Estado nacional, nem classe, nem portanto as lutas de classe, mas há uma área do mundo hoje que, por causa da expansão da economia e da expansão da tecnologia, afeta a todos. E tudo ficou mais ou menos transnacionalizado. Você pega o crime, o crime é internacional. Toda essa questão do meio ambiente e aquecimento global, tudo isso é internacional. A economia, o dinheiro, a água. Não é criar um governo mundial, isso não existe. O Kant dizia, a respeito da paz universal: para ter isso, tem que ter um direito internacional.
ÉPOCA – Tinha que ter alguma instância jurídica que fosse capaz de regulamentar.
FHC - Bom, eu acho que algum progresso houve nessa direção em certas áreas. Por exemplo, o genocídio. É crime contra a humanidade. E nós temos o Tribunal Penal Internacional. É um começo. Agora, a regulação financeira. Os Estados Unidos sempre se opuseram a aceitar qualquer regulação. Deu no que deu agora. Não é que, se tivesse regulação muito grande, a crise não ia vir. A crise ia vir. Ela pode diminuir como no Brasil, porque nós regulamos mais e defendemos o sistema financeiro. Mas é preciso ter alguns órgãos de articulação no nível global. Eu acho que isso está se discutindo neste momento. O que se faz na Basiléia, no BIS (Bank of International Settlements). O que se faz lá? Isso vai ter mais força, menos força? Quem controla as organizações internacionais? FMI, Banco Mundial.
ÉPOCA – O FMI teve um ressurgimento...
FHC - Teve. O FMI, que estava morrendo, voltou aí. Olha, desde o meu tempo eu dizia: o problema do FMI não é que ele seja forte demais, ele é fraco. Primeiro, quem manda nele é o Tesouro dos Estados Unidos. Eu não estou dizendo coisa que eu ouvi falar. Eu telefonava pro Clinton: “Olha, esse pessoal tá maluco, querem que baixe a taxa de juros e eu não vou fazer”. Então, claramente você hoje precisaria não só do que está sendo feito. Deram US$ 750 bilhões ao FMI, uma loucura. Pouco, para o que se tem no mundo, mas nunca tiveram tanta possibilidade. Mas não mexeram na estrutura de mando do FMI. Os Estados Unidos têm direito de veto.
ÉPOCA – Eles andaram distribuindo um pouco ali, mas realmente muito pouco, a diferença é...
FHC - ...muito pequena. Mas vai indo nessa direção. Isso não quer dizer que você vai acabar com o Banco Central de cada país. Pode até ser. Mas é muito pouco provável que a China, ou o Brasil, ou os Estados Unidos aceitem.
ÉPOCA – Há uma tese aí de que você conseguiria fazer isso num prazo de 30 anos, mas que no começo ia ter que pegar quatro moedas fortes e estabelecer...
FHC - ...uma cesta de moedas. Mas isso não acaba com o Banco Central propriamente. Acaba com uma referência, que hoje é o dólar. Você substitui o dólar, que é a discussão que está aí. Os chineses estão aí com uma reserva de US$ 1,4 trilhões e estão assustados. E se o dólar desvaloriza? Há uma discussão nesse sentido. Eu acho possível que se aceite uma cesta de moedas. Não vamos esquecer que as moedas mudaram muito. A libra, que foi uma moeda de reserva, deixou de ser. O franco suíço já foi mais importante. É difícil, sei lá, que seja a moeda chinesa, porque não tem conversibilidade.
ÉPOCA – E, na hora que ela for conversível, muda tudo lá. Eles vão ter que aceitar uma coisa que eles não aceitam que é perder o valor da moeda, e aí deixa de ser esse exportador maravilhoso que é hoje.
FHC - Não vai ser fácil. Mas eu acho que é possível que se baixe, para ter mais uma moeda de reserva. O euro já foi importante nesse sentido, mas eu acho que, independentemente disso, você vai ter que ter modos de articular as regras do capital financeiro. Não é só para evitar a crise. É para amenizar, não haver um descontrole. Tudo o que não é estritamente banco ficou sem regra: banco de investimento, fundo hedge...
ÉPOCA – O senhor foi surpreendido pelo tamanho desta crise? Porque o que o senhor disse lá em 97, parece que está falando de Lehman Brothers.
FHC - Se você for ver recentemente, eu fiquei muito impactado com uma reunião de um seminário que assisti em maio de 2007 nos Estados Unidos, no Citigroup, onde estava claro que o negócio estava estourado. Só que eu vim aqui, fui numa reunião com uns economistas ligados ao PSDB e ninguém levou a sério (risos).
ÉPOCA – Quando a coisa está quase estourando, ninguém quer ver.
FHC - E, olha, eu não sou economista, estou de acordo com vocês. Mas eu vi uma coisa um pouquinho diferente, e tal. Tinha um cara lá com quem eu negociei a dívida externa nossa, do Brasil, que escreveu um artigo, o Bill Rhodes. E eu dei o artigo do Bill Rhodes para eles lerem. Ele dizia isso: a crise está aí. Esta crise estava na cara já em 2007. Quantas vezes muitos de nós escreveram que era insustentável a política americana por causa dos déficits públicos. Só que é assim, toda crise é igual. Você acha que ainda tem um pouquinho mais, vai ganhar um pouquinho mais, e, se você está ganhando, eu também tenho que fazer a mesma coisa, senão eu perco. Aí vai voltar o Marx, que dá lá a explicação do mecanismo de crise.
"O país do futuro já está aqui"
Para o ex-presidente, o problema do Brasil não é mais o desenvolvimento – é educação e segurança
Helio Gurovitz e Paulo Moreira Leite
ÉPOCA – É aquela irracionalidade intrínseca.
FHC - Ela é intrínseca, porque, se você regular tudo, é uma economia planejada...
ÉPOCA – Mas isso é natureza humana, porque isso está baseado em emoções humanas, é a cobiça e...
FHC - E vai assumir o risco. Se não tiver isso, você faz uma coisa burocrática. Que também não deu certo e perdeu para isso. Então, você está entre a cruz e a caldeirinha, porque se regula é pior, se não regula, não evita...
ÉPOCA – Agora, o senhor acha que a economia do mundo, como tendência, está indo para haver mais Estado, mais regulamentação, ou menos?
FHC - Eu acho que o chamado neoliberalismo, o Consenso de Washington, aquilo foi um momento: o Thatcherismo, o Reaganismo, acho que um momento que passou. Provavelmente, nós vamos ter vários modelos. Não há um caminho, não há um capitalismo, um modo total de organização. Você vê o mundo eslavo e é outro mundo. Você pega o mundo nórdico, eles têm um sistema que não é igual ao americano. A França não é igual à Alemanha. Você tem mais Estado na França do que na Alemanha, mais regulação financeira. Na Inglaterra, que era tão mais próxima do modelo americano, o Gordon Brown foi o mais intervencionista. Eu acredito também que o modelo anglo-saxão é muito próprio dos anglo-saxões, de correr risco em tudo, até na previdência. Se você colocar isso no mundo latino, é muito difícil. E não sei se é vantajoso. Agora, o que também não pode é fazer o oposto. Nós estamos ainda no oposto, com essa previdência desigual...
ÉPOCA – De certa forma, o senhor está dizendo o seguinte: lá fora, eles têm um recuo em relação a uma coisa que é exagerada para um lado, mas o nosso problema aqui ainda é o anterior.
FHC - É o anterior. Nós não somos o modelo de futuro lá de fora.
ÉPOCA – O que estão falando por aí é um pouco isso: “Ah, não, nós não fizemos aquilo, então nos saímos melhor...”
FHC - Esqueceram que nós estamos bem pelo que nós fizemos: abertura da economia. Nem era possível não abrir a economia. Tinha que abrir. Tinha gente que era contra, falava: “Vai sucatear a indústria”. Que sucatear, estamos ricos, graças a que nós abrimos a economia. Exatamente o contrário. Enfim, há outros problemas, pensando no futuro, que são preocupantes a meu ver também, porque, bem ou mal, depois da 2ª Guerra Mundial, você conseguiu um certo pacto. Agora não tem. Esse é um ponto complicado. Você tem o mundo islâmico, que é uma realidade, com 1 bilhão de pessoas. E daqui a pouco alguém tem dúvida de que o Irã vai poder fazer bomba atômica?
ÉPOCA – Dizem que em três anos.
FHC - Vai poder. Nós aqui podemos, não fazemos porque não queremos. E ainda bem que não queremos. Então, o Paquistão tem bomba atômica. A própria Rússia foi acossada, o Bush fustigou a Rússia o tempo todo. Agora, de uma maneira equivocada, porque ele não queria nem conversar. A Rússia está hoje nessa confusão, mas ela tem arma atômica e tem riqueza. Você pode pensar no mundo sem que a Rússia sente à mesa? É difícil. Ela tem fronteira com a China. Ela pode fazer aliança com a China. Ela tem ingerência sobre o Oriente Médio legitimamente, não invadiu lá o Afeganistão. Tem o Japão que está lá. Tem esse mundo aqui. Outro dia escrevi um artigo propondo um International New Deal. É preciso fazer um novo pacto internacional.
ÉPOCA – É um pouco o que começaram com o G-20.
FHC - Começaram, começaram. Já está ampliando. O problema do G-20 é que ele ainda é uma fotografia. Reúne os países para uma fotografia e vai embora, não tem nada por trás (risos).
ÉPOCA – Esse mundo é mais perigoso? No mundo da Guerra Fria, todos estávamos submetidos a duas forças. De repente caiu, mas parecia que tinha uma hegemonia americana que garantia segurança, mas não chegou a existir.
FHC - Você não teve a pax americana e os chineses até agora ainda estão retraídos. O que os chineses fizeram sobre o Iraque? Nada. Quanto eles vão dar para o FMI agora? Muito pouco. Quer dizer, eles não estão ainda colocando o dedo deles no mundo porque eles têm uma coisa de longo prazo, vão crescer mais etc. Não dão a impressão também que estejam numa posição bélica. As duas superpotências congelaram o mundo, mas não houve guerra. Agora, não está congelado o mundo, mas guerrinhas tem em todo lado. A pergunta é: isso é bom ou é mau? Pro Brasil, não é mau, porque você não tem constrangimento, pode jogar com mais liberdade. Jogar mais cartas, dar mais espaço de manobra. Para o mundo, à medida que você não tem as Nações Unidas fortalecidas, é complicado. Você não tem como parar com uma área de conflito. Aqui para o Brasil, não, porque, por sorte, nós não estamos em área de conflito. O Mercosul não foi para cá, não foi para lá, mas uma coisa é verdade: a relação entre Brasil e Argentina é boa. Então, você não tem a corrida armamentista que tem no Paquistão, tem na Índia, tem na Coreia, tem no Iraque, tem em todo lugar do mundo. Mas, como tem em todo lugar do mundo, e como os Estados Unidos nunca deixaram as Nações Unidas terem um papel mais relevante, e não tiveram condições de impor a pax americana, nós estamos com esse buraco. De fato e apesar de tudo, o que sobrou aí foram as Nações Unidas. E os americanos, depois da tentativa na guerra do Iraque de ter apoio, não tiveram apoio e congelaram. Precisa ver o que o Obama vai fazer. Ele está fazendo coisas. Eu acho que não é só simbólico, um negro que virou presidente dos Estados Unidos. Ele tem programa.
ÉPOCA – Como o senhor vê o Obama, o que ele está fazendo, o que ele pensa?
FHC - Eu não conheço o Obama. Nunca estive com ele. Só o vi uma vez num discurso lá na convenção do Partido Democrata. Ele impressiona no falar. Eu tinha medo de que ele fosse só discurso, mas olha. Ele falou com o pessoal do Irã, ele deu uma mensagem, não é fácil. Bem ou mal, ele começou a descongelar Cuba. Com o México, eles mudaram a linha. Agora, ontem, na Comissão Latino-Americana de drogas, o novo czar antidrogas norte-americano veio para a nossa posição. Ele disse que a guerra às drogas fracassou. Está vendo alguma coisa lá na frente. Eles enviaram um secretário para o hemisfério nosso aqui, que é meu amigo pessoal há 30 anos.
ÉPOCA – O Valenzuela?
FHC - Valenzuela, exatamente. É um cara aberto, que já foi ligado ao Clinton. Ele nasceu no Chile. É meu amigo há 30 anos. Agora mesmo estive lá com ele. Eu sabia que ele ia ser nomeado. Ele me disse, estava no processo. Dei uma aula lá em Georgetown, dei aula na classe dele. São sinais, o tipo de gente que está sendo mobilizado, inclusive o enviado do Obama para o Iraque e o Afeganistão, o Holbrooke, eu conheço, é um cara bom. Enfim, ele está dando sinais de mudança. Na parte financeira menos. Ele está patinando, no fundo não mudou nada.
ÉPOCA – Ele conseguiu adiar um pouquinho algumas questões que eram um pouco urgentes...
FHC - Eu vejo uma coisa curiosa: você tem hoje uma enorme liquidez no mundo. Quando veio a crise, secou o fluxo financeiro, os mercados acabaram. Agora, com a injeção de dinheiro na Europa, nos Estados Unidos, tem muita liquidez no mundo. E as pessoas não usam a liquidez.
ÉPOCA – Está todo mundo com medo.
FHC - Com medo. Se você fosse banqueiro, você ia emprestar dinheiro a quem? A quem te pede não, quem te pede deve estar na pior. E os que não precisam, os que têm dinheiro, ficam assim: “Eu não vou fazer investimento novo”. Parou. O problema na crise começou como crise financeira, de imóveis, mas hoje está no consumo. Os mercados encolheram. E vão ter que encolher, porque, com o tal descolamento entre a base produtiva e o crédito, as finanças, nós estamos ajustando. E, para ajustar, vai ter que dar uma encolhida muito grande. Está dando uma encolhida. Você pode dar liquidez que não adianta. Aí o governo diz: “Eu dei dinheiro ao banco e o banco não emprestou para ninguém”. Mas muito pouca gente quer, e os que querem não pagam. A inadimplência continua grande. Enquanto estivermos assim, não tem como acomodar esse processo. Vai ter problema. E eu não vejo como tenham atacado esse processo lá nos Estados Unidos. Aqui é diferente, aqui foi indireto, o que encolheu mais foi o mercado lá de fora. Aqui dentro começa agora. Você vê nesses últimos quatro meses a curva de desemprego deu uma subida. E a massa real de renda caiu. Então, isso vai diminuir o consumo. E, quando você diminui o consumo, aumenta ao desemprego. Embora o governo esteja fazendo duas coisas: dando dinheiro para o consumidor, ou diminuindo o imposto para o consumidor. Não adianta muito, porque, para quem consome, no mês seguinte acabou. Comprou, acabou. E o governo perde receita fiscal. E está dando dinheiro para salvar empresas, aí à larga. Se você está com dificuldade, está salvo. Desde que seja grande. É válido. Eu entendo até, diante das circunstâncias tão dramáticas.
ÉPOCA – É a forma política de gerir a economia...
FHC - Eu acho difícil que, a longo prazo, isso dê certo.
ÉPOCA – O presidente Lula tem essa simpatia nos círculos internacionais. O Obama falou que ele é o cara...
FHC - Estava exagerando (risos). Mas enfim, de qualquer maneira...
ÉPOCA – O senhor é amigo do Clinton, foi em Camp David. Essa relação pessoal, isso pode ser bom para o governo, é bom para o país?
FHC - Os países não se movem por sentimentos, nem dos presidentes, nem de ninguém. Eles se movem por interesses. Então isso é relativo. Obviamente, em certas circunstâncias ajuda. Por exemplo, com a relação que eu tinha com o Clinton, eu podia telefonar para ele com mais liberdade, ele também.
ÉPOCA – Deu para pleitear coisas?
FHC - Ah, deu, deu. Por exemplo, tanto eu como o Ricardo Lagos tentamos ajudar a Argentina com o Bush. Não conseguimos, havia muito preconceito com o governo argentino. Aí foi complicado o negócio. Então, que ajuda, ajuda. É decisivo? Não é. Do ponto de vista da percepção, da valorização do país, ajuda. Por acaso, li hoje um artigo que os autores me mandaram sobre a diplomacia brasileira. Ele mostra que, a partir do meu governo e com o do Lula, mudou o estilo por causa disso. Porque os presidentes são mais ativos no relacionamento. E aí já muda, porque obviamente a visibilidade do país começa a se relacionar com o desempenho do próprio país.
ÉPOCA – Na verdade, não é o desempenho que cria tudo isso?
FHC - Esse desempenho em vários setores. A democracia é importante, manter a democracia, ter uma economia aberta.
ÉPOCA – O senhor vê algum risco para a democracia do Brasil?
FHC - Não.
ÉPOCA – E de a gente desabar, de nossa economia ir para o buraco?
FHC - Eu acho que não agora. Não acho, por causa do mercado interno, das nossas políticas públicas. O Estado brasileiro, ao contrário do que se pensa, é um Estado equipado. Qual é o problema? Tem vários. Mas, quando você está em uma situação econômica de escassez, ou em uma situação fiscal ruim, o Estado fica onipotente. Por exemplo, quando eu fui ministro da Fazenda, estava tudo no chão. Não tinha nada. Você não tinha cálculo possível. Você não sabia quem devia quanto a quem no país. Cada Estado com um débito, débito na Caixa Econômica, uma loucura, inflação enorme. Então, o Estado fica parado, dá a impressão que tudo é uma porcaria. Você põe em ordem, você vê que tem um Estado, tem uma estrutura. Essa estrutura fica lá, fica amortecida às vezes com processos políticos, mas tem, tem concursos. Você tem o Itamaraty, tem as Forças Armadas, tem toda a burocracia do Banco Central, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica. Tem o lado muito menos eficiente dos ministérios sociais – mas se começou a corrigir isso com cursos de gestores. Polícia. Eu reabri curso de Polícia Federal. Estava fechado. Melhorou a qualidade da polícia. Então, quando você tem, como o Lula, a possibilidade de ampliar mais ainda o custo, você vê que o Estado respondeu. O problema agora é o oposto, acho que você desprofissionalizou o Estado por uma questão partidária. O Estado, incluindo as empresas estatais. As nomeações são do PT. Isso é uma espécie de cupim. Está comendo, ninguém vê, quando você vê, o livro acabou. Está comendo a máquina pública. Mas, de qualquer maneira, temos uma burocracia razoável. O Brasil tem, o Chile tem. O México, mais ou menos, mas tem. Colômbia tem. Argentina nunca teve. Uruguai tem. É curioso, o Peru não tem. E ter ou não ter uma burocracia com capacidade para definir e implementar políticas públicas faz a diferença. Porque você tem armas para atuar. E o Brasil tem uma outra coisa que as pessoas notam pouco, mas é importante: nós temos um sistema nosso de poupança, para fazer capital aqui. O centro financeiro funciona. Você poupa em reais, não poupa em dólares. E o governo toma emprestado em reais, não em dólares. Olha, isso era um inferno no meu tempo, eu dizia para o pessoal, FMI, banqueiros internacionais, agências de rating. “Ah, a dívida interna está crescendo muito”. Eu esqueço a dívida interna. A dívida interna no máximo dá em inflação. Não dá calote. O calote é interno. Pelo Collor ter feito o calote, caiu, porque o calote é em nós. Como é que se beneficia o governo brasileiro: nós temos dinheiro no banco, esse banco pega e compra títulos do governo. Nós somos credores do governo brasileiro. A população brasileira. Não são os bancos em si, mas quem tem conta em banco, quanto maior a conta, mais você é credor. De qualquer maneira, isso é feito internamente. Na Argentina, quando eles deram o calote, arrebentaram os italianos, os espanhóis. No México, os americanos. Aqui não, a poupança é interna.
ÉPOCA – Uma ideia que o tempo todo que o senhor está falando: a gente tem um caminho meio próprio, né. A gente se autofinancia, a gente se abre, mas não e abre muito...
FHC - Comparativamente sim. Tem outra coisa: o Brasil, pela distância que está dos polos, é um subpolo. O Chile é um país que avançou, mas não é polo, não pode ser polo, pelo tamanho. Aqui, nós temos agricultura, e muito boa. O pessoal só falava da reforma agrária e estava havendo a revolução agrícola. Isso sim, foi o meu tempo. Nós que forçamos a acabar com a dívida do Banco do Brasil, que é uma sede do financiamento rural, demos força para a Embrapa, o BNDES financiou a modernização da frota. Então, tem uma boa agricultura. Nós temos indústria, que aumentou muito.
ÉPOCA – A gente sempre protegeu essa indústria, nunca expôs totalmente.
FHC - Não, sempre. Quando houve a privatização, sempre houve a preocupação que os setores não ficassem só na mão dos estrangeiros. Veja as telecomunicações. Uma parte brasileira. Siderurgia, papel e celulose.
ÉPOCA – E tem a história dos bancos. Os bancos estrangeiros vieram para cá e se deram mau.
FHC - Se arrebentaram. Quer dizer, aqui tem uma capacidade produtiva que tem sua musculatura. E isso está ligado também à capacidade tecnológica nossa. Universidades. Nós temos universidades. O pessoal fala mal, fala mal, mas temos universidades. Tem alguma coisa que alimenta esse processo. Isso é uma coisa que não se construiu do dia para a noite, vem vindo. Da vinda da corte para cá, que trouxe as instituições estatais portuguesas. Olha aqui, uma vez eu convidei o Jorge Sampaio, presidente de Portugal, para assistir a um desfile de 7 de setembro. É tradição, você convida algum presidente. No 7 de setembro, quando estava desfilando a tropa, o locutor dizia: “Esse batalhão regimento Andrade Neves foi formado por provisão de sua majestade a rainha Maria I” – que nasceu em Portugal. E veio para cá. Quer dizer, tem estruturas públicas. E, quando eu digo público, é além do estatal. As empresas estatais brasileiras sempre foram quase todas do mercado, tiveram mercado. Não todas, os Correios não. Mas a Petrobras e o Banco do Brasil, sempre tiveram ações. Volta Redonda, Siderúrgica Nacional, no mercado. As telefônicas, sabe quanto por cento o governo tinha quando nós privatizamos? 19,5%.
ÉPOCA – Era o maior acionista...
FHC - Era o maior e tinha o bloco de controle. E tinham feito uma privatização sem ninguém saber. Você comprava o telefone e vinha uma ação. Dez ações. Alguém mais esperto ia lá e comprava suas ações, você vendia por nada. Boa parte foi privatizada na surdina. O controle não, nós privatizamos 19%. Porque já era, já estava no mercado.
ÉPOCA – A Petrobras é meio assim.
FHC - Na Petrobrás, a maioria não é do governo. Ele tem o controle. Quando você vai no México, não é assim. A Pemex não é assim. Então a Pemex faz o que fizeram agora na Venezuela. A Pemex faz um duto direto dela para o Tesouro Nacional. A carga tributária do México é 17, 18%. E isso não é possível. Por que faz isso? Porque tudo o que a Pemex ganhar vai para lá.
ÉPOCA – Mas só agora tiraram a Petrobras da conta do superávit.
FHC - Só agora tiraram. Mas então você tem certas especificidades. A Índia tem as especificidades dela; o Japão tem as suas. Você pensar que o sistema capitalista é uma coisa homogênea é um equívoco. As regras de mercado estão aí, mas as instituições são historicamente construídas. O Japão não é assim. O Japão sempre teve um sistema de proteção ao trabalho diferente do resto do mundo. Como é que chamam? Job for life. A estabilidade na mão da empresa, não tinha regra do governo para isso. A Índia eu não conheço bem, mas a Índia tem outro sistema. A gente pensa que tudo é o capitalismo anglo-saxão. Não é assim.
ÉPOCA – Vai diminuir essa hegemonia cultural do pensamento anglo-saxão?
FHC - Eu acho bom, porque você vai ter mais diversidade no mundo. Isso você vai ver, a globalização não é a expansão do capitalismo anglo-saxão. É outro engano, não tem nada a ver com imperialismo. A globalização foi uma revolução tecnológica que juntou todas as economias: a chinesa, a japonesa, a nossa, a coreana. Só não junta mais a cubana porque não deixam. A americana, a europeia e tal. Então, não vai desaparecer globalização nenhuma. Pode desaparecer a hegemonia cultural do modelo particular dentro desse sistema mais global. Isso dá mais espaço de respiração. Então, provavelmente dentro dos anos 2020, o Brasil vai poder respirar com mais tranqüilidade. E aí nós temos uma vantagem também, se esse mundo for para maior diversidade e governos menos fechados. Eu não penso num governo global, mundial não: tem que ter estruturas que possam se conectar e desconectar. Nós aí temos uma vantagem cultural: é aqui o verdadeiro melting pot. Não são os Estados Unidos, é o Brasil. Você, pela cara, não sabe quem é brasileiro. Mas não é só isso. Você tem preconceito, tem nos Estados Unidos também, tem em toda parte. Mas você não tem aqui segregação, nem uma cultura diferenciada. Não há uma cultura branca e uma cultura negra. Não tem. Você não tem uma comida branca e uma comida negra. A comida nossa é uma confusão, é brasileira. Nesse sentido, nossa capacidade plástica é maior. O que não é mau também. Nós somos bastante diversificados aqui dentro, mas tem um ponto de unificação. Lá, você vai num restaurante que tenha música negra, que tenha soul music ou um tipo de jazz. Aqui mistura na cultura, o que eu acho bom. Você vê que pessimista eu não sou.
ÉPOCA – Pois é, eu estava tentando pegar um pessimismo aí, mas não achei não.
FHC - Esse americano que veio aqui, esse professor, ele disse: “Eu sou pessimista. Eu vou fazer uma análise pessimista”. E ele é mesmo. Nada vai dar certo.
ÉPOCA – Eles adoram, né? Tem um nicho de mercado para isso.
FHC - É o que eu disse, como eu sou o único pessimista lá na China, eu vou para tudo quanto é seminário. Todo mundo lá: “A China tem um futuro brilhante”, e eu: “Não tem”. Aqui no Brasil é variável, mas a maioria acha que não vai dar certo. Eu acho que vai dar certo.
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