sábado, 2 de maio de 2009

Hipocondria e a epidemia do medo

Folha de São Paulo

02/05/2009

Joel Birman, especial para a Folha

SE DIVERSAS CENAS sombrias sobre a gripe suína se condensam principalmente no México e nos EUA, fontes do vírus da gripe em questão, elas se internacionalizam imediatamente e começam a se alastrar com a ameaça da pandemia.
A globalização, ao nos colocar num mundo sem fronteiras, cria as vias de facilitação para tornar presente a ameaça do mal em escala internacional. É o temor da morte que se atualiza de maneira inevitável, pois para interromper as trilhas de sua transmissão necessário seria suspender o trafico aéreo internacional. O que, convenhamos, é no limite impossível, principalmente se considerarmos a existência atual da recessão econômica global. Porem, é inevitável que a economia já sofra os efeitos da pandemia, em diferentes setores das atividades produtivas. No entanto, o que está em pauta é o medo. É esse o que principalmente se dissemina, com uma rapidez infinitamente maior do que o vírus. O "apocalipse now" se inscreve no imaginário coletivo de forma inequívoca. Os temores ancestrais da ordem humana se colocam em cena, minando todos os sistemas de segurança construídos pelo longo processo civilizatório. Se não existe vacina contra o vírus da gripe A (H1N1), e o Tamiflu não é o medicamento infalível para combatê-la de maneira eficaz, os limites do discurso da ciência face ao mal absoluto se tornam evidentes para todos.
Ao lado disso, as autoridades políticas orientadas pela medicina não conseguem também nos oferecer garantias para nossa segurança ontológica.

Medicalização
Foi graças à expansão do discurso da ciência e a medicalização maciça que ele promoveu do espaço social desde o final do século 18 que passamos a acreditar que poderíamos dominar inteiramente a natureza e nos confrontarmos com o mal de maneira triunfante.
Com isso, o modelo moderno centrado na peste substituiu o modelo antigo centrado na lepra. Passamos a combater diretamente o mal com uma série de medidas sanitárias no interior do espaço social, ao invés de isolá-lo e procurar circunscrevê-lo na periferia das cidades, pela sua expulsão desterritorializante (Foucault).
O discurso bacteriológico, inventado por Louis Pasteur no século 19, incrementou em muito a suposta eficácia do modelo da peste, multiplicando as ações da saúde publica e os controles epidemiológicos. No entanto, a pandemia é um acontecimento no limite imprevisível, apesar de o bioquímico austríaco Norbert Bischofberger (criador do Tamiflu) afirmar que seria previsível, pois as epidemias globais aconteceriam regularmente a cada 30 ou 40 anos.
Porém o momento preciso em que a epidemia acontece é imprevisível e não pode ser antecipado rigorosamente pela ciência, nos deixando assim todos de calças curtas e aterrorizados diante da implacabilidade da morte. Isso porque, se a disseminação virótica se realizar efetivamente, como ocorreu no caso da gripe espanhola em 1918, não existiriam nem hospitais nem medicação disponíveis para todo mundo, mesmo que sejamos hoje bem mais ricos e poderosos do que no inicio do século 20. Assim, é o desamparo psíquico de todos nós que fica à flor da pele nessas situações limites e catastróficas, pois não temos com quem contar, em última instância, para nos proteger do mal. É claro que as regiões mais ricas do mundo têm mais recursos materiais e simbólicos para se confrontarem com esse do que as pobres, assim como o inverno que se aproxima no hemisfério Sul expõe ainda mais os países pobres ao risco.
Porém o desamparo nos leva todos a acreditar que estamos ameaçados por tudo e por todos, pela natureza e pelo outro. Seria o desamparo a condição concreta de possibilidade para a produção disseminada de sintomas hipocondríacos. Com efeito, qualquer mal-estar que venhamos a sentir será o signo inequívoco da presença do mal, num contexto em que ninguém pode efetivamente nos proteger.
Enfim, se a hipocondria é o sintoma produzido no sujeito quando esse supõe que não foi desejado pela mãe e a ameaça de morte é o signo infalível de que a mãe nos abandonou aos poderes da natureza, como nos ensina a psicanálise, o imaginário hipocondríaco será a moeda corrente nos tempos catastróficos da pandemia. A dor e o sofrimento psíquicos são as resultantes desse medo amplo, geral e irrestrito promovido no imaginário coletivo pela pandemia. É preciso assim que fiquemos atentos ao lance, para não sucumbirmos pelo terror da morte.
Para isso, é preciso relativizar as supostas certezas do discurso da ciência para constituirmos formas outras de lidar com o nosso desamparo e combatermos vigorosamente as forças maléficas que nos cercam na existência social.

JOEL BIRMAN é psicanalista, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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