domingo, 31 de maio de 2009
Voto dissidente de Cançado Trindade em Haia
Voto dissidente de Cançado Trindade na Corte de Haia enviado pela Profa Deisy Ventura
Centenário de Isaiah Berlin
UE: integração ainda causa desconfiança na maioria dos eleitores do bloco
O Estado de S. Paulo
31/05/2009
Andrei Netto
O euroceticismo, sentimento nacionalista marcado pela aversão à União Europeia, está de volta - e fortalecido - em 2009. Depois de três votações que frustraram a adoção de uma constituição europeia na França, na Holanda e na Irlanda, pesquisas indicam que em 12 dos 27 países que compõem o bloco menos da metade da população acredita que a integração política e econômica faz bem a seus países.
O levantamento é feito todos os anos pelo Eurobarômetro, instituto da própria Comissão Europeia. À pergunta "Você acredita que fazer parte da União Europeia é uma coisa boa?", 53% dos europeus responderam afirmativamente. O resultado foi obtido graças a 15 países, entre os quais Alemanha, Espanha e Holanda, todos com porcentuais superiores a 50%.
ETNOCENTRISMO
Nos demais membros da UE o resultado foi diferente. Em países como Grã-Bretanha, Áustria, Hungria e Letônia chegou-se à conclusão que os movimentos etnocêntricos estão mais organizados hoje do que na época da ascensão de líderes da extrema direita, como Jean-Marie Le Pen, na França, e os irmãos Kaczynski, na Polônia. "É uma espécie de ?britanização? da Europa", disse o cientista político Dominique Moïsi, diretor do Instituto Francês de Relações Internacionais.
Especialista em extrema direita, Jean-Yves Camus, pesquisador do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, disse que a opinião pública associa a UE à globalização, um fenômeno ainda temido. "Por trás do eurocentrismo, há mais medo da globalização do que da Europa."
O arco-íris do Ocidente
Jornal do Brasil
31/05/2009
Mauro Santayana
O relatório da Anistia Internacional vai além das denúncias, dolorosas em sua rotina, da violação dos direitos humanos no mundo. Em seu texto, a secretária-geral da organização, Irene Khan, aponta o perigo de que, com suas medidas para vencer a crise econômica mundial, os governos ampliem a miséria, desrespeitem ainda mais os direitos humanos. Segundo sua análise, trata-se de uma situação explosiva.
É do comodismo intelectual o vezo de pluralizar a ideia de crise. É assim que falamos em crise ambiental, em crise econômica, em crise da educação, em crise da saúde. Na realidade só há uma crise, que é a crise do homem em sociedade. A sociedade é o que ela quer ser. Em determinados momentos, os homens conseguem sofrer menos do que em outros. São os escassos intervalos em certas regiões do mundo e sob determinados tipos de civilização, quando o ser humano, ao respeitar os direitos de seu semelhante, vê os seus próprios direitos respeitados.
Vivemos, nestes quase dois séculos de desenvolvimento tecnológico acelerado, em duas direções antagônicas. A ciência médica – para os que dela podem valer-se – conseguiu dilatar a expectativa média de vida para além do imaginável. Ao mesmo tempo, a existência cotidiana do homem ultrapassou os limites de espaço e tempo, mediante as comunicações velozes. A difusão das informações permite, aos interessados, o dom da ubiquidade, que era atribuído aos deuses. Estamos em todos os lugares, em todas as horas. Talvez por isso mesmo nos sobre pouco tempo para conviver com a própria consciência e para filtrar, de tantas imagens e ruídos, os sumos da vida. E nunca tivemos tanto medo de viver.
Sempre fomos uma espécie amedrontada, mas o medo aumenta, da mesma forma que aumenta a desigualdade e evolui a tecnologia. Temos medo das ruas, da invasão violenta dos nossos lares, dos vírus, das enfermidades corriqueiras, dos hackers, das interceptações telefônicas, das viagens, das imagens cotidianas da morte, em Gaza, na África ou nas favelas do Rio, trazidas pela televisão. O medo agrava a iniquidade. Não nos damos conta que os direitos humanos são os direitos dos outros.
A vida dos homens depende de duas tênues películas: o envoltório gasoso do planeta, dentro do qual as condições de pressão atmosférica, de temperatura e umidade limitam a reprodução dos seres vivos; e a que se encontra na mente de cada um de nós e separa os instintos primitivos da inteligência criadora e solidária que permitiu, apesar de todos os conflitos sangrentos, a sobrevivência da espécie. Essas duas películas – a física e a mental – estão próximas da esgarçadura, de acordo com os avisos da ciência e do humanismo. A nossa única esperança é que ainda haja tempo para a salvação.
Os banqueiros ocuparam quase todos os governos, para que os Estados renunciassem ao poder e ao dever de impor a justiça nas relações econômicas. Foi uma irrupção do instinto predador contra a inteligência ética. Homens tidos como respeitáveis, com vistosos títulos universitários, substituíram as regras pelo "vale tudo", e se tornaram larápios. Ainda agora, a bancada do sistema financeiro no Congresso Nacional conseguiu infectar medida provisória que tratava de outro assunto, ao aprovar a impunidade dos "agentes públicos" que, em intervenções para assegurar "solvência e liquidez" ao sistema bancário, causem prejuízos ao erário. O presidente Lula, em boa hora, vetou o enxerto, que tinha também efeito retroativo e visava a proteger os responsáveis por bilhões de prejuízos causados ao povo brasileiro, entre 1995 e 2002. Esses guardiães da moeda têm o fundado temor de que os cidadãos honrados os levem a tribunais também honrados – e à cadeia.
A secretária da Anistia Internacional prevê crise humanitária sem precedentes se o problema dos direitos humanos não for enfrentado com decisão. Depois de examinar a situação, país por país, Irene Khan pediu aos líderes mundiais que busquem um new deal, com compromissos e medidas concretas dos governos, a fim de "desarmar esta bomba", e os conclamou a investirem nos direitos humanos, com a mesma determinação com que buscam restaurar a economia.
Há mais de 40 anos, o escritor haitiano René Depestre, no poema Arco-íris para um Ocidente cristão, previa a revolta mundial e definitiva dos pobres, com a ocupação das propriedades e a vingança sangrenta contra os opressores. Com outras palavras, Irene Khan nos mostra que essa profecia pode cumprir-se.
Uso de crianças-soldados choca os peruanos
O Globo
31/05/2009
Cristina Azevedo
Numa clareira, um grupo de 17 meninos entra em formação. Punho cerrado ao lado da cabeça numa estranha continência, repetem com suas vozes infantis: — Viva o marxismo, leninismo, maoísmo, principalmente maoísmo, para a revolução proletária e socialista mundial.
São meninos de 10 a 12 anos, mas muitos parecem não ter mais de 8. Em outra cena, manejam fuzis com a mesma naturalidade com que jogam futebol.
As cenas são do programa “Punto Final”, que vai ao ar hoje, na emissora Frecuencia Latina, mas as imagens antecipadas durante a semana sacudiram os peruanos.
Elas mostram crianças recrutadas por grupos armados, resquícios do movimento Sendero Luminoso, hoje associados ao tráfico de drogas: — Os meninos de 11 a 13 anos são encarregados de matar os militares agonizantes e recolher as armas — conta de Lima, por telefone, o antropólogo Jaime Antezana, especialista em Sendero e narcotráfico. — São crianças crescidas no sangue.
Abimael Guzmán chama grupo de mercenário
As primeiras informações sobre a existência das novas criançassoldados peruanas surgiram em abril. Num ataque que deixou 15 soldados mortos, sobreviventes contaram ter visto meninos entre os guerrilheiros.
Mas agora, em vez de relatos, os peruanos estão vendo na TV e na internet uma prática da época do Sendero que parecia já ter acabado: o sequestro e doutrinamento de crianças.
As cenas do programa foram gravadas na zona do Valle del Río Apurímac-Ene, conhecida como Vrae, 350 quilômetros a sudeste de Lima. Uma terra ocupada por migrantes nos anos 50, que levaram o hábito de mascar a folha de coca, dando início ao cultivo. Depois, vieram os cartéis mexicanos e colombianos.
Hoje, 60% da cocaína produzida no Peru vêm dessa região, onde o Sendero teve forte presença.
— Ali não existe o Estado — conta Eduardo Tocht, pesquisador do Centro de Estudo e Promoção do Desenvolvimento.
Dando cobertura às rotas do tráfico, os grupos que sobraram após a desarticulação do Sendero, nos anos 90, conseguiram sobreviver e crescer. Hoje, há quem diga que eles não apenas controlam as rotas da droga, como têm seu próprio cultivo. Nessa cadeia, crianças transformamse em soldados, outras ajudam as famílias a cultivar a coca e há as que fazem o transporte da droga, a pé, com mochilas.
— O Sendero como conhecíamos não existe mais — conta Tocht. — Há grupos que se autodenominam Sendero e que pertenceram a ele, mas que hoje estão ligados ao narcotráfico.
Foi apenas em 2006 que um desses grupos lançou um manifesto e adotou um novo nome: Partido Comunista do Peru Marxista Leninista Maoísta. Liderado por Víctor Quispe Palomino, o Camarada José, eles apresentam um discurso anti-imperialista, em busca de legitimidade. As declarações causaram tanta polêmica que Abimael Guzmán, o líder do Sendero capturado em 1992, disse que “os terroristas do Vrae são mercenários”.
Um modelo ao estilo da guerrilha colombiana
O recrutamento de crianças levou a Coordenação Nacional de Direitos Humanos, que reúne 67 entidades, a comunicar a situação à ONU.
— Isso é inaceitável. Também o Exército recrutou menores de idade, e os militares nos disseram que fizeram mil jovens com menos de 18 anos darem baixa — explica Ronald Gamarra, secretárioexecutivo do grupo.
As crianças no grupo foram sequestradas em povoados pobres ou são filhas da antiga “massa cativa” do Sendero — cerca de 250 pessoas que estavam sob poder do grupo na época de sua derrocada.
— O que acontece agora é uma reprodução de antigas práticas pelo que chamo de narcosenderismo — diz Antezana. — Recrutam crianças e passam frases ideológicas que elas repetem sem saber o significado.
Para Antezana, o grande choque veio do fato de ver que a organização cresceu, tem logística militar sofisticada e faz um trabalho ideológico, mesmo que seu núcleo seja o tráfico. Hoje, o grupo tem uma postura mais ao estilo das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, diz.
— Eles representam um perigo maior do que o Sendero representou — afirma.
Arábia Saudita: entre a tradição e as tentações do século XXI
O Globo
31/05/2009
Deborah Berlinck - Enviada especial a RIAD
Um grupo de mulheres desceu de um carro preto, escoltado por um homem. O único indício de que eram do sexo feminino era a abaya, a túnica das mulheres sauditas.
Nem traço de pele, do olho, dos pés ou da silhueta. Usavam luvas, sob um calor de quase 40 graus, e tinham o rosto coberto por um véu sem orifícios. Tudo preto.
Iam rezar numa mesquita? Não, entraram em disparada num moderníssimo shopping de Riad, capital da Arábia Saudita, direto para a butique Guess, marca americana de roupa jovem e sexy.
— Aqui é 8 ou 80. Tem gente que quer ser 8, superliberada, ou 80, super-religiosa — comentou a carioca Iara Silva, 48 anos, ao cruzar com os vultos negros.
Iara anda coberta dos pés à cabeça por opção: se converteu ao Islã. Da infância no colégio de freiras Pio XII, em Guadalupe, essa filha de militar católico foi parar na Arábia Saudita após se casar com um nova-iorquino convertido ao Islã.
O que Iara chama de mulher “liberada” equivale a uma freira no Brasil. A maioria das mulheres sauditas, além do véu, usa uma espécie de máscara que só deixa os olhos de fora. A liberada mostra o rosto, e as “superliberadas” maquiam exageradamente os olhos, usam a túnica ligeiramente apertada e, quando podem, mostram um pedaço do cabelo.
Sutileza que só saudita percebe.
Bem-vindo à Arábia Saudita. Neste país, dono de 25% das reservas confirmadas de petróleo do mundo, uma família — Saud — instaurou um regime monárquico absolutista, e já exercia o poder antes mesmo da criação do reino, em 1932.
Não há partidos políticos nem Constituição.
Quem questiona o regime ou a religião é preso.
Para acalmar os insatisfeitos, a família real, com seus inúmeros príncipes (calcula-se em 200 os descendentes diretos do rei e em 7 mil os membros da família), distribui privilégios. A família controla o petróleo, o que a torna fonte de emprego.
E tem apoio dos EUA.
— O poder quase absoluto da família corre o risco de durar enquanto durarem as reservas de petróleo — avalia Pascal Ménoret, pesquisador da Universidade de Princeton, nos EUA, e autor de “O enigma saudita”.
A Arábia Saudita pratica uma interpretação fundamentalista do Islã sunita, conhecida como wahhabismo. O país funciona segundo a sharia (lei islâmica). A religião dita cada aspecto da vida: a forma como as mulheres se vestem, como os homens se portam, o que comem.
O dia-a-dia dos sauditas gira em torno da família. Alguns, como Abdullah al-Mousa, comerciante, olham para o Ocidente como um antro de perdição: — Estive na França, na Holanda, na Suíça.
É horrível! A vida em família está sendo destruída. As pessoas estão vivendo separadas, sozinhas.
Mas os religiosos estão submetidos à família real, diz Ménoret. E, na falta de códigos, o sistema judiciário virou loteria: — Quando você entra num tribunal ou numa delegacia, tudo é possível — diz.
Por lei, mulheres são tratadas como crianças
Mulher não tem vez. De todas as violações de direitos humanos na Arábia Saudita, que incluem decapitação em praça pública, a segregação de mulheres é a parte mais visível. Maha alQahtani, 36 anos, estudou e morou 12 anos com o marido saudita nos EUA. De volta a Riad, em 2002, com diploma universitário, criou um pequeno negócio com uma amiga americana. Mas não pode assinar um papel sem o marido.
— Não é só a questão da mulher. Aqui, não temos direitos básicos como seres humanos.
Mulheres, na Arábia Saudita, são consideradas, por lei, menores de idade. São tratadas como crianças: não podem andar sozinhas, falar com homem que não seja da família, exibir o corpo, abrir conta em banco ou ter passaporte. Para tudo, precisam da permissão de um homem (pai, irmão, marido e até do filho).
Em novembro de 2007, uma jovem de 19 anos, estuprada por sete homens, foi condenada a 200 chicotadas e seis meses de prisão por estar num carro com um amigo. Isso gerou protestos até do governo americano. O rei perdoou. Não existem estatísticas de estupro. Mas a palavra corre na boca das meninas, sobretudo as jovens. Para Al Jahara Khaled, de 18 anos, a abaya acaba sendo proteção.
— É proteção. Mas é também a nossa essência.
Às vezes desejo não usá-la. Mas aí penso: é ótimo, assim as pessoas não veem como estou vestida — disse, apontando para o sapato verde, que não combina com a camiseta rosa.
A cirurgiã plástica Claudia Alves Silva Machado — a primeira brasileira com contrato para trabalhar numa clínica saudita — consegue ver romantismo onde ativistas do mundo inteiro veem discriminação e humilhação das mulheres.
— Mudei meus conceitos desde que cheguei aqui. Mulher é superprotegida. Vejo os cuidados que eles têm com mulher, na preservação dos costumes. Tem muita mulher que trabalha e tudo o que ela ganha é dela — conta.
Na verdade, a Arábia Saudita tem uma das mais baixas taxas de mulheres trabalhadoras do mundo, segundo a Human Rights Watch: 4%.
Vista do alto, Riad é uma cidade cheia de pontos pretos: as mulheres nas suas túnicas. Não dá para ficar muito na rua: a túnica vira uma estufa insuportável. As ruas são o espelho da contradição de um país que oscila entre as tentações do século XXI e costumes medievais.
Numa praça no centro de Riad, cabeças literalmente rolam. É o lugar de execuções. O ritual da decapitação acontece às sexta-feiras de manhã, como na época de Maomé: com um facão de forma arredondada. Amir, filho de Iara, já assistiu a quatro. O que sentiu? — É como se fosse um filme na TV — diz.
Há sinais de mudanças no país desde que o rei Abdullah assumiu o comando, em 2005, depois da morte do rei Fahd. No mesmo ano, ele autorizou as primeiras eleições municipais.
Uma reforma no Ministério tirou conservadores de posições-chave no governo e nomeou uma mulher como vice-ministra para educação de mulheres.
Uma reforma que passa longe do que o economista Mohamad al-Qahtani e sua mulher, Maha, sonham para o país. O casal assinou no dia 13 de maio, com um grupo de 75 sauditas, uma petição ao rei pedindo o equivalente a uma revolução: direito de escolher um Parlamento, fim de tribunais secretos, liberdade de expressão, pluralismo político e cultural, fim da discriminação contra mulheres. Enfim, democracia.
Mas o rei acaba de anular as eleições locais parciais programadas para este ano. Para Qahtani, é justamente a ausência de liberdade que faz proliferar grupos terroristas no país.
— Dê às pessoas a liberdade de expressão, deixe que sejam parte da sociedade. Democracia é uma experiência. As pessoas podem errar na primeira escolha, mas, na segunda, acertam.
Novos rebeldes desafiam poder na China
Folha de S. Paulo
31/05/2009
Raul Juste Lores
Jovens, que não aprenderam na escola o que houve há 20 anos na praça da Paz Celestial, reavivam contestação ao governo
Ícones do movimento, ainda modesto, são garçonete que matou político que tentava estuprá-la e rapaz que se vingou de torturadores
O site Youtube está bloqueado na China, e imagens do estudante que tentou impedir sozinho a chegada de tanques à praça da Paz Celestial são desconhecidas pela maioria no país.
O massacre que reprimiu os protestos por democracia, em Pequim, deixando 241 mortos, segundo cifras oficiais, ou até 7.000, de acordo com algumas estimativas independentes, faz 20 anos nessa quinta-feira e se tornou o maior tabu nacional.
A China é outra: a renda per capita cresceu dez vezes e a luta por democracia desapareceu dos grandes debates nacionais.
Mas, às vésperas do aniversário da tragédia, multiplicam-se os casos de rebeldia de jovens contra os abusos do poder.
Uma geração que nunca aprendeu na escola o que aconteceu naquela praça começa a organizar "passeatas virtuais" na internet, apesar da censura. É ação de uma minoria, que destoa da despolitização da juventude chinesa após 1989.
Heroína instantânea
A garçonete Deng Yujiao, 21, virou heroína instantânea para milhares de jovens depois de matar, há duas semanas, um figurão do Partido Comunista que tentava estuprá-la em um karaokê na Província de Hubei, centro-leste da China.
A moça foi presa na hora -a polícia disse que havia remédios antidepressivos em sua bolsa, que o crime havia sido premeditado, e autoridades cassaram a licença dos advogados que queriam defendê-la.
A novidade é a reação à atitude da polícia e da Justiça chinesas. Estudantes da Universidade das Mulheres, de Pequim, fizeram uma performance em homenagem a Deng.
O vídeo da performance na internet recebeu 100 mil comentários a favor de Deng até anteontem. A pressão tomou proporção tal que, na véspera, Deng já havia sido solta.
No início do mês, um rapaz de 25 anos foi morto enquanto cruzava uma faixa de pedestres, atropelado por estudantes que disputavam um racha.
Os criminosos são filhos de ricas famílias de Hangzhou, com bons contatos no Partido Comunista. A polícia disse que os carros iam a "apenas 70km/ h", e o Departamento de Propaganda local determinou que a mídia ignorasse o assunto.
Grandes vigílias exigindo justiça foram organizadas e centenas de blogs se encarregaram de espalhar o encobrimento.
Em 2008, Yang Jia, 28, matou seis policiais com um punhal -ele alegou que havia sido preso e torturado por não ter a licença de sua bicicleta. Antes, tentou entrar com um processo contra os policiais, arquivado imediatamente.
Yang condenado à morte -o escritório dos advogados que tentaram defendê-lo foi fechado pela Justiça, e a mãe de Yang, testemunha da tortura, ficou detida por seis meses. Só foi libertada depois que seu filho foi executado. Manifestações no tribunal e milhares de comentários em blogs defenderam a ação violenta de Yang contra o abuso policial.
Mais cínicos
"É perigoso que uma sociedade inteira seja obcecada por política, mas é patético quando toda a sociedade é alienada", disse à Folha o advogado Pu Zhiqiang, 44.
Pu foi um dos líderes da greve de fome que os estudantes organizaram em maio de 1989 na praça da Paz Celestial, que angariou apoio ao movimento pró-democracia e ajudou a desencadear a reação do governo que acabaria no massacre. "Ficamos cínicos, mas a demanda por mais justiça é animadora."
A elite universitária deixou de ser foco de agitação pró-democracia 20 anos depois.
O diretor do Centro de Estudos Chineses e Globais da Universidade de Pequim, Pan Wei, diz que a democracia com eleições e múltiplos partidos "só traria caos e agitação à China".
"Não temos grandes tensões entre ricos e pobres, patrões e proletários, zona urbana e rural. Mas uma campanha eleitoral precisa de agitação, levanta tensões adormecidas. Nosso sistema é melhor", afirma.
Mesmo com a ação dos novos rebeldes, algumas coisas não mudam. Na última semana, 12 advogados reconhecidos por defender os direitos humanos tiveram suas licenças cassadas.
Oferta dos EUA à ilha esbarra em lei e pressão domésticas
31/05/2009
Sérgio Dávila
Governo Obama defende que OEA "inicie diálogo com Cuba", uma solução intermediária
Norma americana demanda declaração da Casa Branca de que regime cubano é democrático para chancelar sua reintegração ao órgão
Hillary Clinton, que estará sob pressão na reunião da OEA
Apesar da pressão da maior parte dos países latino-americanos para que os EUA apoiem a revogação da decisão de 1962 que suspendeu a participação de Cuba na OEA (Organização dos Estados Americanos), o governo de Barack Obama deve continuar a insistir numa solução intermediária. Quer que a entidade "inicie o diálogo" com o regime de Havana e reporte o resultado em até um ano ao Conselho Permanente.
A avaliação do Departamento de Estado obamista é a de que o país perderia mais pontos domesticamente do que ganharia entre os líderes da região com a decisão. Também estaria dando importância demasiada a uma entidade de peso limitado, dependente das contribuições americanas para sua sobrevivência -cerca de 60% do dinheiro do Orçamento anual da OEA vêm dos EUA.
Além disso, há um impedimento de ordem legal que não deve cair antes da reunião de terça e que pode ser mencionado a qualquer momento para reforçar a posição dos EUA.
Mesmo na pouco provável hipótese de a secretária de Estado, Hillary Clinton, apoiar o fim da suspensão sem condicionantes, um artigo do chamado Libertad Act, de 1996, exige que o presidente americano declare que o governo cubano foi democraticamente eleito antes de fazê-lo.
Apesar da distensão em relação a Cuba promovida por Barack Obama desde que o democrata assumiu a Casa Branca, beira a ficção um cenário em que o presidente declare que a gestão de Raúl Castro tem representação democrática, num regime de partido único e que reprime dissidentes.
"O mais interessante dessa reunião é que nem os EUA nem Cuba parecem estar prontos para ela", disse à Folha Peter Hakim, presidente do Diálogo Inter-Americano, centro de estudos sobre as relações entre EUA e a América Latina. "Cuba diz não querer voltar à entidade, e os EUA querem que a coisa aconteça mais lentamente do que o resto dos países."
Já para Julia Sweig, estudiosa de Cuba do Council on Foreign Relations, de Nova York, a região "virou a mesa" em relação aos EUA. Antes, o país usava o tratamento dado pelos outros a Cuba para medir quem era ou não seu aliado local. Agora, os interlocutores esperam a mudança de comportamento dos EUA em relação a Cuba para saber se Obama fala sério ao discursar que quer recriar as relações com a região em pé de igualdade.
Internamente, os suspeitos de sempre -políticos ligados à influente comunidade cubano-americana- de ambos os partidos dos EUA pedem cautela na mudança de status de Cuba.
A deputada federal republicana Ileana Ros-Lehtinen, da Flórida, manifestou oposição até à solução de meio-termo proposta pelos americanos.
Já o senador democrata Robert Menendez, de Nova Jersey, ameaça lutar pelo bloqueio da contribuição financeira do país à OEA caso a suspensão seja revogada. "Se aceitarmos Cuba de volta, que mensagem estaremos mandando aos outros países? De que é ok. retroceder nas questões de direitos humanos e democracia?"
Ambos desprezam os argumentos quanto ao anacronismo da medida, tomada na esteira da aliança de Havana com a então União Soviética (que não existe mais) e da incoerência da exigência de respeito à democracia por um país que têm importantes relações com os regimes não democráticos da China e da Arábia Saudita.
Sobre esse aspecto, um veterano diplomata americano que prefere não ser identificado diz que "a meta de ser coerente em todas as relações internacionais é louvável, mas é apenas isso: uma meta".
Brasil pode ter papel de mediador em cúpula
O Estado de S. Paulo
31/05/2009
À frente do bloco dos moderados, País ajudaria na busca por consenso na OEA
Gustavo Chacra
O Brasil pode ser fundamental na hora da tomada de decisão sobre o retorno ou não de Cuba à Organização dos Estados Americanos (OEA) na reunião que ocorre esta semana em Honduras. Considerado uma potência regional, o governo brasileiro está à frente de um grupo de países, que inclui Chile e Uruguai, e se caracteriza pela moderação - não são nem inimigos declarados dos EUA, como a Venezuela e a Bolívia, nem seus aliados próximos, como a Colômbia.
"O problema do Brasil e do Chile é que eles confundem as coisas", disse Jorge Castañeda, ex-chanceler mexicano e professor da Universidade de Nova York. "Eles têm razão em criticar o embargo imposto pelos EUA a Cuba, mas esquecem que os cubanos também precisam cumprir as regras da OEA." Para Castañeda, os brasileiros precisam perceber que a inclusão dos cubanos apenas enfraquecerá o caráter democrático da OEA.
"A posição do Brasil e do Chile é mais moderada e eles, de fato, podem ser importantes na hora da decisão", disse Michael Shifter, professor da Universidade Georgetown e diretor do Diálogo Interamericano, grupo de estudos com sede em Washington.
Os dois professores concordam que a inclusão de Cuba, hoje governada por Raúl Castro, abriria as portas para que outros países latino-americanos desrespeitassem a democracia e os direitos humanos. "O Brasil deve lembrar que a cláusula democrática busca defender a região de ditaduras tanto de esquerda como de direita, como foi no caso de Alberto Fujimori, no Peru", afirmou Castañeda.
Em abril, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Celso Amorim, disse que o fato de Cuba estar ausente do sistema interamericano é uma anomalia que precisa ser corrigida. Foi um sinal de que o governo brasileiro pode se posicionar ao lado da Bolívia e da Venezuela.
Mas, segundo os analistas, o Brasil também pode amenizar a sua posição na hora do debate em Honduras. Falta também saber qual será a posição de países como México, Peru e Colômbia. As decisões na OEA são aprovadas por dois terços de seus membros, mas costumam sempre haver consenso.
Com as pressões internas nos EUA e a posição contrária ao retorno de Cuba à organização, já expresso pelo presidente Barack Obama, a questão é ver se o Brasil, com a ajuda do Chile, agirá como mediador para encontrar uma solução que agrade a todos. "Está tudo muito incerto", disse Shifter, ressaltando o fato de que até o governo Obama já alterou muitas de suas políticas para Cuba.
sábado, 30 de maio de 2009
O Brasil e a questão do armamento
Organizações humanitárias lançam campanha para pressionar não signatários a mudar de posição
Folha de São Paulo de 30 de maio de 2009
A recusa do Brasil em aderir ao tratado que proíbe o uso e a produção de bombas de dispersão voltou a ser alvo de duras críticas. Ontem em Genebra, organizações humanitárias lançaram uma campanha para pressionar o Brasil e outros países a mudar de posição.
Segundo relatório apresentado pelos ativistas, mais da metade dos 34 países que fabricavam esse tipo de armamento abandonou a produção. O Brasil está entre os que continuam a produzir "em certa medida" o artefato, capaz de espalhar milhares de bombas menores, que acabam funcionando como minas terrestres. Noventa e seis países já assinaram o tratado desde que ele foi apresentado, em dezembro de 2008.
Na opinião de Steve Goose, diretor-executivo da divisão de armas da HRW, o interesse econômico é só um dos motivos para a relutância do Brasil em aderir. "O Brasil já alegou motivos econômicos, pois tem uma indústria vibrante, mas o mercado de exportação secou. A maior parte do mundo assinou o acordo", disse. "Por isso, acho que há razões políticas, como a de ficar em pé de igualdade com potências militares, como EUA, China e Índia."
O argumento do Itamaraty para ficar fora do tratado é que o âmbito mais adequado para a discussão sobre as bombas é o da Convenção sobre Certas Armas Convencionais, da ONU.
O Brasil afirma ainda que o acordo é discriminatório, pois deixa uma brecha para um tipo de munição de dispersão que só países desenvolvidos têm capacidade de produzir. Outro argumento é militar: as Forças Armadas brasileiras consideram que as bombas são um importante fator de dissuasão.
Para Cristian Wittmann, da Campanha Brasileira Contra as Minas Terrestres e Munições Cluster (termo em inglês do artefato), nenhum dos argumentos é convincente, já que a produção é mínima, o uso militar é limitado, e a condenação mundial é crescente.
O cambojano Tun Channareth, que perdeu as pernas em explosões de minas na fronteira de seu país com a Tailândia, é um dos "embaixadores" da campanha contra as armas de dispersão. "Há duas guerras: uma é barulhenta e coletiva. A outra é silenciosa e individual, e ocorre depois que os combates terminam, mas as minas e os "clusters" permanecem", disse
quinta-feira, 28 de maio de 2009
O Brasil e os Direitos Humanos no Sri Lanka
Folha de São Paulo
Brasil vota na ONU contra investigação no Sri Lanka
Em uma sessão de emergência que expôs profundas divisões entre seus membros, o Conselho de Direitos Humanos da ONU aprovou ontem uma resolução sobre o conflito no Sri Lanka que não faz menção explícita aos abusos cometidos e ignora apelos por uma investigação independente.
Sem consenso que pudesse unir as duas propostas em discussão, o texto teve que ir a votação, rachando o conselho. A resolução final foi aprovada com o apoio de 29 países, incluindo o Brasil, contra 12 rejeições e seis abstenções.
A principal crítica de organizações humanitárias é que a resolução não inclui um reconhecimento explícito das graves violações cometidas durante o conflito e da responsabilidade do governo cingalês em levar os culpados à Justiça. Além disso, alegam que a ausência de um mecanismo de acompanhamento enfraquece a eficácia do texto.
Entre 80 mil e 100 mil pessoas foram mortas durante as três décadas de guerra civil no Sri Lanka, que terminou há pouco mais de uma semana, com a morte do líder dos separatistas Tigres Tâmeis. Questionado pela Folha por que seu país não aceita uma investigação independente, o embaixador do Sri Lanka na ONU, Dayan Jayatilleka, citou a história e seus vencedores.
Reconciliação
"Acabamos de sair de três décadas de guerra. O momento é de reconciliação", disse. "Por que ninguém propôs uma investigação das forças aliadas após a Segunda Guerra?"
Na abertura da sessão, a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay, defendeu o acesso de "monitores independentes de direitos humanos" para verificar os abusos no país. "Há fortes razões para crer que ambos os lados ignoraram de forma grosseira o princípio fundamental de respeito dos civis", disse Pillay.
Em sua intervenção, o Brasil também lembrou que ações do Exército do Sri Lanka "levantaram preocupações sobre sérias violações de direitos humanos". Ainda assim, decidiu apoiar a proposta do governo cingalês, marcando uma divisão no grupo latino-americano. México e Chile votaram contra, e Argentina se absteve.
Segundo a embaixadora do Brasil na ONU em Genebra, Maria Nazareth Farani Azevêdo, o momento não é de criticar, mas de dar uma chance para que o governo do Sri Lanka promova a reconciliação e as investigações necessárias.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Chico de Oliveira e o Estado brasileiro e os rumos do constitucionalismo latino-americano
Entrevista: Cientista político eleitor de Lula diz que a disputa de 2010 será esvaziada de política e regionalista"Consenso despolitiza sociedade e coloca Lula à direita de FHC"
Chico de Oliveira: "Lula tenta se legitimar por consensos que passam pela cooptação dos pobres. Bolsa Família não é direito, é dádiva"
Intelectual historicamente identificado com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tendo sido filiado ao PT até 2003, o professor aposentado de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) Francisco de Oliveira tornou-se ao longo do atual governo um dos mais cáusticos críticos à esquerda do lulismo. Para este ano, o acadêmico pernambucano de 75 anos, conhecido como Chico de Oliveira, prepara um livro que irá retratar a construção de uma hegemonia às avessas. Ou seja: como um líder popular carismático trabalharia no sentido contrário aos interesses da base que o elegeu.
No ano em que rompeu com o PT, Oliveira desferiu no front literário um dos mais contundentes ataques sofridos por Lula, ao escrever "o Ornitorrinco", um posfácio ao seu livro "Crítica da Razão Dualista", editado pela primeira vez em 1972.
Neste posfácio, Oliveira procurou fazer uma aproximação entre a elite dirigente do PT e a da oposição tucana, que teriam como grande traço de união o controle do acesso a fundos públicos.
Em setembro de 2004, Oliveira participou da criação do P-SOL, formado por dissidentes do PT que discordavam da moderação econômica do governo Lula, particularmente da reforma da previdência. Meses depois, o partido receberia outra maré de adesões de desiludidos com o petismo depois da eclosão do escândalo do mensalão.
Com a eleição de 2006, ocorre um novo afastamento. Oliveira discordou da condução da candidatura presidencial da então senadora Heloísa Helena (AL), sobretudo da decisão da sigla de permanecer neutra no segundo turno da eleição presidencial, e declarou voto pela reeleição de Lula. Chegou a definir a campanha da candidata do P-SOL, calcada nas denúncias contra o governo federal no plano ético, como um "udenismo de esquerda".
No início da crise econômica global, em janeiro deste ano, Oliveira propôs que o governo federal radicalizasse suas políticas de desenvolvimento, sugerindo que se criassem "cinco Embraer por ano", uma maneira de defender a maior participação do Estado na economia. Mas a ausência de mudanças na estratégia governamental ao longo deste ano fez com que o sociólogo voltasse à posição crítica dos últimos tempos.
Nesta entrevista, concedida por telefone ao Valor, Chico de Oliveira demonstra ceticismo em relação a mudanças no quadro político com as eleições presidenciais do próximo ano. Eis a entrevista:
Valor: Qual a avaliação que o senhor faz do governo Lula, já em seu penúltimo ano? O senhor rompeu publicamente com o PT em 2003, mas depois declarou voto pela reeleição de Lula em 2006...
Francisco de Oliveira : A minha declaração de voto em 2006 foi uma atitude política. Lula estava sob ataque de forças opositoras naquele momento e havia a esperança, uma palavra que nem gosto de usar, de que um segundo mandato fosse promotor de mudanças, mas hoje podemos ver que não houve nenhuma mudança e essa chance passou. O governo de Lula, concretamente, não demonstrou nenhum avanço social no plano dos direitos. Do ponto de vista da condução econômica é uma administração medíocre, que pensou que se salvaria da crise global e percebe-se que não tem nenhum domínio da situação. Economicamente o governo Lula é um barco à deriva, que se as ondas forem boas chega a um bom porto, e caso contrário, não.
Valor: Que comparação pode-se fazer com o governo FHC?
Oliveira: Lula está à direita de Fernando Henrique [Cardoso] ao não recompor as estruturas do Estado e não avançar na ampliação de direitos. O presidente tenta se legitimar promovendo consensos que passam pela cooptação dos mais pobres. O Bolsa Família não é um direito, mas uma dádiva. Neste sentido, vivemos na gestão dele uma regressão política, porque no governo Lula houve uma diminuição do grau de participação popular na esfera pública. E quando se projeta o cenário de 2010 percebe-se como Lula resulta regressivo. Com a força perdida pelo PT e a ausência de alternativas de Lula, uma vez que a doença de sua candidata mostra sinais de gravidade, aparece o terceiro mandato.
Valor: O senhor acha que o governo está criando um caldo de cultura para o terceiro mandato?
Oliveira: Sim, porque Lula aparece, para os olhos de determinados segmentos do meio político e popular, como o homem providencial. E neste sentido a possibilidade de um terceiro mandato é perigosa. Getúlio [Vargas] ensaiou isso com o queremismo, em 1945. Agora, pode muito bem surgir um queremismo lulista: o povo ir às ruas para pedir a continuidade do governo.
Valor: E o senhor acha que o povo irá às ruas?
Oliveira: Não digo o povo, uma categoria imprecisa, mas o PT e a CUT ainda têm capacidade para promover barulho, e barulho é o que é decisivo em uma questão como essa.
Valor: Porque no campo da esquerda nem o P-SOL, nem outras siglas conseguiram se firmar como alternativas a Lula?
Oliveira: Nada surgiu porque, ao tornar-se um mito popular, Lula tornou-se infuso à política. Ele produz um consenso de forças sociais, que estão todas muito contentes com o governo, e assim torna impossível ao eleitorado fazer escolhas reais. Isto explica porque Heloísa Helena, apesar do apelo popular que teve e tem, não se tornar uma alternativa. Vivemos um consenso conservador, no sentido de não se transformar nada, mesmo com a presença das massas populares neste consenso.
Valor: Ao romper com o PT, o senhor disse que o partido poderia ter o mesmo destino do peronismo, tornando-se uma força política que não consegue ter referências ideológicas e prende-se ao espólio de uma liderança...
Oliveira: Se fiz esta aproximação, foi um equívoco meu. A mídia brasileira por vezes passa uma ideia equivocada do que foi [Juan Domingo] Perón na Argentina. O Perón não despolitizou o país. Sob o vezo do autoritarismo, em seu período se produziu uma ampliação de direitos tal que a tradicional oligarquia argentina jamais se recuperou. No caso de Lula, está ocorrendo exatamente o contrário, a diminuição do espaço da política na sociedade.
Valor: O governo Lula não investiu na inclusão de minorias nos espaços de poder, por meio de políticas de ação afirmativas para negros e mulheres?
Oliveira: Ele tomou os vestígios de um discurso sociológico fajuto para negar o conflito de classes. Veja, com a análise da questão das classes se mata as charadas no Brasil. Quando a gente pensa a sociedade por meio destas clivagens de gênero e raça, não se mata charada nenhuma. O problema do Brasil é de uma grande maioria, virtual totalidade mulata, e não pode ser resolvido por políticas afirmativas étnicas, diferentemente do que ocorre na Bolívia e na Venezuela, onde a chave étnica é decisiva. Para resolver os problemas de exclusão social no Brasil, é preciso enfrentar problemas de classe. A política de cotas só faz reafirmar a exclusão. Qual as chances concretas que um negro com grau universitário obtido graças às cotas ampliação de direitos combatem a discriminação.
Valor: O senhor analisa o governo Lula como o autor de uma guinada conservadora, mas, com instrumentos como a Carta ao Povo Brasileiro, Lula já não se elegeu sob este signo?
Oliveira: Pelo contrário, Lula foi eleito em um processo de força popular crescente de um movimento político, que acumulou energia de eleição em eleição desde os anos 80. Não foi um episódio que se resume à crônica de 2002, foi um processo longo. Lula foi eleito com uma base progressista. Não houve nenhuma chancela do eleitorado para o que ele faria a seguir.
Valor: Além de sua gestão econômica até certo ponto surpreendente, o primeiro mandato de Lula foi marcado pelos escândalos na área ética, dos quais o do mensalão foi o mais emblemático. Por que a ressonância popular destes problemas foi zero?
Oliveira: Há uma tendência popular de nivelar a todos. Historicamente, a questão ética só estigmatiza políticos de estatura menor, como os exemplos recentes de [Paulo] Maluf e [Orestes] Quércia. Gostaria que tivesse sido diferente, mas este fator jamais foi decisivo em eleições brasileiras e não será na próxima.
Valor: Qual o balanço que o senhor faz da oposição brasileira nestes últimos sete anos?
Oliveira: Que crítica a oposição pode fazer ao governo Lula? Objetivamente nenhuma. Os governadores José Serra e Aécio Neves estão do mesmo lado. Em termos concretos, já há tempos a oposição deixou de existir. Isto porque a política no Brasil perdeu a capacidade decisória.
Valor: Que diferenças o senhor identifica entre Serra e Aécio?
Oliveira: Rejeito ambos por motivos diferentes. Aécio parece mais um político superficial que se faz sob a herança política familiar. Nunca vi uma opinião dele que impressionasse. Serra é uma surpresa. Faz um governo gerencial e até reacionário, ao lidar com o funcionalismo e com a universidade pública. É um político que gradualmente se converteu, quando vemos o passado dele e o local onde atua agora. É o grande líder conservador.
Valor: Sob que signo será disputada a eleição presidencial do próximo ano?
Oliveira: A eleição de 2010 será despolitizada e regionalista. Vejo agora a articulação entre São Paulo e Minas. Antes era o café com leite, hoje talvez seja o café com leite de um lado, a cana e a indústria do outro... a eleição caminha para ser uma disputa entre a confluência de São Paulo com Minas em contraposição à confluência do Nordeste e do Norte. É uma disputa que se dá em termos regionais, sem nenhum ponto político, nenhuma discussão de concepção propriamente política. Ao criar um consenso, Lula foi fortemente despolitizador. É uma dinâmica diferente do tempo de Fernando Henrique. Fernando Henrique buscou subjugar as forças contrárias, Lula as desmobiliza.
Valor: E que papel jogam atualmente os movimentos sociais?
Oliveira: Os movimentos sociais estão apagados, porque tratam-se em sua maioria de articulações em torno de objetivos pontuais, o que tornam limitadas as possibilidades de crescimento. O mais importante deles, que é o MST, busca saídas para a sobrevivência.
Valor: Esta desmobilização política não é um fenômeno global?
Oliveira: Ela é um fenômeno mundial. A França elegeu [Nicolas] Sarkozy, um direitista que se disfarça. Nos Estados Unidos, temos [Barack] Obama, que está recuando de suas posições iniciais. Na Alemanha, Ângela Merkel faz uma conciliação que junta sociais democratas e conservadores. E na Rússia, há um florescer do autocratismo. Todo mundo está convergindo para um ponto médio, que é uma espécie de anulação das posições. Mas no Brasil é mais grave, porque aqui a desigualdade é muito maior.
terça-feira, 26 de maio de 2009
As violações dos direitos humanos no Irã
Valor Econômico
26/05/2009
Antes das armas atômicas, as armas da intolerância já são usadas a pleno vapor
Marcos Alan Ferreira
A exclusão de minorias religiosas e das mulheres e o maltrato contra minorias são o pano de fundo da situação política e social do país
Nos últimos anos, a questão nuclear iraniana tornou-se uma constante no debate sobre segurança internacional, numa conjuntura em que prevalece o temor com relação às ações que podem ser tomadas por extremistas islâmicos. Vemos que Estados Unidos e Europa têm agido de maneira concreta nos fóruns internacionais contra o desenvolvimento da tecnologia nuclear do Irã. Por outro lado, a importante questão dos direitos humanos na nação iraniana tem ficado em segundo plano. No entanto, esse poderia ser o ponto de partida na análise da comunidade internacional com relação àquele país.
Ao considerar esta questão, não se pode perder de vista que o Irã é atualmente o segundo país que mais faz uso da pena capital, ficando atrás somente da China. Comparando-se o tamanho das populações dos dois países, tem-se uma ideia da gravidade de tal problema no Irã. Segundo Shirin Ebadi, a advogada iraniana ganhadora do Prêmio Nobel da Paz de 2003, a situação dos direitos das mulheres piorou sensivelmente de 2008 para cá. Um exemplo recente é o caso da execução da jovem Delara Darabi, acusada de ter cometido um crime aos 17 anos de idade.
O caso Delara recebeu atenção de organizações como a Anistia Internacional, haja vista que a defesa da acusada não teve a oportunidade de apresentar durante o julgamento algumas provas que a poderiam inocentar do crime. Além disso, ela foi executada antes de terminar um prazo de anistia de dois meses para revisão do seu processo penal, fazendo com que a jovem entrasse na infeliz estatística de ser a 140ª pessoa a ser executada no Irã somente nos quatro primeiros meses deste ano.
Outra questão preocupante é a intolerância religiosa. Uma das perseguições religiosas mais odiosas que acontecem no mundo hoje se dá contra os membros da Fé Bahá'í dentro do Irã. Esta religião, fundada no século XIX por Mirzá Husayn Alí (1817-1892), conhecido posteriormente pelo título de Bahá'u'lláh, concentra a maior minoria religiosa dentro do Irã, contando hoje com um número estimado de mais de 300 mil adeptos.
Embora seus princípios sejam pacíficos - dentre as quais figuram a defesa da unidade da humanidade e promoção da paz e igualdade entre homens e mulheres - dados de organizações de direitos humanos contabilizam mais de 200 mortes de bahá'ís desde 1980. Nas execuções e prisões arbitrárias contra os membros desta religião não figura nenhuma acusação grave, exceto o fato de seguirem uma religião considerada apóstata pelos aiatolás que controlam o Irã. É relevante notar o fato de os acusados não terem direito a um advogado de defesa ou acesso aos autos do processo. O mesmo ocorreu com outra personagem conhecida dos jornais nas últimas semanas, a jornalista iraniana-americana Roxana Saberi.
Nos 30 anos desde a Revolução Islâmica, além das execuções dos membros da Fé Bahá'í, contabiliza-se demolição de locais sagrados da religião em Teerã e Shiráz, expulsão de jovens das universidades e maltrato de crianças nas escolas, além da perda de direitos trabalhistas.
Dentro desta mesma temática ainda pouco discutida no Brasil, em 1990 as Nações Unidas tiveram acesso a um documento secreto do governo iraniano chamado memorando Golpaygani, que mostra claramente a existência de um plano sistemático de eliminação da Fé Bahá'í do país. A preocupação quanto a este memorando tem recebido apoio não só da Anistia Internacional, como também do Parlamento Europeu e de órgãos governamentais especializados em direitos humanos e liberdade religiosa do Canadá, Austrália, Grã-Bretanha e EUA.
O maltrato contra minorias étnicas completa o pano de fundo da questão dos direitos humanos no Irã atual. Entre os grupos perseguidos estão os azerbaijanos, que assistiram um de seus membros, Mehdi Qahemsadeh, ser executado recentemente por ser considerado "um inimigo de Deus". Os azerbaijanos têm hoje mais um de seus membros no corredor da morte pela mesma vaga acusação.
Outra minoria que vem sofrendo violação dos seus direitos são os curdos. Apesar de representarem aproximadamente 15% da população, é negado aos curdos o direito de registrar suas crianças com sobrenomes da etnia, segundo informa um relatório da Anistia Internacional publicado em 2008. Tais ações, somadas a limitações ao trabalho e culto religioso, tem marginalizado este grupo da sociedade iraniana.
Nunca é demais lembrar também do trágico episódio de 15 de julho de 2005, quando as forças de segurança iranianas abriram fogo contra um grupo de curdos que protestavam em Mahabad, matando 20 pessoas e deixando outras dezenas de feridos. Além do que foi dito acima, situações semelhantes ocorrem eventualmente com as minorias das mais diversas como os balúchis, cristãos, judeus, sufis e homossexuais. Uma explicação sobre cada um destes casos daria margem para escrever inúmeras outras tristes linhas de desrespeito à dignidade humana.
Este contexto contrasta drasticamente com a governança vista em momentos históricos do Irã antigo (Pérsia), em que prevaleceu um império como o de Dario. As paredes da histórica cidade de Persépolis refletem até hoje a justiça pela qual era conhecido este soberano. Triste dizer que o governo hoje é outro, pouco preocupado em reforçar o povo amável, a beleza e a cultura pela qual o Irã deveria ser conhecido internacionalmente.
No mundo e no Brasil, a questão que fica é: devemos ou não relativizar a questão dos direitos humanos quando tratamos com governos que são conhecidos e contumazes violadores da carta da Declaração Universal dos Direitos Humanos? Onde colocamos os limites do que é tolerável? Talvez estes sejam os questionamentos mais importantes para a comunidade internacional quando o assunto é Irã, haja vista que antes das armas atômicas, as armas da intolerância já são usadas a pleno vapor.
Marcos Alan Ferreira é professor e pesquisador no Departamento de Relações Internacionais & Country Studies da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e graduado em Estratégia e Políticas de Defesa pela National Defense University (EUA).
Fome se espalha por país falido e ineficiente
O Estado de S. Paulo
26/05/2009
AFP
Agricultura atrasada empurra norte-coreano para a miséria
Apesar do esforço para desenvolver seu ambicioso programa atômico, o governo norte-coreano não tem recursos para alimentar sua população. O país comunista vive sob a ameaça da fome desde 1995, quando centenas de milhares de pessoas morreram de inanição, com os sobreviventes se alimentado de folhas, cascas de árvores e tudo o que encontravam pela frente.
Inundações, seguidas por secas, e maremotos são em parte os responsáveis por essa situação, mas para os analistas o problema se deve principalmente ao atrasado sistema de agricultura coletiva e a uma rede de distribuição ineficiente.
Em 2002, o governo promoveu reformas limitadas no comando econômico, centralizado, flexibilizando um pouco os preços estabelecidos pelo Estado e dando incentivos para trabalhadores e fábricas.
Mas, em outubro de 2005, receando um afrouxamento do seu controle sobre o o país, o regime proibiu a venda privada de cereais e anunciou o retorno do racionamento centralizado dos alimentos.
O Programa Mundial de Alimentos (PMA) das Nações Unidas, prevê que até 40% da população do - cerca de 8,7 milhões, do total de 24 milhões de habitantes - necessitarão urgentemente de ajuda alimentar nos próximos meses, diante das péssimas colheitas que vêm se sucedendo. Em setembro, o PMA pediu US$ 504 milhões de dólares de ajuda alimentar para a Coreia do Norte, mas até agora recebeu apenas 11% desse valor, suficiente para alimentar 1,8 milhões de pessoas.
Depois de a ONU condenar o país pelo lançamento de um foguete, em 5 de abril - que segundo os EUA e outros países foi um teste balístico disfarçado -, Pyongyang anunciou sua retirada das negociações com os americanos, a Rússia, a China, o Japão e a Coreia do Sul, dizendo que pretendia reativar sua produção de plutônio.
O rígido controle do regime até certo ponto vem fazendo água, com o contrabando de rádios, aparelhos de DVD e DVDs da China. Este mês foi lançado um serviço limitado de Internet para usuários de celulares.
Mas o governo ainda tenta controlar toda a informação e submeter "seus cidadãos a um controle rígido dos vários aspectos das suas vidas", diz um relatório de direitos humanos, emitido em 2007 pelo Departamento de Estado americano. O relatório menciona as contínuas informações sobre execuções extrajudiciais, desaparecimentos e detenções arbitrárias.
Crise desafia sistema de sanções
O Estado de S. Paulo
26/05/2009
Ruth Costas
Medidas de pressão precisam ser aprimoradas para se tornarem eficientes sem punir as populações locais
O teste nuclear da Coreia do Norte lança luz sobre o que hoje é um dos maiores desafios da comunidade internacional quando o tema é prevenção de conflitos: descobrir como impor sanções econômicas que sejam eficientes, mas não se tornem um pesado fardo para as populações locais.
As penalidades impostas à Coreia do Norte a partir de 2006, quando o país fez seu primeiro teste atômico, foram relativamente limitadas. Basicamente, restrições financeiras e proibições à venda de armas, bens de luxo e materiais que poderiam ser usados no seu programa nuclear. O objetivo - da mesma forma que na imposição de sanções ao Irã - era evitar a repetição do caso iraquiano, criticado por órgãos de defesa dos direitos humanos. Mas o fato de Pyongyang não ter cedido à pressão põe em evidência, segundo especialistas, a necessidade de aprimorar a estratégia.
"Começou-se a pensar em ?sanções específicas? após o fracasso das amplas sanções impostas nos anos 90 ao Iraque, que desmontaram a economia do país e causaram grande sofrimento para a população", disse ao Estado Peter Wallensteen, especialista em sanções da Universidade de Uppsala, na Suécia. Entre essas novas "sanções específicas" estão, por exemplo, as restrições às viagens e o confisco de ativos de determinadas autoridades, além da proibição do comércio de alguns produtos, como armas, bens de luxo e diamantes. "Mas as dificuldades desse novo sistema são grandes, até porque é difícil saber quem deve estar na lista dos alvos das retaliações", diz Wallensteen.
São muitos os fatores que influenciam os resultados das sanções econômicas, a começar pelo grau de adesão dos vizinhos e o isolamento do país alvo (particularmente importante no caso norte-coreano). O americano Gary Hufbauer, do Peterson Institute, analisou 174 casos de sanções para escrever o livro Economic Sanctions Reconsidered e explica que os objetivos também contam. "Tiveram sucesso 50% das sanções adotadas para pressionar por alterações modestas nas políticas do país alvo, 30% das que buscavam uma mudança de regime e 20% daquelas cujo objetivo era conter ações militares", afirma.
Hufbauer diz que se o impacto de uma medida de retaliação é limitado, em alguns casos o governo do país atingido pode se sentir menos pressionado a fazer mudanças. "Mas, em geral, a taxa de eficiência das sanções específicas tende a ser parecida com a das amplas. E como os custos para a população são menores, elas parecem ser a melhor opção", opina.
Os embargos são utilizados desde tempos remotos como estratégia militar para enfraquecer grupos inimigos - vide o lendário cerco a Troia. Mas foi só depois da 1ª Guerra que as restrições passaram a ser vistas como uma alternativa à guerra. O maior exemplo de sucesso foram as restrições impostas pela ONU, os EUA, exportadores de petróleo e muitos outros países à África do Sul por 31 anos para pressionar pelo fim do apartheid (derrubado em 94).
MÚLTIPLAS EXPERIÊNCIAS
Com o passar dos anos, porém, multiplicaram-se também experiências como as de Cuba e Iraque, em que os embargos econômicos não só não alcançaram seus objetivos - respectivamente, uma transição democrática e cooperação num programa contra a proliferação de armas de destruição em massa - como ainda impulsionaram a popularidade dos líderes locais.
Saddam Hussein fortaleceu-se tomando controle do parco suprimento de produtos básicos que chegavam ao Iraque e explorando a "ameaça do inimigo externo". E as sanções americanas a Cuba não só deram a Fidel Castro uma desculpa ideal para as ineficiências econômicas de seu sistema socialista como empurraram a ilha para a órbita de influência de inimigos dos EUA - primeiro a Rússia, depois a Venezuela.
"São casos como esses que fazem com que haja muito mais ceticismo hoje em relação ao que pode ser alcançado com essas restrições econômicas", afirma Kimberly Elliott, coautora de Economic Sanctions Reconsidered. "Mas é sempre possível pensar no aprimoramento desse instrumento - até porque a outra opção seria a guerra."
ESTRATÉGIA EM XEQUE
COREIA DO NORTE
Quando: As sanções impostas em 2006 vigoram até hoje
O que é: ONU proíbe venda de armas, materiais para o programa nuclear e artigos de luxo; EUA e Japão também adotam restrições
Econômicas
Resultado: Kim Jong-il chegou a paralisar algumas usinas, mas
teste de ontem revela que mantém ambições nucleares
CUBA
Quando: de 1962 até hoje
O que é: EUA proíbem comércio e operações financeiras com a ilha e limitam viagens para pressionar por abertura econômica e política
Resultado: Empurrou Cuba para a órbita de influência de inimigos dos EUA - primeiro a URSS, depois a Venezuela
IRAQUE
Quando: de 1990 a 2003
O que foi: ONU impôs embargo econômico para pressionar por retirada do Kuwait e, depois, para impedir desenvolvimento de armas de destruição em massa
Resultado: Empobrecimento da população e fortalecimento interno de Saddam
IRÃ
Quando: 2006 até hoje
O que é: Sob pressão americana, ONU proibiu venda de armas e materiais para programa nuclear do país e congelou ativos no exterior de autoridades iranianas para pressionar por fim do programa atômico
Resultado: Aumentou o apoio da população iraniana ao programa nuclear
ÁFRICA DO SUL
Quando: de 1963 a 1994
O que foi: ONU proibiu venda de armas e recomendou sanções diplomáticas para pressionar pelo fim do apartheid e independência da Namíbia
Resultado: Fim do apartheid e independência da Namíbia
ITÁLIA
Quando: de 1935 a 1936
O que foi: Sanções comerciais impostas pela Liga das Nações em retaliação à invasão da Etiópia
Resultado: Mussolini obteve mais apoio interno. Caso foi um dos primeiros a expor as falhas do sistema e precipitou a crise da Liga das Nações.
ONU pede ampliação de programas
O Estado de S. Paulo
26/05/2009
Jamil Chade
Desigualdade, moradia e educação ainda são problemas graves
Os programas adotados no governo de Luiz Inácio Lula da Silva ainda não são suficientes para lidar com problemas de desigualdade, reforma agrária, moradia, educação e trabalho escravo, informou ontem a Organização das Nações Unidas. Comitê da ONU pelos direitos econômicos e sociais pede uma revisão do Bolsa-Família, uma maior eficiência do programa e sua "universalização". Por fim, constata: a cultura da violência e impunidade reina no País.
"O comitê está preocupado pelo fato de, apesar de contribuições significativas para a redução da pobreza, o Programa Bolsa-Família estar sujeito a certas limitações", diz o relatório final. A ONU sugere que o Brasil amplie o Bolsa-Família para camadas da população que não recebem os benefícios, incluindo os indígenas. E cobra a "revisão" dos mecanismos de acompanhamento do programa para garantir acesso de todas as famílias pobres, aumentando ainda a renda distribuída.Há duas semanas, o comitê sabatinou membros do governo em Genebra. O documento com as sugestões é resultado da avaliação dos peritos do comitê que inclui o exame de dados passados pelo governo e por cinco relatórios alternativos apresentados por organizações não-governamentais.
Os peritos reconhecem os avanços no combate à pobreza, mas insistem que injustiça social "prevalece". Um dos pontos considerados como críticos é a diferença de expectativa de vida e de pobreza entre brancos e negros. A sugestão da ONU é que o governo tome medidas "mais focadas". Na visão do órgão, a exclusão é decorrente da alta proporção de pessoas sem qualquer forma de segurança social, muitos por estarem no setor informal da economia.
ESCRAVIDÃO
Para a ONU, há um número elevado de brasileiros trabalhando em condições similares à escravidão, e acusa o uso dessas práticas nas plantações de cana-de-açúcar, em expansão pelo comércio de etanol, e no setor madeireiro. Um dos alertas é que o trabalho escravo está atingindo jovens nas famílias mais pobres. Já no trabalho infantil, os peritos pedem um maior esforço nessa questão, além de processos judiciais contra os autores dos crimes. Outro fenômeno que preocupa é o elevado número de crianças ainda vivendo nas ruas.
O combate a esse e a outros crimes poderia ser mais eficiente não fossem as ameaças contra ativistas de direitos humanos e sindicalistas, sem que ninguém seja responsabilizado pelos atos, a existência de milícias formadas até por agentes públicos de segurança e a falta de treinamento de policiais e investigação de casos de violações por agentes públicos.
A política de moradia do governo também é colocada em questão. "O comitê alerta, com preocupação, que mais de 6 milhões de pessoas no País vivem em condições urbanas precárias, que um número elevado de sem-teto existe e que a migração rumo às grandes cidades piorou a situação", afirmou. A ONU admite o esforço do governo nessa área, mas se diz "preocupada com a falta de medidas adequadas para garantir moradia às famílias de baixa renda".
Uma das promessas do governo Lula, a reforma agrária também é questionada. A ONU criticou o ritmo do processo, considerado como "lento". A demarcação das terras indígenas é igualmente alvo de críticas e a ONU lembra que, já em 2003, alertou que o processo deveria ser concluído com urgência.
Em outro trecho, a ONU alerta que 43% das crianças entre 7 e 14 anos não completam o ciclo primário em uma idade adequada. A ONU alertou para as dificuldades de mulheres, pobres e negros de terem acesso às universidades. "Há uma disparidade significativa no acesso à educação universitária."
No fim do relatório, a ONU alerta que o acesso à cultura ainda é limitado aos "segmentos afluentes" da sociedade, e os recursos para a cultura estão concentrados nas grandes cidades.
A sabatina do órgão ocorre a cada cinco anos com cada um dos governos que fazem parte da ONU. Os peritos querem que o Brasil traga os resultados dessas recomendações em sua próxima sabatina, em 2013.
TEMAS
OS PROBLEMAS APONTADOS PELA ONU NO BRASIL NA ÁREA SOCIAL
Bolsa-Família
Para a ONU, o programa está sujeito a limitações. Sugere que o Brasil amplie o Bolsa-Família
Desigualdade
A ONU afirma que o Brasil precisa "intensificar" seus esforços para reduzir as
"persistentes desigualdades" entre regiões e pessoas
Trabalho escravo
Diz que é "grande número de brasileiros trabalhando em condições desumanas e em situações similares à escravidão, ou sujeitos ao trabalho forçado"
Trabalho infantil
A ONU alerta que o trabalho infantil continua a ser generalizado. Outra preocupação é o elevado número de crianças nas ruas
Violência
O comitê da ONU afirma estar "profundamente preocupado com a cultura da violência e impunidade que prevalece no País"
Direitos Humanos
As Nações Unidas apontam o "fracasso das autoridades brasileiras em garantir a
segurança de defensores de direitos humanos"
Moradia
O comitê alerta "com preocupação" que mais de 6 milhões de pessoas vivem em condições urbanas precárias e que há muitos sem-teto
Índios
A ONU pede a inclusão de índios no Bolsa-Família. E lembra que, já em 2003, alertou que o processo de demarcação deveria ser concluído com urgência
Reforma agrária
Comitê critica o ritmo da reforma agrária, considerada "lenta", e se diz "preocupada" com o processo
Educação
A ONU alerta que 43% das crianças entre 7 e 14 anos não completam o primário em
idade adequada. E pede políticas para facilitar acesso de grupos marginalizados à universidade
Mulheres
O comitê da ONU afirma estar "preocupado" com a representação das mulheres no Brasil como "objetos sexuais".
segunda-feira, 25 de maio de 2009
Especialista em prever cenários anuncia a 'era da globalização multipolar'
O Estado de S. Paulo
25/05/2009
Marianna Aragão
Entrevista - Eamonn Kelly: consultor do Monitor Group; Na nova etapa do capitalismo global, que já começou, todos os países serão capazes de inovar, liderar e definir regras
Como será a vida no futuro? O escocês Eamonn Kelly, de 51 anos, é pago para responder essa pergunta a empresas, governos e pessoas em todo o mundo. Formado em drama, sociologia e economia pela Universidade de Glasgow, Kelly começou trabalhando com comunidades carentes da Escócia, ajudando-as a buscar outras formas de ocupação, após a falência da indústria de carvão local. "As pessoas buscavam os mesmos empregos do passado e eu queria ajudá-las a encontrar alternativas no futuro", conta.
O talento para estudar e prever cenários transformou-o em um dos mais requisitados futurólogos mundiais. Após prestar serviços para a agência de desenvolvimento econômico do governo escocês, Kelly foi chamado para compor a equipe da Global Business Network (GBN), uma das maiores consultorias de projeção e análise de cenários, absorvida em 2000 pelo Monitor Group. "Sou um grande contador de histórias sobre o futuro", brinca ele.
Mas suas histórias são levadas bastante a sério. As análises da GBN já foram solicitadas pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, entre outros governos. As companhias, porém, são suas maiores clientes, principalmente depois da crise financeira. "Pela primeira vez em 20 anos, elas não têm nem sequer uma ideia sobre o futuro. Todos estão muito confusos", diz o consultor. Utilizando cinco variáveis - social, tecnológica, ambiental, econômica e política -, ele tem ajudado os empresários a traçar estratégias de longo prazo em tempos de incerteza global.
Em entrevista ao Estado, o futurólogo escocês afirma que a crise vai acelerar mudanças estruturais que já vinham ocorrendo há alguns anos. Entre elas, o nascimento de uma globalização "multipolar", no lugar da ditada pelos países ricos ocidentais, a revisão das regras de comércio mundial e uma nova forma de consumir bens e serviços. No mundo "pós-globalização ocidental" imaginado por Kelly, as pessoas também vão trabalhar e viver de um jeito diferente. A seguir, os principais trechos da entrevista.
NOVOS AGENTES
"Por 500 anos, Estados Unidos e Europa definiram as regras do comércio, da ciência e tecnologia e dos mercados. A globalização que conhecemos é essencialmente uma exportação do modelo ocidental para o resto do mundo. Isso está acabando. Teremos uma globalização multipolar, onde todos os países serão capazes de inovar, liderar e definir regras. Já vemos sinais disso, com o G-20 substituindo o G-8 e países emergentes sendo chamados para participar do Fundo Monetário Internacional (FMI)."
ESTADOS UNIDOS
"O Ocidente não define mais as regras para todos. É como se, agora, ele fosse um dos dançarinos principais do balé, mas não mais o coreógrafo. Acho que o presidente Barack Obama entende isso. Diferente de todos os outros presidentes americanos, ele viveu fora do país e experimentou a diversidade cultural. Obama entende que os dias em que um único país podia definir as regras para todo o mundo terminaram. E isso é uma mudança significativa nas instituições e estruturas da política americana."
BRASIL
O Brasil tem as características corretas para ter sucesso no mundo que surge. Tem curiosidade e respeito por outros países, uma economia relativamente forte - tanto que já tem lugar na "grande mesa" das decisões, o G-20. Possui uma forte cultura empreendedora, com empresas privadas fortes, que sobreviveram por décadas. Há ainda a vantagem demográfica encontrada em poucos países e lhe dá vantagem sobre os demais Brics.
MULTINACIONAIS DE VERDADE
Há 20 anos, as corporações multinacionais eram empresas com centrais nos EUA ou na Europa, e vários satélites espalhados pelo mundo. Eram multinacionais ocidentais. Nas últimas décadas, as principais companhias estão tentando se tornar multinacionais de verdade. Isso é feito trazendo pessoas de outros países para as diretorias, dando autonomia para as filiais e customizando produtos em diferentes regiões. As melhores companhias já estão trabalhando nesse sentido.
NOVOS PRÓSPEROS
Hoje temos cerca de 2,5 bilhões de pessoas vivendo bem integrados à economia global. São pessoas relativamente prósperas, que vivem acima do nível de pobreza, na forma que se conhece hoje. Acredito que nos próximos 20 anos veremos mais 2 bilhões de pessoas se juntando a esse grupo. A prosperidade não será mais vista como um privilégio de algumas partes do mundo.
SUSTENTABILIDADE
O enorme desafio dos próximos 20 anos será descobrir como vamos incluir esses 2 bilhões de pessoas na prosperidade global sem destruir o meio ambiente. Isso exigirá altos níveis de inovação e também uma mudança fundamental nos padrões de consumo. Se todos passarem a comprar veículos no mesmo ritmo que os cidadãos médios americanos fizeram, precisaremos de oito planetas para produzi-los. E não temos oito planetas. Por isso, a sustentabilidade vai deixar de ser uma preocupação de segundo plano para muitas empresas, como é hoje.
'CONSUMO EXPERIENCIAL'
Vejo um movimento em direção a um consumo mais "experiencial". Um consumo que tenha significados e até dimensões espirituais. Aquele consumismo baseado unicamente na vontade de ter uma TV de tela plana em todas as salas da sua casa vai diminuir. E isso trará um desafio muito interessantes para as empresas: elas terão de se tornar muito mais criativas do que são hoje.
FRONTEIRAS DO TRABALHO
Cada vez mais, as pessoas com maior grau de educação e com as melhores oportunidades vão procurar por trabalhos que possam ser incorporados às suas vidas pessoais, e vice-versa. Não sei se isso é 100% bom, mas certamente é melhor do que estamos agora. Hoje, ninguém nos fala: "você fez o suficiente". Você mesmo determina isso. As fronteiras entre trabalho e vida pessoal estão caindo.
URBANIZAÇÃO
Acredito que, ao longo do tempo, as grandes oportunidades estarão nas cidades. As cidades criam estilos de vida muito melhores para as pessoas. Nelas, as pessoas podem trabalhar menos do que no campo - as mulheres principalmente. Por isso, acredito que as oportunidades para as pessoas terem uma vida mais balanceada está crescendo, não diminuindo. Minha única grande preocupação com isso é que, conforme nos tornemos cada vez mais ?hiperconectados?, fiquemos cada vez mais desconectados de coisas fundamentais, como natureza, família e a sensação de pertencer a uma comunidade.
OTIMISMO
Sou um futurólogo otimista. Sou pai de três crianças e tenho muitas preocupações sobre o planeta futuro que eles vão ocupar. Mas, se alguém me perguntar se eu preferia que meus três filhos tivessem nascido há 100 anos, eu diria não. Provavelmente, sem os antibióticos, apenas dois estariam vivos. É possível também que não tivessem acesso à educação.
FUTUROLOGIA
Não gosto da palavra futurologia, prefiro chamar o que faço de previsão. E, sim, existem limitações a ela. Isso porque o volume de variáveis que podem modificar o mundo é quase infinita. E o cérebro humano não é capaz de lidar com milhões de variáveis, nem mesmo com poucas. A possibilidade de que aconteçam eventos loucos, que mudem totalmente a natureza de tudo, é muito alta. Ninguém pode cobrir todos os cenários possíveis.
' O país do futuro está aqui'
Época
25/05/2009
Helio Gurovitz e Paulo Moreira Leite
ÉPOCA – Desde aquela ideia dos BRICs, muitos dizem que o Brasil é um país que terá um grande futuro, mesmo da explosão da crise. O que o senhor acha disso?
Fernando Henrique Cardoso - Os BRICs foram uma criação do [banco americano] Goldman Sachs. Como conceito, isso não existe. São países absolutamente disparatados, que têm em comum só uma coisa: são grandes, são populosos. O critério não é desenvolvimento propriamente dito da economia, nem da sociedade. É peso na economia global. E a população conta. Eu tive um professor de economia política, um francês chamado Paul Hugon, que vinha da Faculdade de Direito da França, de Lyon. Ele tinha uma enorme confiança no Brasil por causa do desenvolvimento demográfico. Os economistas depois vieram criticar isso, falar que o que importa é a renda per capita, a massa populacional. Pelo contrário, olha a Índia, a China. Agora voltamos à ideia de que a massa populacional tem importância. Mas não é só isso, porque a Indonésia tem massa de população também. A Nigéria também tem. Então é a massa de população, mais um certo avanço tecnológico, de inserção na economia global, etc. Nesse sentido, como a economia está globalizada em função não da população, mas da internet, da interconexão dos fluxos de finanças no mundo todo – o que é específico da economia atual é essa rápida conexão dos fluxos financeiros e a possibilidade de dispersão do processo produtivo com controle, por causa também da internet –, na medida em que esses países se inserem na economia global, acho que tem sentido falar em BRICs. Mas eles são muitos díspares. O interessante é que faz pouco tempo já se começava a pensar que o B ia sair, e a sigla ia virar RICs. Não virou RICs. Projetando isso para daqui a 11 anos, provavelmente essas massas populacionais, com a condição de que a sociedade se organize, de que a economia se modernize e possa ser interconectada, terão um papel.
ÉPOCA – Em que medida essa crise, ao colocar o poderio americano numa perspectiva um pouco mais perto do chão, representa uma oportunidade para nós?
FHC - Dependendo de como saiam os outros países, o Brasil pode relativamente sair-se melhor. O que não quer dizer que não tenha havido perda geral, porque crise é perda geral. Ninguém sabe quanto o mundo perdeu de riqueza, mas calcula-se de 30 a 40, 50 trilhões. É brutal. Portanto, vamos ver quem vai perder mais e quem vai perder menos. Os Estados Unidos certamente vão perder. Mas duvido que os Estados Unidos, mesmo depois da crise, não saiam ainda à frente, porque hoje a economia americana deve ser de 15 trilhões. A nossa é 1,3. A americana é 15, para ter uma ideia. A chinesa deve ser da ordem de 4...
ÉPOCA – É por aí.
FHC - Portanto, é muito longe ainda da economia americana. A russa não é maior que a nossa. O problema, para responder quem vai sair melhor, é quem vai ser mais afetado. Seguramente, as economias em que o sistema financeiro era mais forte serão mais afetadas, quer dizer, Europa e Estados Unidos. A crise estourou ali, no sistema financeiro. Agora, as economias que são muito, como eles chamam em inglês, export-oriented (orientadas para exportações), como a China, vão sofrer também, porque os grandes mercados são os mercados europeu, americano e japonês, que estão caindo. E isso nos afeta também, porque, mesmo que a gente exporte para a China, a China vai importar menos, porque ela usa uma parte do minério de ferro nosso para virar aço para exportar para os Estados Unidos. E os países que têm uma economia, digamos, mais diversificada, como é o caso do Brasil, provavelmente têm mais recursos de defesa. [Mais] até do que a [economia] chinesa, porque agora é que [lá] estão dizendo: “Vamos fazer uma reorientação do mercado externo para o mercado interno”. Aqui, a nossa economia não é muito aberta.
ÉPOCA – Apesar de tudo...
FHC - Apesar de tudo. Em proporção, a parte de importação e exportação é menos de 20%. Então, é possível que relativamente saiamos melhor. Agora, tudo vai depender de quanto dura a crise. Porque, se a crise for de mais longo prazo, acaba produzindo desgastes maiores. Se ela for de curto prazo – entendendo, por curto prazo, uns 2 anos e já passou 1 –, se até meados do ano que vem isso não tiver sido retomado, aí as conseqüências começam a se complicar e nós também perdemos velocidade. É difícil que o Brasil, neste ano, cresça muito mais que ao redor de zero. Não dá, não tem como. Isso é uma coisa ruim, porque fomos mais uma vez pegos quando estávamos alçando voo. Não é a primeira vez. Aconteceu em 2001, aconteceu no ano passado também. Vai alçando voo, de repente vem um vento negativo – e lá vai. Isso diminui a capacidade de alcançarmos a velocidade de cruzeiro. E o problema, para 2020, é quem terá alcançado a velocidade de cruzeiro. Que tenha um desenvolvimento sustentável, mantidas as pré-condições para o crescimento e desenvolvimento científico e tecnológico que deem base a uma economia mais moderna, instituições que possam funcionar para permitir uma integração saudável no mercado internacional. Vou pegar um exemplo absurdo: ontem veio aqui o Michael Pettis, professor da Universidade de Pequim. Ele é americano e mora em Pequim há 7 anos. Para minha surpresa, ele tem uma visão pessimista sobre o que possa acontecer na China. Ele acha que o sistema financeiro chinês é um sistema precário e que não é tão fácil fazer essa transição da exportação para o consumo. Diz que os chineses são altamente tendentes a poupar e que agora é preciso gastar. Eles não reagem à baixa da taxa de juros. Se você baixa o juro, não é por isso que eles compram, eles não saem gastando. Então, se a economia da China desandar, complica mais ainda o panorama todo.
ÉPOCA – A China apareceu com um modelo de desenvolvimento novo no mundo nos últimos anos. É uma proposta que, por um lado, causa horror para a gente, porque é baseada em pouca liberdade, num modelo autoritário, centralizador, mão-de-obra barata etc. Por outro lado, gerou um mercado gigantesco, gerou uma forma de desenvolvimento que alguns chegaram a entender que seria o novo motor da economia. Qual é a sua opinião?
FHC - Sem dúvida alguma, [a China] cresceu muito. Se transformou num motor até para a própria economia brasileira, nossas exportações cresceram muito para lá. Mas, guardadas as proporções, de 15 trilhões para 4. Motor do mundo mesmo é Europa, Estados Unidos e Japão. E continuam sendo. A China ainda vai ser, mas às vezes exageram um pouco. Vamos discutir mais um pouquinho a ideia do motor. Quem é que arranca? A China tem esse modelo de desenvolvimento que é bastante enaltecido. Mas, como sou mais velho que vocês, lembro de como a gente enaltecia o modelo japonês e, antes do japonês, o soviético. A certa altura, eles disseram: “Vamos ultrapassar os Estados Unidos”. E estavam ultrapassando em produção siderúrgica, de cimento etc. E por que caíram? Aí é uma característica do capitalismo. O modo capitalista de produção depende continuamente de inovações. A grande transformação que ocorreu nos últimos anos, a partir dos anos 70, foi a da cibernética, da informática. Foi uma mudança brutal. E, depois, a velocidade enorme nos fluxos de capital e, bem depois, o descolamento que vimos agora entre a base produtiva e o fluxo de capital. A União Soviética estava crescendo muito. Ela mandou o Sputnik para o espaço antes do mundo ocidental – parecia que ia fazer tudo antes. Parou pela falta de desenvolvimento no setor que se modernizou mais, na base da internet precisamente. Onde eles fizeram grandes avanços, senão não poderiam mandar o Sputnik? Na base do hardware. Quando houve a miniaturização, o PC, essas coisas, eles não conseguiram acompanhar. Tentaram imitar quando os japoneses e coreanos entraram na corrida, já nos anos 80. A cada dois meses, chegava um novo gadget, um novo instrumento. Eles não acompanharam. Tem um livro do Manoel Castells que analisa isso, que mostra o seguinte: que o comando militar soviético percebeu isso. E, como tudo na União Soviética tinha sido feito endogenamente, eles competiam, fizeram a bomba atômica, o Sputnik, iam avançando. Mas era tudo endogenamente, com um método mais brutal do que sofisticado. Quando perceberam que o sofisticado ia mais depressa, o que os soviéticos fizeram? Começaram a copiar. Eles colocaram a máquina industrial soviética...
ÉPOCA – Aí começou a engenharia reversa...
FHC - Engenharia reversa, imitar, aquela coisa toda. Mas não deu tempo. E mais: como a sociedade soviética era autoritária, o que aconteceu? Eles não difundiram para a sociedade os avanços tecnológicos. No cotidiano, o que aconteceu nos últimos 50 anos teve um impacto maior do que a revolução industrial. Na revolução industrial, a máquina a vapor mudou muita coisa, a locomotiva também, mas quantas pessoas andavam de locomotiva? Isso não afetava o dia-a-dia. Agora não. [A mudança] o afeta o dia-a-dia das pessoas. No caso das sociedades ocidentais, primeiro afeta a vida da família, da mulher, household. Com máquina de lavar roupa, telefone celular, fax. Na União Soviética, eles tinham medo da transmissão de dados. E o mundo moderno vive da transmissão de dados. Digitalizou tudo.
ÉPOCA – Então há uma relação com o modelo político.
FHC - Sim. Por isso não sei qual vai ser a capacidade de a China seguir. É um ponto de interrogação. Não estou dizendo que não vá seguir. Mas não sei. Será que, na nova onda de desenvolvimento, a China terá condições de acompanhar? Assisti anteontem a uma exposição sobre o que está sendo feito na internet nos Estados Unidos. Você agora vai ter um chip pendurado aqui, e o chip lê para você as coisas. Você quer saber que horas são, você pega o chip, você põe assim, desenha no seu braço um relógio e dá a hora. E por aí vai. É uma coisa que você fica aterrorizado. Como é que isso vai se traduzir na produção depois? Não sei. É preciso saber. E a questão do regime político tem certas consequências para a adaptação da modernidade.
ÉPOCA – Muita gente diz isso.
FHC - Não sei na China como vai ser isso. Não estou dizendo que eles não sejam capazes – eles já foram capazes de muita coisa.
ÉPOCA – Se eles têm força para ser motor do mundo...
FHC - Não sei se têm isso aí. Há muito tempo tenho na minha cabeça – pode ser que eu esteja errado, isso é mera percepção, não é nenhuma análise – que a força americana advém da relação da universidade com a produção e o governo. Conseguiram um modelo em que o motor daquilo ali é a inovação tecnológica, que se transmite para a empresa e para o governo. E há universidades suficientemente fortes para não temer a relação nem com o Estado nem com a empresa. Estão em permanente ligação.
ÉPOCA – É o modelo do Vale do Silício?
FHC - É isso mesmo. Isso funcionou. Como vai ser na nova etapa? O que vai acontecer nesses próximos anos? Que impacto isso vai ter? E os sistemas políticos têm uma certa [influência]. Eu diria que uma das vantagens que o Brasil tem é que conseguimos, bem ou mal, começar a institucionalizar a democracia. Liberdade e regulação. A China conseguiu uma certa modernização dessa dicotomia no setor empresarial. Não no político. No empresarial, eles conseguiram conviver com uma certa capacidade de controle e com um espaço de ação. A Rússia conseguiu menos. Até hoje, dá a sensação de que a Rússia não conseguiu ainda. Em função, em parte, dessa herança. Ela continua autoritária, com gangues, continua sem haver propriamente um estado de direito que garanta a propriedade.
ÉPOCA – E isso não garante um ambiente de negócios que atrai capitais produtivos...
FHC - Exatamente. E [a Rússia] está recuando. Ela é muito rica porque ela tem petróleo, tem ouro, tem metais... Nós temos talvez melhores condições de saída. É possível que tenhamos melhores condições de saída. Digo sempre que é possível porque depende do engenho humano. Aqui tivemos a sorte: o sistema econômico e o sistema político foram sendo montados e, até agora, a sociedade começa a ter uma certa movimentação, uma capacidade de organização, as ONGs se desenvolveram, há programas sociais para poder incorporar mais gente. Nossa sociedade se ocidentalizou.
ÉPOCA – No bom sentido.
FHC - No bom sentido. A chinesa até certo ponto. A indiana, não sei dizer, tenho muita dificuldade. fui mais à Índia que à China, mas sinto mais facilmente a China que a Índia. A Índia é mais complicada, é um mosaico. É muito mais heterogênea. A China tem uma coisa interessante. Escrevi um artigo que chama a atenção para isso. Um dos teóricos da formação do capitalismo foi Max Weber. Curiosamente, Weber tem uma análise na qual ele diz que uma das eventuais possibilidades históricas de desenvolvimento do capitalismo era na China – e diz por quê. Cito até isso. Não vamos entrar em detalhes porque desvia do nosso foco, mas, primeiro, a China é mais homogênea, como cultura e tal. Segundo, ela tinha o mandarinato. O mandarinato era a meritocracia. Mandarim não era um titulo dado: é mérito.
ÉPOCA – É algo que o Partido [Comunista Chinês] preserva.
FHC - Preserva. O sistema tem isso: é uma burocracia meritocrática. Uma forma de promover os melhores. O mandarim não herdava o título. Eram concursos, exames e exames o tempo todo. Eles fazem isso na China de alguma maneira. O partido acompanha a carreira, analisa, prepara gerações. Descobriram uma maneira de mudar em que eles mudam por geração. Passou o tempo, muda. Não é como nós, que mudamos com a eleição. Esse professor que esteve aqui me disse o seguinte: uma das províncias de lá, o nome eu já esqueci, tem 100 milhões de habitantes e só pode mandar não me lembro se 7 ou 17 estudantes para uma universidade de altíssima categoria. São só os melhores mesmo. Não sei se isso dá certo. Tomara dê, mas está em aberto. Nós aqui, nosso caminho já está mais ou menos previsto. É difícil que você dê um golpe e retroceda. Na Rússia, não está seguro. Já retrocedeu.
ÉPOCA – Quando o senhor fala de engenho humano, que o futuro depende do engenho humano, do que está falando, genericamente?
FHC - É preciso liderança e capacidade, que não é do líder, é da sociedade, de, num momento histórico, aceitar a inovação. Você não inova quando quer e porque quer. Você inova quando existe alguém ou alguéns, normalmente alguéns, que venham com uma fresta e quando a sociedade se abre para ver a fresta. É difícil porque ao contrário do sentido comum, ninguém gosta de mudar nem de reformar, porque tem medo. Maquiavel já dizia que o problema da reforma é que os que vão ser beneficiados não sabem que vão ser, e os que vão perder percebem na hora e gritam. Então, não é fácil essa mudança, essa reforma necessária. É preciso liderança, mas não é só liderança – é uma brecha histórica. Por que eu chamei atenção para a coisa americana da universidade? Porque lá eles rotinizaram a mudança. São predispostos a aceitar a mudança. Vimos agora a eleição do Obama. É uma prova de mudança. Saiu do Bush – que foi eleito, fez guerra e, depois da guerra, foi reeleito – para o contrário. E isso não desorganiza a sociedade. Vai sair na China, vi hoje, a memória do primeiro-ministro chinês [Jao Jiang]. O Deng Xiaoping liquidou com ele. Porque ele quis liberalizar um pouco mais, deu briga na cúpula. No mundo ocidental, são descobertas formas de mudança sem necessariamente quebrar. Na Rússia, fizeram uma tentativa de compor uma mudança e é muito difícil mudar. Na África, é dificílimo tirar o presidente.
ÉPOCA – E no Brasil?
FHC - No Brasil, entramos já numa fase que vai indo. Por isso, é muito importante que não haja quebra de regras.
ÉPOCA – Mas na história brasileira, nos momentos em que a mudança se tornou necessária, houve ruptura institucional...
FHC - Houve ruptura. Até a minha posse. Mas aqui já temos flexibilidade suficiente na sociedade, pesos e contrapesos para impedir algo disruptivo. E os líderes entendem isso. O Lula entende isso, sente isso. Querer é uma coisa – e poder é outra. Mas não é porque não pode, é que não dá, vai ser fora da regra. Acho eu, e tomara que seja, porque isso é bom para o país. É difícil o aprendizado de alternância sem ruptura. Por que eu me esforcei tanto na transição? Por isso. Porque eu tinha consciência disso. Não dá para chegar a um ponto em que a sociedade se divida irremediavelmente. Por que eu me opus ao impeachment do Lula? Não porque seja ilegal, legalmente podia. Porque, mesmo que ele ganhasse, perdia, porque se criaria uma divisão na sociedade. Não pode. Historicamente, a sociedade tem que absorver esse processo todo e desenvolver mecanismos de defesa. Então nossa sociedade vai estar melhor desse ponto de vista também em 2020. A despeito da crise, porque sou realista o suficiente para perceber que a crise vai nos infligir mais danos do que parece...
ÉPOCA – Mais danos do que benefícios.
FHC - Mais danos do que benefícios. É crise, mas, a despeito disso, temos a elasticidade para voltar a crescer e avançar, como os Estados Unidos, como a Europa. E a China, vai também. Precisa ver até que ponto isso vai impactar na sociedade chinesa.
ÉPOCA – Quando o senhor fala em avançar, a gente como país teria que avançar por onde?
FHC - Estamos muito intoxicados pela questão da previsão do mercado, da economia. É compreensível, e isso foi um fator limitativo enorme. Essa limitação, de alguma maneira, foi pouco a pouco superada. Agora temos outras que não conseguimos ainda enfrentar. Vou usar uma frase banal: não fizemos a revolução educacional no Brasil. Isso não quer dizer que não tenhamos nos empenhado. Não estou falando uma coisa partidária, nem defesa do que fiz. Houve acesso à educação? Houve. Pela primeira vez, todas as crianças estão na escola. Isso é muita coisa, são 40, 50 milhões de crianças. O Brasil não avalia o que é isso. Todo dia estão na escola e todo dia comem na escola. Quando vejo o negócio de Fome Zero, esqueceram que temos o maior programa nutricional do mundo: a merenda. E não é do meu governo, vem de antes. O que eu fiz foi municipalizar a compra. Mas já estava aí e continua. Não estou querendo negar os avanços ocorridos. Mas, se você tem pela primeira vez a possibilidade de as crianças terem acesso à escola, os pais não tiveram. Então há um problema complicado, porque, se você vai no Japão, na China, na Coreia, a cultura tradicional era uma cultura bastante enraizada. A família, embora não tivesse talvez educação formal, tinha valores importantes e transmitia aos filhos. Parte da cultura, em sentido antropológico, a família garantia. Aqui, com a migração interna, com a desorganização familiar, com a pobreza, com tudo isso e com falta de escola, não tem. Então, a escola no Brasil não tem em casa. Talvez o diferencial maior no resultado escolar dos alunos seja a casa, a família.
ÉPOCA – Muita gente diz que o Brasil tem uma janela de oportunidade para aproveitar, para educar o seu povo. Que, até agora, a gente veio na base da mão-de-obra, da riqueza natural, de coisas que não precisa fazer muito esforço intelectual para produzir. E que a gente tem uns 20 anos aí, porque depois vem a África. Depois eles vão chegar com tudo também. E que, se a gente não aproveitar esses anos...
FHC - É a brecha demográfica. Nossa população média não é velha ainda e já não é tão nova. Isso é importante e dura 20, 30 anos. E temos que aproveitar. Até certo ponto, aproveitamos. Mas a pressão sobre o mercado de trabalho está diminuindo. Agora aumentou, o desemprego dobrou por causa da crise. Ninguém prestou atenção: de 4,5% para 9%. Pelo Dieese são 15%. Cresceu bastante. Mas imagina se a pressão demográfica fosse como há 10 anos, quando o volume de gente que chegava ao mercado de trabalho era maior. Essa brecha permite que seja efetivamente possível investir mais na educação. Investimos, mas não o suficiente, porque aí é fácil falar e difícil fazer. Uma escola que oferece 3, 4 horas de aula para uma criança, uma criança que não tem sustento cultural na família, não oferece nada. Então, se você quiser chegar, olhando para frente, em melhor condição, é preciso acelerar o que já começou – uma transformação maior na educação. Já começou, é indiscutível. Em vários Estados você tem esforços, isso é inegável. Mas é preciso haver um esforço persistente para ampliar a permanência da criança na escola. O mais difícil ainda, melhorar o nível dos professores. Isso é crucial. E ter a coragem de entender que, no mundo moderno, não podemos continuar ensinando coisas que não são úteis, que não são necessárias. [É preciso] mudar o currículo profundamente. Não sei a resposta. Não sei se o que eu vou dizer tem sentido: será que são necessários 5 anos para se formar em direito? Por que 5? Quantos para se formar em economia? A velocidade do mundo é tal que você hoje talvez não precise de tanto tempo. E estudamos na escola coisas que não são úteis. Até hoje sou capaz de recitar para vocês pedaços do Cícero (Gallia est omnes divisa in partes três, quarum unam...). Isso nunca me serviu para nada. Estudei 7 anos de latim. É melhor aprender bem o português. E talvez o inglês. Não estamos fazendo o que os chineses estão fazendo. Eles estão alfabetizando em inglês maciçamente. Nós aqui ainda não. Matemática, coisas elementares. Como é que vai ser a formação? Fui, até agora, professor da Brown University, nos Estados Unidos. Uma grande universidade, Ivy League, uma das melhores. O aluno entra lá no “college”, faz o primeiro ano, o segundo ano. O terceiro ano já começa a ser diferente: ele faz o currículo dele. E não há contradição em estudar poesia grega, matemática e biologia. Aqui, vejo nos meus netos: é uma angústia. Com 17, 18 anos, têm que escolher a profissão. Entrou ali é uma gaveta, não sai, é um túnel. E é um massacre para conseguir entrar. Tenho uma neta que entrou em três faculdades de direito. Terminou o primeiro ano e desistiu, “ah, eu não quero isso”. Então perdeu tudo, volta, vai fazer outra coisa. Quem tem 17 anos não sabe o que quer. Era preciso ter uma base maior, dar mais flexibilidade, mais liberdade. É o contrário do que se costuma fazer no Brasil, [com uma] regra geral para o país todo. Se você quiser uma sociedade dinâmica e moderna, é o contrário. Não sei se, no futuro, você vai ter um curso de engenharia. Aliás, o que se chama hoje de engenharia é muito diferente do que no meu tempo se chamava de engenharia. Tem engenharia de alimentos, tem engenharia disso, daquilo. Daqui a pouco tem engenharia de turismo. São coisas diferentes porque o mundo é outro. Ainda estamos nesse aspecto um pouco ossificados, temos uma visão um pouco coimbrã das coisas. Mudar a educação é não só uma questão de acesso, o que se ensina no primário e secundário, mas também depois no próprio conteúdo do que se ensina. É dar mais flexibilidade na formação porque a pessoa não vai ter mais emprego, vai ter ocupação.
ÉPOCA – Tem um ponto, presidente, que o senhor mencionou: a ponte da universidade para a empresa. Aqui no Brasil, a gente tem a impressão de que é muito difícil você transformar o conhecimento em produto. E isso é crucial para ser competitivo no mundo de hoje. O que o Brasil deveria fazer?
FHC - Se você pegar as universidades, tradicionalmente é verdade isso. O brasileiro tem receio. Imagina uma empresa contratar um departamento. “Isso é inaceitável, é privatização”.
ÉPOCA – Que é palavrão aqui...
FHC - É palavrão. Mas o que está acontecendo? Está havendo uma multiplicação de escolas à parte desse mundo tradicional. As empresas também estão investindo mais em treinamento e educação. Mas ainda estamos longe. Vamos ver pela Petrobrás. Ela forma geólogos. Propicia os cursos de formação. Por isso o Brasil avança, porque a sociedade brasileira avançou mais que o Estado brasileiro. Se a sociedade precisa de outras coisas, ela faz, inventa uma saída. Não é o ideal, mas funciona. Porque a sociedade aqui é vibrante. E, na medida em que a gente consegue quebras as regras, não ser tão centralizado em Brasília... Tenho horror à centralização em Brasília, não porque eu tenha nada contra Brasília, mas o mundo moderno não funciona assim. O mundo moderno não funciona com estruturas hierárquicas e centralizadas. Ele funciona com estruturas mais dinâmicas, como a Al-Qaeda. Organiza, desorganiza, por cissiparidade, células, rejunta mais adiante. Como você aprende a mexer com internet? É fazendo, naturalmente. E nossa escola não é a escola do fazer. Temos sementes de modificação, em São Paulo, por exemplo, temos esse sistema de escola profissional técnica, as Fatecs e Etecs. São interessantes. Recebo aqui uma vez por mês, às vezes duas, estudantes do curso secundário do último ano. Eles visitam as coisas daqui, depois têm uma conversa comigo. É muito interessante. Eles dão o tema sobre o qual querem discorrer – só não pode partido, eleição, para não pensarem que estou doutrinando. É interessante: as Fatecs funcionam, você não vê diferença. Às vezes, para melhor. Também não vejo diferença entre ensino público e privado no nível. Outra coisa interessante é que as moças são mais audaciosas nas perguntas que os homens, em geral. Perguntam mais. A escolarização da mulher é superior à do homem, em geral. No começo, ficam um pouco encabulados, mas depois perguntam com muita propriedade. Não lembro o nome da última escola que esteve aqui. Só fizeram perguntas apropriadas.
O outro gargalo que eu vejo não tem nada a ver diretamente com a economia – claro que pressupõe uma economia dinâmica e um estado mais ou menos organizado para poder ampliar a educação e tal. O outro problema complicado é segurança, segurança pública. E aí vem droga, vem tudo junto. Ainda não encaramos isso na política, na visão do que é o Brasil do futuro. Um país decente é um país que tem crescimento, tem emprego, tem educação, mas tem segurança também. Desde segurança jurídica, acesso à justiça, essa coisa toda. Vou contar um caso só. Outro dia fui chamado, faz uns meses aí, pelo juiz [Fausto] De Sanctis, como testemunha de acusação do caso do dossiê Cayman.
ÉPOCA – Isso ainda existe?
FHC - Isso faz 10 anos. É a primeira vez que me chamam. Há dez anos, um caso que envolvia o presidente da República, um governador e dois ministros. Se, nesse caso, levam 10 anos para a primeira audiência, você imagina o que acontece... Não acontece nada. Então, segurança jurídica, segurança das pessoas, o que fazer com o crime. Algo está avançando. Você vê o caso de São Paulo. Aqui nesta região, o centro ampliado, a taxa de homicídio é acho que de 10 por 100 mil. É uma taxa mais ou menos igual à de primeiro mundo. Se você for andar por aí, podem roubar teu bolso, furto é muito maior, mas o homicídio caiu. E a gente sabe por que caiu. Participei com o instituto de um seminário, e em Harvard também existe um monte de estudos para mostrar que há uma relação entre a diminuição nas taxas de criminalidade e a quantidade de pessoas na cadeia. Tem que prender. Mas o outro lado é que a cadeia virou escola de crime. E o governo muitas vezes perde o controle sobre a cadeia, como aconteceu há alguns anos atrás naquele mês de maio. Como é que muda a cabeça também da própria justiça e do legislador? Tem uma porção de penalidades que não deviam ser de cadeia, porque senão você não tem cadeia suficiente para quem é criminoso mesmo e vai ensinar a quem não é tão criminoso assim o crime lá na cadeia. Em certas áreas, como é que você treina o juiz para entender? É muito difícil. Essas coisas a gente está longe de entender que são problemas para o crescimento do país, não da economia. Do país. Da vida da sociedade, da nação. O importante, daqui a 20 anos, não é saber quanto está o PIB. O PIB vai variar, acho que vai ser 0 esse ano. E ai, a culpa é do governo? A culpa não é de ninguém, pode ter sido um erro de política aqui e lá, mas são circunstâncias, o sistema capitalista funciona como sanfona mesmo, vai ter crise, pode regular à vontade.
ÉPOCA – O senhor está falando que, daqui a 20 anos, o importante vai ser como ficou nossa vida?
FHC - Isso, a vida das pessoas. A vida não é só mercado, não é só economia. Depende da segurança num sentido amplo, depende da educação...
ÉPOCA – Quer dizer, ao contrário do que disse a Margaret Thatcher, existe a sociedade.
FHC - Exatamente isso, a sociedade existe, não é o mercado (risos). A sociedade existe e as pessoas vivem na sociedade. Quando você tem predominância, como tínhamos no Brasil frequentemente, o que é que regulava e regula [a vida] até hoje? É quase só o mercado. Isso é ruim. Você não tem valores, não tem outras atividades, não tem lazer. Vocês poderiam fazer na revista, entrevistar a camada jovem, mas jovem mesmo, 18 anos, o que eles veem? Quais são os temas que os sensibilizam? Em várias classes, da alta à baixa. Essa meninada que votou no Obama, aqui estaria onde? Quem é que simboliza a aspiração dos que estão vindo? Que provavelmente vão estar muito mais focados no tema da felicidade – do bem-estar, não no sentido da riqueza material, do bem-estar mesmo, saúde, segurança – do que no resto. E não vão ficar tão preocupados, como a minha geração e até agora, com emprego, emprego, estágio. Minha filha, que tem 45 anos ou mais, renunciou à posição de professora da USP. Renunciou. Porque ela trabalha com educação, tem uma ONG importante e isso limitava o tempo dela. E o salário é baixo. Ela é doutora, tem uma carreira e renunciou. Isso, para a minha geração, é impensável. A gente tinha medo de ficar sem emprego. Já que você tem um emprego, segura, né? Até a aposentadoria. Para sempre. Para sempre. Não, as pessoas estão mais predispostas a mudar. Então é preciso perguntar a essa nova geração como vai ser a vida daqui a algum tempo, o que você quer fazer? Não sei se haverá tanta obsessão, como na minha geração e na de vocês também, pelo trabalho, que ocupa todo mundo em seu tempo inteiro.
ÉPOCA – Será que, então, a gente vai para aquela sociedade do lazer, como Marx dizia no Capital...
FHC - Se você lê começar a ler O Capital, no volume terceiro é fantástico. Tirando a parte política, que é uma visão da história que não se concretizou, a utopia dele era boa. No fundo, era mais sociedade e menos Estado, e era mais livre. Isso só pode ser imaginado quando a sociedade sair da escassez.
ÉPOCA – O senhor acha que a gente está indo para uma coisa menos de escassez?
FHC - Espero. Comparando quando eu nasci para hoje, que dúvida? A classe média brasileira não era o que ela é hoje não. Sou de classe média, nunca fui pobre. Mas, naquele tempo, a coisa era mais contada. Porque era contada na sociedade, havia menos bens materiais também. Quando eu era criança, queijo vinha de Portugal, queijo do reino, aquela bola. E uva também era importada. E pêra, maçã e tudo o mais, numa época do ano.
ÉPOCA – Qual era a utopia da geração do senhor, quando o senhor estava se formando?
FHC - Foi uma época boa, foi bem em 52, 53, Getúlio... Daí veio logo o Juscelino...
ÉPOCA – Pois é, o Brasil ali só dava certo.
FHC - Só. Liberdade e crescimento. Mas é a ideia de ter um país mais fechado. Muita reação contra...
ÉPOCA – Isso não vem de volta agora com essa crise?
FHC - Mas não consegue. Não consegue. Está de volta no jornal, na internet, mas no dia-a-dia acabou isso, não tem como. O fluxo de ideias, de bens, de serviços.
ÉPOCA – Mas essa visão assim, liberdade e crescimento, uma coisa fechada, era mesmo um sonho do Brasil, essa coisa daquela Copa de 58 que foi muito importante, aquela afirmação brasileira...
FHC - Era muito importante, mas hoje estamos mais tranquilos quanto a isso. Usando o slogan do Stephen Zweig: o Brasil era o país do futuro. Já não é mais, já está aqui. Eu disse há alguns anos isso: o nosso problema não é mais de subdesenvolvimento, é de injustiça. Para o nível de desenvolvimento que nós temos, temos muita injustiça. É um problema quase moral. Não se justifica ter tanta desigualdade e tanta pobreza, dado o nível de desenvolvimento que temos. Não tínhamos esse desenvolvimento naquele tempo.
ÉPOCA – O sonho era alcançá-lo, por isso o desenvolvimento era uma ideia de todo mundo, certo?
FHC - Porque era necessário. E ainda é, claro. Mas hoje o desenvolvimento está inscrito na natureza da sociedade: vai crescer. Não tenho certeza se vai ser uma boa sociedade. Ou seja: se vai ter felicidade, acesso à segurança, educação, lazer. E, se você não tiver educação e cultura, não vai fruir. É a tragédia de uma certa camada da população brasileira que enriqueceu muito. O que ela faz? Ela come, engorda, faz dieta. Viaja, chega lá e não sabe falar a língua, volta, acha tudo ruim. Você, no futuro, terá que ter pessoas capazes de fruição. Não é fruição material só. Fruição espiritual também.
ÉPOCA – Numa entrevista anos atrás, o senhor previu que estávamos indo para um sistema financeiro descolado da produção, você usava a expressão ciranda financeira. E o senhor dizia que o mundo precisava de um governo global.
FHC - Continuo achando.
ÉPOCA – Por que é tão difícil avançar nisso aí?
FHC - Porque fomos criados na ideia da soberania. Essa terra é minha, eu nasci aqui, eu tenho limite, eu tenho fronteira, eu tenho um Estado que controla essa fronteira etc. Isso vai continuar a existir. Vai continuar e é necessário que seja assim. Só que, com a globalização, não dá para dirigir a partir só disso. Alguns temas transcendem a fronteira, inclusive ecologia. Sempre falo do Gorbachev, disse até a ele quando ele veio aqui 5 anos depois de 92, e eu era presidente. Aquilo foi uma mudança importantíssima, porque ele era o chefe do Partido Comunista, o chefe da União Soviética, e ele disse: “Olha, não dá para pensar em bomba atômica, porque a bomba atômica atinge a todos, tem que pensar em ecologia”. Então, não basta Estado nacional nem classe. Isso não vai abolir Estado nacional, nem classe, nem portanto as lutas de classe, mas há uma área do mundo hoje que, por causa da expansão da economia e da expansão da tecnologia, afeta a todos. E tudo ficou mais ou menos transnacionalizado. Você pega o crime, o crime é internacional. Toda essa questão do meio ambiente e aquecimento global, tudo isso é internacional. A economia, o dinheiro, a água. Não é criar um governo mundial, isso não existe. O Kant dizia, a respeito da paz universal: para ter isso, tem que ter um direito internacional.
ÉPOCA – Tinha que ter alguma instância jurídica que fosse capaz de regulamentar.
FHC - Bom, eu acho que algum progresso houve nessa direção em certas áreas. Por exemplo, o genocídio. É crime contra a humanidade. E nós temos o Tribunal Penal Internacional. É um começo. Agora, a regulação financeira. Os Estados Unidos sempre se opuseram a aceitar qualquer regulação. Deu no que deu agora. Não é que, se tivesse regulação muito grande, a crise não ia vir. A crise ia vir. Ela pode diminuir como no Brasil, porque nós regulamos mais e defendemos o sistema financeiro. Mas é preciso ter alguns órgãos de articulação no nível global. Eu acho que isso está se discutindo neste momento. O que se faz na Basiléia, no BIS (Bank of International Settlements). O que se faz lá? Isso vai ter mais força, menos força? Quem controla as organizações internacionais? FMI, Banco Mundial.
ÉPOCA – O FMI teve um ressurgimento...
FHC - Teve. O FMI, que estava morrendo, voltou aí. Olha, desde o meu tempo eu dizia: o problema do FMI não é que ele seja forte demais, ele é fraco. Primeiro, quem manda nele é o Tesouro dos Estados Unidos. Eu não estou dizendo coisa que eu ouvi falar. Eu telefonava pro Clinton: “Olha, esse pessoal tá maluco, querem que baixe a taxa de juros e eu não vou fazer”. Então, claramente você hoje precisaria não só do que está sendo feito. Deram US$ 750 bilhões ao FMI, uma loucura. Pouco, para o que se tem no mundo, mas nunca tiveram tanta possibilidade. Mas não mexeram na estrutura de mando do FMI. Os Estados Unidos têm direito de veto.
ÉPOCA – Eles andaram distribuindo um pouco ali, mas realmente muito pouco, a diferença é...
FHC - ...muito pequena. Mas vai indo nessa direção. Isso não quer dizer que você vai acabar com o Banco Central de cada país. Pode até ser. Mas é muito pouco provável que a China, ou o Brasil, ou os Estados Unidos aceitem.
ÉPOCA – Há uma tese aí de que você conseguiria fazer isso num prazo de 30 anos, mas que no começo ia ter que pegar quatro moedas fortes e estabelecer...
FHC - ...uma cesta de moedas. Mas isso não acaba com o Banco Central propriamente. Acaba com uma referência, que hoje é o dólar. Você substitui o dólar, que é a discussão que está aí. Os chineses estão aí com uma reserva de US$ 1,4 trilhões e estão assustados. E se o dólar desvaloriza? Há uma discussão nesse sentido. Eu acho possível que se aceite uma cesta de moedas. Não vamos esquecer que as moedas mudaram muito. A libra, que foi uma moeda de reserva, deixou de ser. O franco suíço já foi mais importante. É difícil, sei lá, que seja a moeda chinesa, porque não tem conversibilidade.
ÉPOCA – E, na hora que ela for conversível, muda tudo lá. Eles vão ter que aceitar uma coisa que eles não aceitam que é perder o valor da moeda, e aí deixa de ser esse exportador maravilhoso que é hoje.
FHC - Não vai ser fácil. Mas eu acho que é possível que se baixe, para ter mais uma moeda de reserva. O euro já foi importante nesse sentido, mas eu acho que, independentemente disso, você vai ter que ter modos de articular as regras do capital financeiro. Não é só para evitar a crise. É para amenizar, não haver um descontrole. Tudo o que não é estritamente banco ficou sem regra: banco de investimento, fundo hedge...
ÉPOCA – O senhor foi surpreendido pelo tamanho desta crise? Porque o que o senhor disse lá em 97, parece que está falando de Lehman Brothers.
FHC - Se você for ver recentemente, eu fiquei muito impactado com uma reunião de um seminário que assisti em maio de 2007 nos Estados Unidos, no Citigroup, onde estava claro que o negócio estava estourado. Só que eu vim aqui, fui numa reunião com uns economistas ligados ao PSDB e ninguém levou a sério (risos).
ÉPOCA – Quando a coisa está quase estourando, ninguém quer ver.
FHC - E, olha, eu não sou economista, estou de acordo com vocês. Mas eu vi uma coisa um pouquinho diferente, e tal. Tinha um cara lá com quem eu negociei a dívida externa nossa, do Brasil, que escreveu um artigo, o Bill Rhodes. E eu dei o artigo do Bill Rhodes para eles lerem. Ele dizia isso: a crise está aí. Esta crise estava na cara já em 2007. Quantas vezes muitos de nós escreveram que era insustentável a política americana por causa dos déficits públicos. Só que é assim, toda crise é igual. Você acha que ainda tem um pouquinho mais, vai ganhar um pouquinho mais, e, se você está ganhando, eu também tenho que fazer a mesma coisa, senão eu perco. Aí vai voltar o Marx, que dá lá a explicação do mecanismo de crise.
"O país do futuro já está aqui"
Para o ex-presidente, o problema do Brasil não é mais o desenvolvimento – é educação e segurança
Helio Gurovitz e Paulo Moreira Leite
ÉPOCA – É aquela irracionalidade intrínseca.
FHC - Ela é intrínseca, porque, se você regular tudo, é uma economia planejada...
ÉPOCA – Mas isso é natureza humana, porque isso está baseado em emoções humanas, é a cobiça e...
FHC - E vai assumir o risco. Se não tiver isso, você faz uma coisa burocrática. Que também não deu certo e perdeu para isso. Então, você está entre a cruz e a caldeirinha, porque se regula é pior, se não regula, não evita...
ÉPOCA – Agora, o senhor acha que a economia do mundo, como tendência, está indo para haver mais Estado, mais regulamentação, ou menos?
FHC - Eu acho que o chamado neoliberalismo, o Consenso de Washington, aquilo foi um momento: o Thatcherismo, o Reaganismo, acho que um momento que passou. Provavelmente, nós vamos ter vários modelos. Não há um caminho, não há um capitalismo, um modo total de organização. Você vê o mundo eslavo e é outro mundo. Você pega o mundo nórdico, eles têm um sistema que não é igual ao americano. A França não é igual à Alemanha. Você tem mais Estado na França do que na Alemanha, mais regulação financeira. Na Inglaterra, que era tão mais próxima do modelo americano, o Gordon Brown foi o mais intervencionista. Eu acredito também que o modelo anglo-saxão é muito próprio dos anglo-saxões, de correr risco em tudo, até na previdência. Se você colocar isso no mundo latino, é muito difícil. E não sei se é vantajoso. Agora, o que também não pode é fazer o oposto. Nós estamos ainda no oposto, com essa previdência desigual...
ÉPOCA – De certa forma, o senhor está dizendo o seguinte: lá fora, eles têm um recuo em relação a uma coisa que é exagerada para um lado, mas o nosso problema aqui ainda é o anterior.
FHC - É o anterior. Nós não somos o modelo de futuro lá de fora.
ÉPOCA – O que estão falando por aí é um pouco isso: “Ah, não, nós não fizemos aquilo, então nos saímos melhor...”
FHC - Esqueceram que nós estamos bem pelo que nós fizemos: abertura da economia. Nem era possível não abrir a economia. Tinha que abrir. Tinha gente que era contra, falava: “Vai sucatear a indústria”. Que sucatear, estamos ricos, graças a que nós abrimos a economia. Exatamente o contrário. Enfim, há outros problemas, pensando no futuro, que são preocupantes a meu ver também, porque, bem ou mal, depois da 2ª Guerra Mundial, você conseguiu um certo pacto. Agora não tem. Esse é um ponto complicado. Você tem o mundo islâmico, que é uma realidade, com 1 bilhão de pessoas. E daqui a pouco alguém tem dúvida de que o Irã vai poder fazer bomba atômica?
ÉPOCA – Dizem que em três anos.
FHC - Vai poder. Nós aqui podemos, não fazemos porque não queremos. E ainda bem que não queremos. Então, o Paquistão tem bomba atômica. A própria Rússia foi acossada, o Bush fustigou a Rússia o tempo todo. Agora, de uma maneira equivocada, porque ele não queria nem conversar. A Rússia está hoje nessa confusão, mas ela tem arma atômica e tem riqueza. Você pode pensar no mundo sem que a Rússia sente à mesa? É difícil. Ela tem fronteira com a China. Ela pode fazer aliança com a China. Ela tem ingerência sobre o Oriente Médio legitimamente, não invadiu lá o Afeganistão. Tem o Japão que está lá. Tem esse mundo aqui. Outro dia escrevi um artigo propondo um International New Deal. É preciso fazer um novo pacto internacional.
ÉPOCA – É um pouco o que começaram com o G-20.
FHC - Começaram, começaram. Já está ampliando. O problema do G-20 é que ele ainda é uma fotografia. Reúne os países para uma fotografia e vai embora, não tem nada por trás (risos).
ÉPOCA – Esse mundo é mais perigoso? No mundo da Guerra Fria, todos estávamos submetidos a duas forças. De repente caiu, mas parecia que tinha uma hegemonia americana que garantia segurança, mas não chegou a existir.
FHC - Você não teve a pax americana e os chineses até agora ainda estão retraídos. O que os chineses fizeram sobre o Iraque? Nada. Quanto eles vão dar para o FMI agora? Muito pouco. Quer dizer, eles não estão ainda colocando o dedo deles no mundo porque eles têm uma coisa de longo prazo, vão crescer mais etc. Não dão a impressão também que estejam numa posição bélica. As duas superpotências congelaram o mundo, mas não houve guerra. Agora, não está congelado o mundo, mas guerrinhas tem em todo lado. A pergunta é: isso é bom ou é mau? Pro Brasil, não é mau, porque você não tem constrangimento, pode jogar com mais liberdade. Jogar mais cartas, dar mais espaço de manobra. Para o mundo, à medida que você não tem as Nações Unidas fortalecidas, é complicado. Você não tem como parar com uma área de conflito. Aqui para o Brasil, não, porque, por sorte, nós não estamos em área de conflito. O Mercosul não foi para cá, não foi para lá, mas uma coisa é verdade: a relação entre Brasil e Argentina é boa. Então, você não tem a corrida armamentista que tem no Paquistão, tem na Índia, tem na Coreia, tem no Iraque, tem em todo lugar do mundo. Mas, como tem em todo lugar do mundo, e como os Estados Unidos nunca deixaram as Nações Unidas terem um papel mais relevante, e não tiveram condições de impor a pax americana, nós estamos com esse buraco. De fato e apesar de tudo, o que sobrou aí foram as Nações Unidas. E os americanos, depois da tentativa na guerra do Iraque de ter apoio, não tiveram apoio e congelaram. Precisa ver o que o Obama vai fazer. Ele está fazendo coisas. Eu acho que não é só simbólico, um negro que virou presidente dos Estados Unidos. Ele tem programa.
ÉPOCA – Como o senhor vê o Obama, o que ele está fazendo, o que ele pensa?
FHC - Eu não conheço o Obama. Nunca estive com ele. Só o vi uma vez num discurso lá na convenção do Partido Democrata. Ele impressiona no falar. Eu tinha medo de que ele fosse só discurso, mas olha. Ele falou com o pessoal do Irã, ele deu uma mensagem, não é fácil. Bem ou mal, ele começou a descongelar Cuba. Com o México, eles mudaram a linha. Agora, ontem, na Comissão Latino-Americana de drogas, o novo czar antidrogas norte-americano veio para a nossa posição. Ele disse que a guerra às drogas fracassou. Está vendo alguma coisa lá na frente. Eles enviaram um secretário para o hemisfério nosso aqui, que é meu amigo pessoal há 30 anos.
ÉPOCA – O Valenzuela?
FHC - Valenzuela, exatamente. É um cara aberto, que já foi ligado ao Clinton. Ele nasceu no Chile. É meu amigo há 30 anos. Agora mesmo estive lá com ele. Eu sabia que ele ia ser nomeado. Ele me disse, estava no processo. Dei uma aula lá em Georgetown, dei aula na classe dele. São sinais, o tipo de gente que está sendo mobilizado, inclusive o enviado do Obama para o Iraque e o Afeganistão, o Holbrooke, eu conheço, é um cara bom. Enfim, ele está dando sinais de mudança. Na parte financeira menos. Ele está patinando, no fundo não mudou nada.
ÉPOCA – Ele conseguiu adiar um pouquinho algumas questões que eram um pouco urgentes...
FHC - Eu vejo uma coisa curiosa: você tem hoje uma enorme liquidez no mundo. Quando veio a crise, secou o fluxo financeiro, os mercados acabaram. Agora, com a injeção de dinheiro na Europa, nos Estados Unidos, tem muita liquidez no mundo. E as pessoas não usam a liquidez.
ÉPOCA – Está todo mundo com medo.
FHC - Com medo. Se você fosse banqueiro, você ia emprestar dinheiro a quem? A quem te pede não, quem te pede deve estar na pior. E os que não precisam, os que têm dinheiro, ficam assim: “Eu não vou fazer investimento novo”. Parou. O problema na crise começou como crise financeira, de imóveis, mas hoje está no consumo. Os mercados encolheram. E vão ter que encolher, porque, com o tal descolamento entre a base produtiva e o crédito, as finanças, nós estamos ajustando. E, para ajustar, vai ter que dar uma encolhida muito grande. Está dando uma encolhida. Você pode dar liquidez que não adianta. Aí o governo diz: “Eu dei dinheiro ao banco e o banco não emprestou para ninguém”. Mas muito pouca gente quer, e os que querem não pagam. A inadimplência continua grande. Enquanto estivermos assim, não tem como acomodar esse processo. Vai ter problema. E eu não vejo como tenham atacado esse processo lá nos Estados Unidos. Aqui é diferente, aqui foi indireto, o que encolheu mais foi o mercado lá de fora. Aqui dentro começa agora. Você vê nesses últimos quatro meses a curva de desemprego deu uma subida. E a massa real de renda caiu. Então, isso vai diminuir o consumo. E, quando você diminui o consumo, aumenta ao desemprego. Embora o governo esteja fazendo duas coisas: dando dinheiro para o consumidor, ou diminuindo o imposto para o consumidor. Não adianta muito, porque, para quem consome, no mês seguinte acabou. Comprou, acabou. E o governo perde receita fiscal. E está dando dinheiro para salvar empresas, aí à larga. Se você está com dificuldade, está salvo. Desde que seja grande. É válido. Eu entendo até, diante das circunstâncias tão dramáticas.
ÉPOCA – É a forma política de gerir a economia...
FHC - Eu acho difícil que, a longo prazo, isso dê certo.
ÉPOCA – O presidente Lula tem essa simpatia nos círculos internacionais. O Obama falou que ele é o cara...
FHC - Estava exagerando (risos). Mas enfim, de qualquer maneira...
ÉPOCA – O senhor é amigo do Clinton, foi em Camp David. Essa relação pessoal, isso pode ser bom para o governo, é bom para o país?
FHC - Os países não se movem por sentimentos, nem dos presidentes, nem de ninguém. Eles se movem por interesses. Então isso é relativo. Obviamente, em certas circunstâncias ajuda. Por exemplo, com a relação que eu tinha com o Clinton, eu podia telefonar para ele com mais liberdade, ele também.
ÉPOCA – Deu para pleitear coisas?
FHC - Ah, deu, deu. Por exemplo, tanto eu como o Ricardo Lagos tentamos ajudar a Argentina com o Bush. Não conseguimos, havia muito preconceito com o governo argentino. Aí foi complicado o negócio. Então, que ajuda, ajuda. É decisivo? Não é. Do ponto de vista da percepção, da valorização do país, ajuda. Por acaso, li hoje um artigo que os autores me mandaram sobre a diplomacia brasileira. Ele mostra que, a partir do meu governo e com o do Lula, mudou o estilo por causa disso. Porque os presidentes são mais ativos no relacionamento. E aí já muda, porque obviamente a visibilidade do país começa a se relacionar com o desempenho do próprio país.
ÉPOCA – Na verdade, não é o desempenho que cria tudo isso?
FHC - Esse desempenho em vários setores. A democracia é importante, manter a democracia, ter uma economia aberta.
ÉPOCA – O senhor vê algum risco para a democracia do Brasil?
FHC - Não.
ÉPOCA – E de a gente desabar, de nossa economia ir para o buraco?
FHC - Eu acho que não agora. Não acho, por causa do mercado interno, das nossas políticas públicas. O Estado brasileiro, ao contrário do que se pensa, é um Estado equipado. Qual é o problema? Tem vários. Mas, quando você está em uma situação econômica de escassez, ou em uma situação fiscal ruim, o Estado fica onipotente. Por exemplo, quando eu fui ministro da Fazenda, estava tudo no chão. Não tinha nada. Você não tinha cálculo possível. Você não sabia quem devia quanto a quem no país. Cada Estado com um débito, débito na Caixa Econômica, uma loucura, inflação enorme. Então, o Estado fica parado, dá a impressão que tudo é uma porcaria. Você põe em ordem, você vê que tem um Estado, tem uma estrutura. Essa estrutura fica lá, fica amortecida às vezes com processos políticos, mas tem, tem concursos. Você tem o Itamaraty, tem as Forças Armadas, tem toda a burocracia do Banco Central, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica. Tem o lado muito menos eficiente dos ministérios sociais – mas se começou a corrigir isso com cursos de gestores. Polícia. Eu reabri curso de Polícia Federal. Estava fechado. Melhorou a qualidade da polícia. Então, quando você tem, como o Lula, a possibilidade de ampliar mais ainda o custo, você vê que o Estado respondeu. O problema agora é o oposto, acho que você desprofissionalizou o Estado por uma questão partidária. O Estado, incluindo as empresas estatais. As nomeações são do PT. Isso é uma espécie de cupim. Está comendo, ninguém vê, quando você vê, o livro acabou. Está comendo a máquina pública. Mas, de qualquer maneira, temos uma burocracia razoável. O Brasil tem, o Chile tem. O México, mais ou menos, mas tem. Colômbia tem. Argentina nunca teve. Uruguai tem. É curioso, o Peru não tem. E ter ou não ter uma burocracia com capacidade para definir e implementar políticas públicas faz a diferença. Porque você tem armas para atuar. E o Brasil tem uma outra coisa que as pessoas notam pouco, mas é importante: nós temos um sistema nosso de poupança, para fazer capital aqui. O centro financeiro funciona. Você poupa em reais, não poupa em dólares. E o governo toma emprestado em reais, não em dólares. Olha, isso era um inferno no meu tempo, eu dizia para o pessoal, FMI, banqueiros internacionais, agências de rating. “Ah, a dívida interna está crescendo muito”. Eu esqueço a dívida interna. A dívida interna no máximo dá em inflação. Não dá calote. O calote é interno. Pelo Collor ter feito o calote, caiu, porque o calote é em nós. Como é que se beneficia o governo brasileiro: nós temos dinheiro no banco, esse banco pega e compra títulos do governo. Nós somos credores do governo brasileiro. A população brasileira. Não são os bancos em si, mas quem tem conta em banco, quanto maior a conta, mais você é credor. De qualquer maneira, isso é feito internamente. Na Argentina, quando eles deram o calote, arrebentaram os italianos, os espanhóis. No México, os americanos. Aqui não, a poupança é interna.
ÉPOCA – Uma ideia que o tempo todo que o senhor está falando: a gente tem um caminho meio próprio, né. A gente se autofinancia, a gente se abre, mas não e abre muito...
FHC - Comparativamente sim. Tem outra coisa: o Brasil, pela distância que está dos polos, é um subpolo. O Chile é um país que avançou, mas não é polo, não pode ser polo, pelo tamanho. Aqui, nós temos agricultura, e muito boa. O pessoal só falava da reforma agrária e estava havendo a revolução agrícola. Isso sim, foi o meu tempo. Nós que forçamos a acabar com a dívida do Banco do Brasil, que é uma sede do financiamento rural, demos força para a Embrapa, o BNDES financiou a modernização da frota. Então, tem uma boa agricultura. Nós temos indústria, que aumentou muito.
ÉPOCA – A gente sempre protegeu essa indústria, nunca expôs totalmente.
FHC - Não, sempre. Quando houve a privatização, sempre houve a preocupação que os setores não ficassem só na mão dos estrangeiros. Veja as telecomunicações. Uma parte brasileira. Siderurgia, papel e celulose.
ÉPOCA – E tem a história dos bancos. Os bancos estrangeiros vieram para cá e se deram mau.
FHC - Se arrebentaram. Quer dizer, aqui tem uma capacidade produtiva que tem sua musculatura. E isso está ligado também à capacidade tecnológica nossa. Universidades. Nós temos universidades. O pessoal fala mal, fala mal, mas temos universidades. Tem alguma coisa que alimenta esse processo. Isso é uma coisa que não se construiu do dia para a noite, vem vindo. Da vinda da corte para cá, que trouxe as instituições estatais portuguesas. Olha aqui, uma vez eu convidei o Jorge Sampaio, presidente de Portugal, para assistir a um desfile de 7 de setembro. É tradição, você convida algum presidente. No 7 de setembro, quando estava desfilando a tropa, o locutor dizia: “Esse batalhão regimento Andrade Neves foi formado por provisão de sua majestade a rainha Maria I” – que nasceu em Portugal. E veio para cá. Quer dizer, tem estruturas públicas. E, quando eu digo público, é além do estatal. As empresas estatais brasileiras sempre foram quase todas do mercado, tiveram mercado. Não todas, os Correios não. Mas a Petrobras e o Banco do Brasil, sempre tiveram ações. Volta Redonda, Siderúrgica Nacional, no mercado. As telefônicas, sabe quanto por cento o governo tinha quando nós privatizamos? 19,5%.
ÉPOCA – Era o maior acionista...
FHC - Era o maior e tinha o bloco de controle. E tinham feito uma privatização sem ninguém saber. Você comprava o telefone e vinha uma ação. Dez ações. Alguém mais esperto ia lá e comprava suas ações, você vendia por nada. Boa parte foi privatizada na surdina. O controle não, nós privatizamos 19%. Porque já era, já estava no mercado.
ÉPOCA – A Petrobras é meio assim.
FHC - Na Petrobrás, a maioria não é do governo. Ele tem o controle. Quando você vai no México, não é assim. A Pemex não é assim. Então a Pemex faz o que fizeram agora na Venezuela. A Pemex faz um duto direto dela para o Tesouro Nacional. A carga tributária do México é 17, 18%. E isso não é possível. Por que faz isso? Porque tudo o que a Pemex ganhar vai para lá.
ÉPOCA – Mas só agora tiraram a Petrobras da conta do superávit.
FHC - Só agora tiraram. Mas então você tem certas especificidades. A Índia tem as especificidades dela; o Japão tem as suas. Você pensar que o sistema capitalista é uma coisa homogênea é um equívoco. As regras de mercado estão aí, mas as instituições são historicamente construídas. O Japão não é assim. O Japão sempre teve um sistema de proteção ao trabalho diferente do resto do mundo. Como é que chamam? Job for life. A estabilidade na mão da empresa, não tinha regra do governo para isso. A Índia eu não conheço bem, mas a Índia tem outro sistema. A gente pensa que tudo é o capitalismo anglo-saxão. Não é assim.
ÉPOCA – Vai diminuir essa hegemonia cultural do pensamento anglo-saxão?
FHC - Eu acho bom, porque você vai ter mais diversidade no mundo. Isso você vai ver, a globalização não é a expansão do capitalismo anglo-saxão. É outro engano, não tem nada a ver com imperialismo. A globalização foi uma revolução tecnológica que juntou todas as economias: a chinesa, a japonesa, a nossa, a coreana. Só não junta mais a cubana porque não deixam. A americana, a europeia e tal. Então, não vai desaparecer globalização nenhuma. Pode desaparecer a hegemonia cultural do modelo particular dentro desse sistema mais global. Isso dá mais espaço de respiração. Então, provavelmente dentro dos anos 2020, o Brasil vai poder respirar com mais tranqüilidade. E aí nós temos uma vantagem também, se esse mundo for para maior diversidade e governos menos fechados. Eu não penso num governo global, mundial não: tem que ter estruturas que possam se conectar e desconectar. Nós aí temos uma vantagem cultural: é aqui o verdadeiro melting pot. Não são os Estados Unidos, é o Brasil. Você, pela cara, não sabe quem é brasileiro. Mas não é só isso. Você tem preconceito, tem nos Estados Unidos também, tem em toda parte. Mas você não tem aqui segregação, nem uma cultura diferenciada. Não há uma cultura branca e uma cultura negra. Não tem. Você não tem uma comida branca e uma comida negra. A comida nossa é uma confusão, é brasileira. Nesse sentido, nossa capacidade plástica é maior. O que não é mau também. Nós somos bastante diversificados aqui dentro, mas tem um ponto de unificação. Lá, você vai num restaurante que tenha música negra, que tenha soul music ou um tipo de jazz. Aqui mistura na cultura, o que eu acho bom. Você vê que pessimista eu não sou.
ÉPOCA – Pois é, eu estava tentando pegar um pessimismo aí, mas não achei não.
FHC - Esse americano que veio aqui, esse professor, ele disse: “Eu sou pessimista. Eu vou fazer uma análise pessimista”. E ele é mesmo. Nada vai dar certo.
ÉPOCA – Eles adoram, né? Tem um nicho de mercado para isso.
FHC - É o que eu disse, como eu sou o único pessimista lá na China, eu vou para tudo quanto é seminário. Todo mundo lá: “A China tem um futuro brilhante”, e eu: “Não tem”. Aqui no Brasil é variável, mas a maioria acha que não vai dar certo. Eu acho que vai dar certo.