domingo, 16 de agosto de 2009

Pelo desarmamento nuclear global

Jornal do Brasil

16/08/2009

O controle de armas pertence a uma era em que uma visão absolutista da soberania do Estado prevaleceu.

Mary Kaldor, OPENDEMOCRACY

Nos últimos anos, um novo movimento antinuclear surgiu liderado por antigos políticos e autoridades da era da Guerra Fria.

Eles querem livrar o mundo das armas nucleares e apresentaram propostas para atingir esse objetivo que nada mais é que uma questão não resolvida quando estavam no poder. Se eles quiserem ser bem-sucedidos em seu objetivo principal, precisam ser complementados por um movimento antinuclear composto de cidadãos e políticos da era emergente global que poderia desenvolver uma nova série de propostas voltadas para contestar formas ultrapassadas de pensar em armas nucleares.

Esse novo movimento foi lançado em um artigo no Wall Street Journal em janeiro de 2007 assinado por George P.Shulz, William J. Perry, Henry A. Kissinger, e Sam Nunn pedindo um mundo livre de armas nucleares. Um artigo posterior em janeiro de 2008 ofereceu propostas mais detalhadas para atingir a meta. Mikhail Gorbachev respondeu de forma entusiasmada no Wall Street Journal (31 de janeiro de 2007) e depois organizou uma série de encontros dentro do sistema do Fórum Político Mundial, que ele fundou. A iniciativa também foi adotada por políticos, com posição similar, de outros países como a Grã-Bretanha (Malcolm Rifkind, Douglas Hurd, David Owen e George Robertson no The Times de 30 de junho de 2008), Itália (Corriere della Sera de 24 de julho de 2008), Alemanha (Helmut Schmidt, Richard von Weizäcker, Egon Bahr, e Hans Dietrich Genscher no International Herald Tribune de 9 de janeiro de 2009), e Polônia (Aleksandr Kwasniewski, Tadeusz Mazowiecki e Lech Walesa no Moscow Times de 7 de abril de 2009).

Em dezembro de 2008, a campanha Global Zero foi lançada pedindo um “acordo verificável que gere obrigações legais, incluindo todos os países, para eliminar as armas nucleares até uma data determinada”. Seus signatários formam uma lista de nomes famosos, incluindo muitos que defenderam vigorosamente armas nucleares nos últimos anos da Guerra Fria, como Richard Burt, conselheiro nuclear de Reagan, ou Zbigniew Brzezinski.

As propostas feitas para atingir a meta de se ter um mundo livre de armas nucleares, até agora, envolveram amplamente diferentes variantes das abordagens a seguir: Reduzir e desativar armas nucleares americanas e russas. Elas são responsáveis por 95% dos mísseis nucleares do mundo; então, faz sentido que quaisquer reduções comecem com elas. Na verdade, os números despencaram de forma constante por meio de uma série de acordos desde o fim da Guerra Fria e o acordo mais recente para reduzir mais os números foi assinado pelo presidente Obama e o presidente Medvedev na primeira visita do americano a Moscou. Como uma determinada proporção dessas armas consiste de mísseis balísticos baseados em terra e em submarinos prontos para serem lançados em poucos minutos, o mundo seria claramente um pouco mais seguro se fossem postos em termos de jargão ‘modo reativo’ com um pouco mais de tempo de alerta e tempo de decisão.

Controlar e reduzir estoques de explosivos e materiais nucleares.

Há uma quantidade enorme de detritos nucleares que restaram da Guerra Fria; nem todos estão computados e alguns não estão seguros e pouco controlados. Devido a novas preocupações com o terrorismo, há grandes temores sobre o acesso desses estoques por atores não estatais ou que os mesmos sejam transacionados em comércio ilegal.

Mais responsabilidade, transparência e segurança são necessárias.

Fortalecer o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) e implementar o Tratado Compreensivo de Proibição de Teste Nuclear (CTBT na sigla em inglês). O TNP, criado para evitar a proliferação de armas nucleares, será revisto em 2010. Fortalecer o TNP significaria levar o ponto desarmamento do TNP mais a sério e aumentar o monitoramento de programas civis.

O CTBT foi adotado pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1996, mas não entrará em vigor até um número suficiente de Estados com armas nucleares ratificarem o tratado.

Essas propostas não podem somente reduzir os riscos de acidente, erros ou roubo de armas nucleares, mas também contribuir para uma rede de tratados e mecanismos transnacionais para monitoramento e verificação, que poderia identificar Estados numa rede multilateral de relações reduzindo por si só as ameaças nucleares. Elas seriam uma forma de atingir o que o senador Nunn, numa conferência sobre “Superação de Perigos Nucleares”, no Ministério de Relações Exteriores em Roma, em abril de 2009, chamou de base para um

Há uma quantidade enorme de detritos nucleares que restaram da Guerra Fria

Fortalecer o TNP significaria levar o ponto desarmamento do TNP mais a sério e aumentar o monitoramento de programas civis.

mundo livre de armas nucleares.

Mas como isso pode ser conseguido? A maioria dessas propostas tem origem no período em que novos ativistas contrários a armas nucleares eram políticos e quando sua preocupação principal era reduzir os riscos da corrida armamentista nuclear e preservar as capacidades das potências nucleares existentes. Isso foi a essência do que era então conhecido como “controle de armas” em vez de medidas de desarmamento. Reduções de explosivos nucleares americanos e russos ainda vão deixar os dois países com capacidade nuclear suficiente para destruir o mundo várias vezes.

O TNP e o CTBT são feitos para restringir o desenvolvimento de armas nucleares de novas potências, mas, de fato, legitimar arsenais existentes.

Na verdade, poderia até se argumentar que endossando implicitamente o status nuclear das grandes potências, eles representam um incentivo para potências emergentes como Irã ou Coreia do Norte para adquirir armas nucleares. As propostas para proteger e limitar estoques nucleares são criadas para evitar que a capacidade nuclear caia em mãos erradas e proteger os estoques de potências nucleares existentes.

Mas não conseguem evitar a fabricação de materiais para armas pelo Irã, ou, um exemplo mais complexo, a exportação de know-how nuclear por elementos perigosos do Paquistão.

Propostas de controle de armas são baseadas numa compreensão estadista geopolítica do mundo. A posse e a ameaça implícita para usar armas nucleares estão associadas a uma visão absolutista da soberania do estado. A posse de armas nucleares implica uma prerrogativa absolutista da parte dos estados de arriscar as vidas de seus cidadãos em larga escala, para não mencionar cidadãos em outros países, sem discussão ou debate públicos prévios. O uso de armas nucleares constituiria assim uma violação inimaginável dos direitos humanos e, com isso, a implicação da posse deles é que estados têm o direito de infligir uma violação inimaginável.

Na Europa, onde a maior parte das armas nucleares ainda é americana, nem mesmo os estados europeus têm esse caráter absolutista, mas sim o presidente americano que se permitiu pôr em risco as vidas dos cidadãos europeus. O problema com propostas de controle de armas é que elas tratam as armas nucleares como se fossem parte do arsenal normal dos estados – elas naturalizam as armas nucleares. E ainda assim não podemos atingir a meta sem mudar essas hipóteses fundamentais e sem repensar as implicações de ter armas nucleares no mundo globalizado atual.

As propostas do sistema geopolítico de controle de armas estão totalmente em divergência com a mudança de caráter da soberania numa era global. Agora, tendemos a pensar em soberania como condicional – tanto nas relações com outros estados e respeito por regras multilaterais do jogo quanto no consentimento doméstico e respeito por direitos humanos. É em vez disso estranho, na verdade anacrônico, que tenhamos negociado proibições de minas terrestres ou bombas cluster uma vez que essas armas violam os direitos humanos e o direito humanitário internacional devido a sua natureza indiscriminada – e ainda assim tratamos as armas nucleares como se fossem legítimas. Se quisermos atingir nosso objetivo, precisamos apresentar propostas que transformem a questão de armas nucleares em uma questão humanitária e que exijam coragem e liderança da parte dos políticos se eles quiserem apoiá-las.

É fácil o suficiente estar a favor de livrar o mundo das armas nucleares ao mesmo tempo em que se apóia a manutenção de armas nucleares nacionais desde que a meta final dependa de acordo global. Até Mahmoud Ahmadinejad ou Kim Il Jong estariam provavelmente a favor da declaração global zero, se perguntados. A parte difícil é como chegar a esse acordo global.

Além do impasse Tenho três propostas. Primeiro de tudo, acho que tanto o uso de armas nucleares quanto a ameaça do uso devem ser criminalizados. Ambos devem ser tratados como crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, devendo ser incluídos na jurisdição do Tribunal Penal Internacional.

Isso foi proposto por ONGs na Convenção pela Paz para pressionar as autoridades por causa do tratado que estabeleceu o Tribunal Penal Internacional, e foi apoiado pelo Movimento dos Não-Alinhados e pela Índia, em particular. Além disso, o CICV (Comitê Internacional da Cruz Vermelha) favoreceu uma proibição geral de armas que "causam ferimentos supérfluos ou sofrimento desnecessário" ou que são "intrinsecamente indiscriminadas" (ou seja, que não podem ser distinguidas entre combatentes e não-combatentes) algo que já faz parte do direito humanitário internacional.

Como Chinkin e Singh deixam bem claro no seu parecer sobre a substituição dos mísseis Trident, a ameaça ou o uso de armas nucleares viola o direito internacional humanitário por causa da exigência “inegociável” de que seja estabelecida uma distinção entre combatentes e não-combatentes. Entretanto, o estatuto final que institui o Tribunal Penal Internacional (o Tratado de Roma) não fez qualquer referência a armas nucleares ou a armas biológicas e químicas, embora tenha mencionado algo sobre aumentar o número de balas, de armas venenosas, de gases venenosos, e de materiais similares, relegando todas as outras armas a um eventual futuro anexo. Agora é o momento de relançar esta proposta.

O parecer consultivo do Corte Internacional de Justiça (CIJ), que, em 1996, considerou as armas nucleares ilegais, exceto (de acordo com as regras do presidente da corte) no caso de sobrevivência do Estado (um aval implícito das prerrogativas do Estado absolutista), também deve ser submetido a revisões.

Em segundo lugar, as armas nucleares deveriam ser eliminadas do mundo inteiro. Em outras palavras, a ideia de zonas livres de armas nucleares deve voltar a ser promovida.

Já existem tratados que garantem a existência de áreas livres de armas nucleares na África e na América Latina e muitos países declararam não ter mais nenhuma arma nuclear. Aqueles que foram ativos nas campanhas contra as armas nucleares na década de 1980 irão se lembrar do movimento em prol do estabelecimento de cidades nuclearmente desarmadas. Em particular, deveria ser possível que houvesse novamente uma zona europeia livre de armas nucleares.

Isso significaria acabar com armas nucleares táticas dos EUA na Europa, bem como com as armas nucleares britânicas, francesas e russas (tendo em mente a parte europeia da Rússia). (Curiosamente, no artigo dos ex-políticos alemães há um apelo à remoção das armas nucleares táticas dos EUA da Alemanha proposta que parte das iniciativas de controle multilateral que os ex-políticos costumavam favorecer). O Egito propôs criar uma zona sem armas de destruição em massa no Oriente Médio e isso também deve ser mais explorado.

A terceira proposta é especificamente dirigida à Grã-Bretanha.

Parece bastante absurdo para a maioria de nós que a Grã-Bretanha tenha sido acusada pelo regime iraniano como o principal agente no comando da atual onda de agitação, resultante das eleições fraudulentas.

Isso significa que a Grã-Bretanha ainda é vista como um importante pilar de poder pelos radicais do Irã.

Por que a Grã-Bretanha não deveria se aproveitar disso para negociar? Será que a Grã-Bretanha seria capaz de deixar de lado a dissuasão nuclear independentemente se o Irã desistisse ou não do enriquecimento de urânio e do reprocessamento de plutônio? Sempre é dito que não é possível voltar no tempo para “deixar de inventar” as armas nucleares. Isso é verdade, mas a capacidade de construir uma arma nuclear não reside em um único indivíduo, e sim em uma infra-estrutura social que envolve uma complexa combinação de habilidades, conhecimentos e equipamentos específicos, e somente os estados têm a capacidade de criar essas infraestruturas. Hoje, o maior medo da população é que os terroristas se apossem dos materiais nucleares e isso pode ser extremamente perigoso em locais como o Paquistão ou a Ásia Central. Entretanto, os terroristas não poderiam construir suas próprias infraestruturas, porque precisariam ter acesso aos estados. Assim, a melhor maneira de evitar que isso aconteça é, de fato, desmantelar a infraestrutura nuclear global de forma que permita uma extensa monitoração e verificação internacional.

Talvez a tarefa mais importante seja romper a ligação entre as armas nucleares e o status de grandes potências algo que implicaria em uma mudança profunda no discurso público global. Mas isso não pode ser alcançado apenas por meio do apoio bem-intencionado dos antigos políticos que ainda estão imersos na concepção estadista. Precisamos de uma nova geração de políticos, diplomatas e cidadãos que compreendam perfeitamente o que aconteceu no mundo de hoje, no que tange ao fato das armas nucleares estarem se tornando uma metáfora para o poder militar em geral. Na sociedade atual, como resultado das despesas militares, os EUA perderam poder tanto no plano econômico quanto no campo político.

A força militar tem se revelado ineficaz no Iraque e no Afeganistão, onde se tornou evidente que, assim como com as armas nucleares embora seja possível destruí-las, não dá para persuadir alguém a agir da maneira que queremos. As armas nucleares só representam poder se as pessoas acreditam realmente nisso.

Basta uma mudança de mentalidade para colocar fim a essa era. Precisamos agora de propostas que não possam ser facilmente aceitas, forçando, assim, um debate.

*Mary Kaldor é professora de governança global da London School of Economics (LSE) e integrante do grupo de estudo de segurança humana que se reporta a Javier Solana, chefe de Política Externa da União Europeia. Este artigo foi publicado originalmente no site <>

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