Folha de S. Paulo
15/08/2009
Legislação, aceno de presidente a xiitas, é tachada de "bárbara" por Human Rights Watch
Candidata à Presidência afirma que lei que permite a marido negar abrigo a mulher que não o satisfizer é um "incentivo ao estupro"
IGOR GIELOW, do ENVIADO A CABUL
Oito anos após a queda do governo do Taleban, os direitos femininos ainda engatinham no Afeganistão. Há apenas duas candidatas entre os 41 nomes que disputam a eleição presidencial do dia 20, e o Parlamento acaba de passar uma legislação vista como bárbara por entidades internacionais.
"Estou aqui para dar esperanças. Mas não vou governar só para mulheres, e sim para todo mundo", disse a médica Furozan Fana, 40, uma das candidatas. "Eu acho que temos muitos assuntos, a começar pelos direitos das mulheres. Há muita violência. Veja essa lei, vamos ter de analisá-la melhor."
Ela se referia às perguntas de repórteres ocidentais sobre relato da Human Rights Watch de que o Parlamento aprovou discretamente lei permitindo homens a negar comida e abrigo às mulheres que não quiserem satisfazê-los sexualmente.
Segundo a ONG de direitos humanos, o texto estabelece ainda que mulheres precisam de permissão dos maridos para trabalhar, permite que estupradores fiquem impunes caso paguem o "dinheiro de sangue" da vítima e confia a guarda dos filhos aos homens da família.
"Isso é o convite ao estupro. O islã não aceita isso", disse Fana. Ela ressalvou, sintomaticamente para um país cheio de divisões étnicas, que a lei era "só para os xiitas" -que compõem 20% dos 28 milhões de afegãos.
Os líderes dessa comunidade pressionaram o governo de Hamid Karzai a trabalhar pela lei no Parlamento no começo do ano, mas a grita internacional fez o presidente dar o assunto por encerrado. Como se viu, em nome de apoio dos xiitas à sua candidatura à reeleição, Karzai fez com que seus aliados aprovassem a lei no fim de julho.
Fana conversou com a Folha no Baghe Zanana, o Jardim das Mulheres. É um lugar que de certa forma resume a condição feminina afegã: atrás de muros no centro de Cabul, mulheres podem tirar as burcas, brincar com crianças e fazer compras nas cerca de 20 lojinhas locais.
Ontem, roupas e chá eram vendidos lá para cerca de cem mulheres. Algumas usavam burca, a maioria, apenas panos leves ou nada na cabeça. Como a estudante Jamila Aslan, 18.
"Eu adoro vir aqui, gostei de ver que há uma candidata mulher, mas meu voto é para o doutor [Ashraf] Ghani. Ele é o único que entende do país", disse ela, que vai votar pela primeira vez e apoia o ex-ministro da Fazenda, que aparenta não ter chances reais no pleito, mas tem os planos para o país mais apreciados pelos ocidentais.
Segundo dados da Rawa (Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão), a principal ONG feminista do país, episódios como o da lei provam que o país está longe de ser justo com suas mulheres.
Para a entidade, a educação continua sendo o maior desafio. Os dados são da virada do século, e não há nada melhor para se trabalhar no momento, mas indicam que cerca de 80% das mulheres afegãs são analfabetas -um número consistente com o que acontece em áreas tribais paquistanesas. Entre homens, são cerca de 50% que não sabem ler ou escrever.
"Enquanto nós não curarmos isso, não curaremos a violência nas áreas tribais", diz a candidata Fana, viúva de um ministro dos Transportes do governo Karzai assassinado há alguns anos. Segundo pesquisas disponíveis, essa mãe de uma menina tem algo entre 1% e 2% das intenções de voto.
Ela diz não ter sofrido ameaças durante a campanha, mas é significativo que ela conceda suas entrevistas atrás dos muros do Jardim das Mulheres e com duas picapes com policiais armados a protegê-la -talvez não por acaso, eles acabaram expulsos pelas mulheres locais, irritadas com a confusão eleitoral na sua tarde da folga semanal de sexta no refúgio.
Candidata à Presidência afirma que lei que permite a marido negar abrigo a mulher que não o satisfizer é um "incentivo ao estupro"
IGOR GIELOW, do ENVIADO A CABUL
Oito anos após a queda do governo do Taleban, os direitos femininos ainda engatinham no Afeganistão. Há apenas duas candidatas entre os 41 nomes que disputam a eleição presidencial do dia 20, e o Parlamento acaba de passar uma legislação vista como bárbara por entidades internacionais.
"Estou aqui para dar esperanças. Mas não vou governar só para mulheres, e sim para todo mundo", disse a médica Furozan Fana, 40, uma das candidatas. "Eu acho que temos muitos assuntos, a começar pelos direitos das mulheres. Há muita violência. Veja essa lei, vamos ter de analisá-la melhor."
Ela se referia às perguntas de repórteres ocidentais sobre relato da Human Rights Watch de que o Parlamento aprovou discretamente lei permitindo homens a negar comida e abrigo às mulheres que não quiserem satisfazê-los sexualmente.
Segundo a ONG de direitos humanos, o texto estabelece ainda que mulheres precisam de permissão dos maridos para trabalhar, permite que estupradores fiquem impunes caso paguem o "dinheiro de sangue" da vítima e confia a guarda dos filhos aos homens da família.
"Isso é o convite ao estupro. O islã não aceita isso", disse Fana. Ela ressalvou, sintomaticamente para um país cheio de divisões étnicas, que a lei era "só para os xiitas" -que compõem 20% dos 28 milhões de afegãos.
Os líderes dessa comunidade pressionaram o governo de Hamid Karzai a trabalhar pela lei no Parlamento no começo do ano, mas a grita internacional fez o presidente dar o assunto por encerrado. Como se viu, em nome de apoio dos xiitas à sua candidatura à reeleição, Karzai fez com que seus aliados aprovassem a lei no fim de julho.
Fana conversou com a Folha no Baghe Zanana, o Jardim das Mulheres. É um lugar que de certa forma resume a condição feminina afegã: atrás de muros no centro de Cabul, mulheres podem tirar as burcas, brincar com crianças e fazer compras nas cerca de 20 lojinhas locais.
Ontem, roupas e chá eram vendidos lá para cerca de cem mulheres. Algumas usavam burca, a maioria, apenas panos leves ou nada na cabeça. Como a estudante Jamila Aslan, 18.
"Eu adoro vir aqui, gostei de ver que há uma candidata mulher, mas meu voto é para o doutor [Ashraf] Ghani. Ele é o único que entende do país", disse ela, que vai votar pela primeira vez e apoia o ex-ministro da Fazenda, que aparenta não ter chances reais no pleito, mas tem os planos para o país mais apreciados pelos ocidentais.
Segundo dados da Rawa (Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão), a principal ONG feminista do país, episódios como o da lei provam que o país está longe de ser justo com suas mulheres.
Para a entidade, a educação continua sendo o maior desafio. Os dados são da virada do século, e não há nada melhor para se trabalhar no momento, mas indicam que cerca de 80% das mulheres afegãs são analfabetas -um número consistente com o que acontece em áreas tribais paquistanesas. Entre homens, são cerca de 50% que não sabem ler ou escrever.
"Enquanto nós não curarmos isso, não curaremos a violência nas áreas tribais", diz a candidata Fana, viúva de um ministro dos Transportes do governo Karzai assassinado há alguns anos. Segundo pesquisas disponíveis, essa mãe de uma menina tem algo entre 1% e 2% das intenções de voto.
Ela diz não ter sofrido ameaças durante a campanha, mas é significativo que ela conceda suas entrevistas atrás dos muros do Jardim das Mulheres e com duas picapes com policiais armados a protegê-la -talvez não por acaso, eles acabaram expulsos pelas mulheres locais, irritadas com a confusão eleitoral na sua tarde da folga semanal de sexta no refúgio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário