segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Atravessadores de um direito

Carta Capital

17/08/2009

A anistia aos estrangeiros irregulares virou um negócio lucrativo

POR LUIZ ANTÔNIO CINTRA

O espírito da lei – como dizem os juristas – era facilitar a vida dos imigrantes irregulares e sem antecedentes criminais, que consigam comprovar a entrada no País até o dia 1º de fevereiro deste ano. Por isso o custo para dar início ao processo para formalizar a anistia na Polícia Federal foi fixado em 96 reais em taxas, muito inferior à anistia passada, de 1998, quando o custo por pessoa era de mais de 250 reais.

De modo a abranger o maior número possível de estrangeiros, o governo federal, ao regulamentar a lei, reduziu ao mínimo a burocracia, levando em conta os elevados padrões nacionais, com os formulários acessíveis pela internet. Com isso, estrangeiros hoje à margem do Estado, sem acesso à saúde, educação e garantias trabalhistas mínimas, teriam como sair da clandestinidade. Estima-se que desta vez o número total de anistiados poderá chegar a 50 mil, mas o cálculo ainda é precário. Na anistia patrocinada pelo governo FHC, 35 mil foram beneficiados.

Aprovada em julho, a lei dos imigrantes irregulares virou, no entanto, um negócio para instituições ligadas às colônias estrangeiras e "empreendedores" individuais que preferem manter-se no anonimato.

Trata-se de um negócio que poderá faturar mais de 10 milhões de reais até dezembro, quando expira o prazo para a entrada da documentação que permitirá a obtenção do visto provisório de 24 meses, o primeiro passo para o visto permanente, cujo processo costuma levar anos. E a custo baixo, o que confere rentabilidade ao negócio, composto pelos computadores e atendentes capazes de seguir as orientações do site da Polícia Federal, em geral com ao menos um capaz de falar espanhol, mandarim ou inglês, conforme o público-alvo.

Na semana passada, Carta Capital foi a três desses locais - dois deles funcionavam em entidades ligadas à colônia chinesa, a Associação Cultural Chinesa do Brasil e a Associação Geral dos Cantoneses do Brasil, ambas na região central de São Paulo. O preço cobrado variava entre 150 e 300 reais para orientar os imigrantes sobre os documentos necessários e ajudá-los a preencher as guias de recolhimento de tributos. Somados às taxas, o valor total chega a 400 reais por pessoa - o equivalente ao salário pago a bolivianos e paraguaios por indústrias de confecção.

Em seguida, eram indicados os passos seguintes, de responsabilidade do candidato ao visto - pagar duas taxas em um banco e levar os comprovantes, o formulário disponível na internet e a certidão de nascimento do país de origem, traduzida por tradutor juramentado e reconhecida na embaixada brasileira do País de origem, para a Polícia Federal, o que só pode ser feito pelo próprio imigrante.

"A lei aprovada é positiva, simples, mas abriu essa brecha ao criar o agendamento eletrônico. Como muitos imigrantes não têm acesso à internet ou não dominam o português, eles não vêem outra opção a não ser pagar", diz a advogada Ruth Camacho, assessora jurídica da Comissão Pastoral do Migrante, ligada à Igreja Católica. "A cobrança em si talvez não seja uma ilegalidade, mas levando em conta a situação dessas pessoas é algo a ser lamentado", avalia a advogada.

A própria Pastoral criou, em sua sede, também na região central da cidade, um serviço de apoio aos imigrantes. E pede àqueles que possam contribuir que colaborem com 20 reais pelo serviço, para ajudar a cobrir os custos com papel, impressoras e funcionários. A Polícia Federal também abriu um escritório especial para atender os imigrantes, na mesma região.

Na segunda-feira 17, a Secretaria Nacional de Justiça assinará um convênio com a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de São Paulo para dar treinamento ao pessoal que trabalha nos pontos públicos de acesso à internet, chamados telecentros. Com isso, os governos federal e municipal pretendem se contrapor aos que decidiram faturar com a iniciativa.

"É absurdo, desumano, é como tentar comercializar a solidariedade. Quando o projeto de lei aprovado no Congresso foi regulamentado pelo Executivo, reduzimos os custos por saber que essas pessoas, quase sempre, não têm condições de gastar muito", afirma o secretário nacional de Justiça, Romeu Tuma Júnior. Tuma pretende encaminhar à PF um pedido para que investigue quem está por trás da venda de facilidades.

Autor do projeto de lei, o deputado federal William Woo (PSDB-SP) considera a cobrança "uma questão ética", e não necessariamente uma ilegalidade. "Soube de casos em que as pessoas estavam usando o meu nome, dizendo que eram meus assessores, mas é mentira. As orientações que dou em meu escritório são gratuitas. O fato é que existem aproveitadores em todos os lugares, mas a lei do mercado vai acabar levando esses preços a cair." Woo diz acreditar que essa situação é ainda mais grave em outros estados, especialmente na região de fronteira.

Para Ruth Camacho, falta até aqui uma maior divulgação da lei, em canais apropriados. "As três esferas de poder deveriam promover uma maior divulgação da lei de anistia. E preciso propaganda adequada dos locais em que esse serviço pode ser feito sem custos exorbitantes."

Ainda que tenha sido bem recebida, a nova lei de anistia não é vista como uma panaceia para todos os males que afligem os imigrantes no Brasil. Especialistas em direitos humanos acompanham a tramitação no Congresso do projeto de legislação que substituirá a Lei do Estrangeiro, elaborada ainda durante a ditadura, em 1980. Inspirada em argumentos que pretensamente zelavam pela segurança nacional, dificulta a obtenção de vistos permanentes e proíbe a organização e manifestação política.

Os imigrantes também se queixam das dificuldades para ser atendidos nas representações regionais da Polícia Federal, onde muitas vezes os funcionários não estão habilitados a falar uma segunda língua.

Ao que tudo indica, a nova lei do estrangeiro também será mais favorável aos imigrantes, o que reforçará a tendência de o País seguir no sentido contrário ao da maioria das nações ricas, hoje ocupadas em reduzir a presença dos imigrantes em seus territórios. Com um total de aproximadamente 900 mil imigrantes regularizados - 0,5% da população brasileira -, o Brasil é relativamente pouco procurado.

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