Época
10/08/2009
Murilo Ramos e Juliano Machado
América Latina
Um acordo que aumenta a presença americana na Colômbia desagrada aos países vizinhos e influencia a competição pela venda de caças ao Brasil
O principal assessor dos Estados Unidos para Assuntos de Segurança, James Jones, tinha uma missão quando desembarcou em Brasília na semana passada: pressionar o governo brasileiro a dar preferência a 36 caças supersônicos da Boeing, em uma disputa bilionária contra a francesa Dassault e a sueca Gripen. Além da oferta de transferência de tecnologias contidas na aeronave, trazia na manga uma carta de duas páginas que a secretária de Estado americana, Hillary Clinton, escreveu para o ministro brasileiro das Relações Exteriores, Celso Amorim.
No documento, a que ÉPOCA teve acesso, Hillary diz que o avião americano F-18 supre com folgas as exigências da Força Aérea Brasileira e que os Estados Unidos estão interessados em expandir a cooperação bilateral – não apenas pela venda de armas. No fim da carta, Hillary despede-se de Amorim de forma bastante coloquial. Diz querer encontrá-lo em breve no Brasil. Jones só não desconfiava de que tudo isso seria posto em segundo plano diante da saraivada de perguntas a que foi submetido sobre outro assunto: a concessão de uso de até sete bases militares da Colômbia para as Forças Armadas dos EUA.
A forte presença americana na Colômbia não é novidade. Desde o fim da década passada, a Casa Branca estreitou as relações no campo militar com Bogotá, tentando combater o narcotráfico na fonte para proteger os cidadãos americanos na outra ponta. A novidade é que, pelo novo acordo, os Estados Unidos poderão usar as bases por dez anos e contar com até 1.400 pessoas entre militares e civis. A secretária americana para o Controle de Armas e Segurança Internacional, Ellen Tauscher, disse a ÉPOCA que no fundo não há grande mudança. “Os EUA e a Colômbia trabalham juntos há mais de dez anos. O que existe são tentativas da Venezuela de criar problemas a um governo que está no começo (o de Barack Obama)”, afirmou. “Detalhamos às autoridades brasileiras o que está acontecendo na Colômbia e as razões do acordo.”
Apesar da justificativa americana, de que as bases serão usadas para o combate ao narcotráfico e ao terrorismo, como já era feito, a diplomacia brasileira considerou os argumentos de Jones insuficientes. O próprio presidente colombiano, Álvaro Uribe, esteve por duas horas com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva na semana passada, em Brasília – após um périplo por Bolívia, Peru, Paraguai, Argentina e Uruguai –, para tranquilizá-lo sobre o acordo e as intenções americanas na região.
A exemplo de Jones, Uribe não teve sucesso pleno. Após o encontro, Amorim disse que o Brasil respeita a soberania colombiana, mas que o acordo deve se restringir à Colômbia e seus termos devem ser mais transparentes. Preocupa o Itamaraty a existência de uma base (Apiay) com soldados americanos a apenas 450 quilômetros da fronteira com o Brasil. Tamanha proximidade inspira temores do lado brasileiro, como a possibilidade de uso de tecnologia militar para espionar a Amazônia e a facilidade para uma eventual incursão americana.
Outra questão envolve o alcance da estrutura americana. Um estudo recente da Força Aérea americana afirma que o Comando Militar Sul dos EUA, responsável pela América Latina, “passou a se interessar em estabelecer um local tanto para ações contra narcóticos como para operações de mobilidade”. A base de Palanquero é citada como uma opção. Dali, um avião C-17, destinado a transporte de carga e pessoal, poderia cobrir metade do continente sem reabastecer. As tais “operações de mobilidade” é que intrigam os militares e diplomatas brasileiros.
O documento cogita o “acesso” ao aeroporto do Recife como base intermediária de abastecimento de aeronaves com destino à África. Mas os próprios americanos sabem que na prática isso seria difícil. “A relação política com o Brasil não é conducente aos acordos necessários”, diz o texto. O especialista em assuntos militares Gunther Rudzit, que foi assessor do Ministério da Defesa do Brasil entre 2001 e 2002, afirma que só quem vê os EUA como uma ameaça enxerga riscos à soberania brasileira nesse documento. “Mas há uma corrente importante das Forças Armadas que pensa assim”, diz. Após a dissolução da União Soviética, segundo Gunther, os militares brasileiros deslocaram sua preocupação da ameaça comunista para a ameaça às riquezas naturais brasileiras, das quais os EUA poderiam ser os “saqueadores”.
O assessor especial da Presidência da República para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, reforça a tese do descontentamento brasileiro com o acordo entre os EUA e a Colômbia. “Bases estrangeiras na região aparecem um pouco como resquício da Guerra Fria. A Guerra Fria acabou”, diz. Há também a preocupação de que as bases americanas ensejem novos conflitos entre países da região, como a incursão colombiana no Equador, em março do ano passado, para combater grupos das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc). Um diplomata brasileiro que pediu anonimato diz que “certamente a inteligência americana esteve por trás daquela operação”.
A celeuma ganhou destaque em razão das declarações do presidente da Venezuela, Hugo Chávez. Acusado por Bogotá de municiar as Farc com armas antigas, Chávez afirmou que Uribe usou o caso para encobrir sua negociação com a Casa Branca. Chávez disse ainda que a Venezuela se sente ameaçada e ameaçou “ir a Moscou comprar vários tanques modernos”. Chávez suspendeu a importação de 10 mil veículos colombianos e pode desistir de comprar alimentos do país vizinho.
Boa parte da insatisfação no continente vem da falta de comunicação prévia do acordo, o que foi visto como uma atitude deselegante, quase hostil. “O que esperar da administração Obama se alguns procedimentos são idênticos aos da era Bush?”, diz uma autoridade brasileira. O assunto deve voltar à cena nesta semana na reunião da União das Nações Sul-Americanas (Unasul), no Equador. A anunciada ausência de Uribe é vista como mais um gesto de quem dá prioridade a Washington, e não aos vizinhos.
Apesar dos protestos, Estados Unidos e Colômbia não pensam em recuar. No fim do ano, os EUA vão perder uma base em Manta, no Equador, por decisão do presidente equatoriano, Rafael Correa, aliado de Chávez. Para a Colômbia, o acordo ajuda a pressionar o Congresso americano a aprovar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, pretendido há muitos anos. Uribe já demonstrou insatisfação por não ter o mesmo status comercial com os EUA que o vizinho Peru, que firmou o acordo com Washington ainda no governo de George W. Bush.
O caso das bases pode prejudicar os Estados Unidos naquela que era a principal tarefa de James Jones em Brasília: a venda dos caças da Boeing ao Brasil. A assessora Ellen Tauscher diz que são assuntos diferentes. Não é o que concorrentes da empresa americana pensam. “Há uma clara intenção dos Estados Unidos de aumentar sua influência. Se o Brasil escolher o F-18, os pilotos serão treinados por americanos e os equipamentos a comprar passarão pelo crivo deles”, diz o diretor de vendas da Gripen, Bob Kemp. Os franceses da Dassault, preferidos do ministro da Defesa, Nelson Jobim, ganham pontos ao se manter afastados da polêmica. Pelo visto, Jones terá de dar muitas explicações, e Hillary terá de caprichar nas próximas cartas.
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