quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Ex-relator especial da ONU para direitos humanos no país classifica sentença de Nobel da Paz como “farsa jurídica”

Correio Braziliense

13/08/2009

Entrevista - Paulo Sérgio Pinheiro

Ex-relator especial da ONU para direitos humanos no país classifica sentença de Nobel da Paz como “farsa jurídica”

Rodrigo Craveiro

Entre 2000 e 2008, o diplomata Paulo Sérgio Pinheiro, de 65 anos, atuou como relator especial da Organização das Nações Unidas para a situação dos direitos humanos em Mianmar. O brasileiro testemunhou os horrores de um regime militar que massacrou qualquer tentativa de liberdade de expressão e impediu os 48 milhões de habitantes (89% de budistas) de usufruirem de seus direitos econômicos e sociais. Na capital, Yangun, ele visitou prisões onde 6 mil pessoas se amontoavam— em grande parte, críticos da ditadura.

Em entrevista ao Correio, por e-mail, Pinheiro criticou a condenação de Aung San Suu Kyi, vencedora do Prêmio Nobel da Paz em 1991. A ativista de 64 anos foi sentenciada a mais 18 meses de prisão domiciliar, na terça-feira, e decidiu apelar da sentença. Suu Kyi passou 14 dos últimos 20 anos sem poder sair de casa. Para Pinheiro, a Junta Militar comandada pelo general Than Swe decidiu manter a secretária-geral da Liga Nacional da Democracia, partido de oposição, inapta a disputar as eleições de 2010.

O diplomata não vê chances de mudança no país do Sul da Ásia. “Falemos às claras: a situação em Mianmar não é prioridade na agenda internacional da União Europeia ou dos EUA”, afirmou. Pinheiro divide seu tempo entre São Paulo, Washington e Providence (EUA), onde é professor de relações internacionais da Brown University. Também atua como Comissionado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Mundo ignora Mianmar

Como o senhor analisa a condenação de Aung San Suu Kyi pelo regime birmanês? Foi uma tentativa do regime de Yangun de impor-se perante o Ocidente?
A manutenção de Aung Suu Kyi na prisão militar, pela Junta Miliar, não foi surpresa. O pretexto do nadador invadir a casa da Prêmio Nobel, por meio de um lago, nos fundos da residência, caiu como uma luva para o projeto da ditadura militar de manter a secretária-geral da Liga Nacional da Democracia — o principal partido de oposição — fora das eleições do próximo ano. A recente decisão de deixá-la por mais 18 meses em prisão domiciliar, por meio de um tribunal de exceção e sem garantia do devido direito à lei, foi uma pantomima jurídica, uma farsa jurídica. A Junta Militar mostrou resistência à opinião pública internacional. A Junta demonstra que o antigo processo de transição para a democracia nada mais é do que um processo de consolidação de um regime autoritário. Uma Constituição imposta, um referendo de brincadeira convocado no meio do tufão, com resultados de 97% a favor da ditadura.

De que modo a comunidade internacional deve atuar em represália à condenação?
Falemos às claras: a situação em Mianmar não é prioridade na agenda internacional da União Europeia. Nem para os EUA, às voltas com o Iraque, o Afeganistão, a Coreia do Norte e os territórios palestinos ocupados por Israel. Como não é prioridade, a comunidade internacional reage espasmodicamente. Não há coordenação de políticas, nem consistência, nem consenso. Às vezes, tem-se a impressão de que as democracias ocidentais — que conseguem desenvolver relações tão cordiais com as mais ferrenhas tiranias — não são capazes de aprofundar uma diplomacia discreta para lidarem com o regime de Mianmar.

Como forçar a libertação da Prêmio Nobel da Paz?
Isso só pode ser atingido com uma combinação de negociação, diplomacia discreta, reafirmação de posições principistas de direitos humanos (não dá para uma democracia europeia fazer coro com protestos e apoiar a manutenção de suas empresas no país) e descoberta de pontos de cooperação positiva com a Junta em favor da sociedade. O critério que conta é saber se as políticas podem ter benefício para vítimas de violações dos direitos humanos. Não importa o interlocutor.

Que violações mais o chocaram durante suas visitas ao país?
O elenco vai desde as violações das mais básicas liberdades civis e políticas, até um desprezo pelos direitos econômicos e sociais da maioria esmagadora da população. O quadro se complica pela manutenção de um conflito armado contra etnias na região leste do país, com todos os horrores da guerra: exploração das populações, crianças soldados, estupros, execuções sumárias, tortura, detenções arbitrárias. Chocante foi a pesada repressão aos monges e cidadãos que se rebelaram contra a ditadura, em setembro e outubro de 2007. Numa semana, num só local que visitei havia 6 mil detidos. Os que se revoltaram foram presos, torturados e julgados sumariamente, recebendo penas pesadíssimas por terem feito o que as democracias no mundo esperavam que eles fizessem: reivindicar os direitos civis e políticos pacificamente.

Qual seria a receita para a transição da democracia?
A receita inclui liberalização, desmilitarização do controle do poder, diálogo, concertação, apoio da ONU, Constituinte, eleições, controle civil do governo.

O que é ser um morador em Yangun, na sua opinião?
É não ter nenhuma liberdade, ser permanentemente vigiado. É não ter voz no processo político, não ter acesso à imprensa livre, não poder participar da política. Deve-se perder a impressão de que a situação em Mianmar é patológica. Trata-se de uma ditadura militar convencional, patética.

O Brasil pode atuar de que modo em relação a Mianmar?
Dadas as relações positivas que o Brasil tem hoje com a China, o Brasil pode contribuir para que a China — como potência global e regional — venha a desempenhar um papel positivo nessa transição. O Brasil é considerado um honest broker, um interlocutor válido, nos órgãos da ONU, como no Conselho de Direitos Humanos e na Assembleia Geral. O Brasil pode e deve apoiar os bons ofícios do secretário-geral da ONU e o Conselho de Direitos Humanos em relação a Mianmar. Se o Brasil deseja se tornar uma potência, certamente a situação de Mianmar merece estar em nossa agenda internacional.

O MENSAGEIRO DIVINO
Em maio de 2008, o norte-americano John William Yettaw, um mórmon de 54 anos, conseguiu alcançar a casa de Aung San Suu Kyi por meio de um lago, situado nos fundos. Na ocasião, disse que estava numa missão divina para salvar a ativista que cumpria prisão domiciliar. A bizarra visita de Yettaw levou a Junta Militar de Mianmar a condenar a Nobel da Paz a mais 18 meses de detenção. Yettaw, por sua vez, foi sentenciado a sete anos de prisão com trabalhos forçados. Os Estados Unidos criticaram ambas as penas.

A comunidade internacional não esteve à altura daqueles monges, dos jovens, das donas de casa, dos cidadãos que enfrentaram tanques, baionetas, bombas e enormes riscos”

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