quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Requiescat in pacem

Valor Econômico

08/01/2009

José Carlos de Assis

Exceto por alguns delirantes economistas de mercado que ainda teimam em não reconhecê-lo, o neoliberalismo está morto enquanto ideologia dominante do capitalismo globalizado. A questão política e intelectualmente instigante passa a ser: por quanto tempo? Será que renascerá adiante, assim como renasceu o velho liberalismo que se acreditava morto e enterrado pela Grande Depressão dos anos 30, assim como pelos gloriosos anos keynesianos do Pós-Guerra na Europa Ocidental social-democrata?

O professor Delfim Netto acha que a crise atual não passa de mais um ciclo especulativo, e que, normalizando-se as coisas, outro ciclo especulativo virá à frente, com novos surtos de "criatividade" financeira. Aliás, assim tem sido na história do capitalismo. Nesse caso, o neoliberalismo ficará de tocaia por algum tempo e atacará de novo no futuro. Voltará como ideologia justificadora de um capitalismo que não conhece barreiras para seus apetites e que está destinado a ser o parteiro permanente da história.

Minha convicção, ao contrário, é que, agora, a morte do neoliberalismo é definitiva. Uma estocada perfurante bem no lugar do coração do vampiro. A razão disso situa-se menos nas tendências da economia mundial, em si, e mais no seu contexto. Se fosse apenas pela economia, poder-se-ia prever que, depois de uma fase de forte regulação, ressurgissem pressões desregulatórias tais como em fins de 70 e início dos 80, em nome da flexibilização dos investimentos e da defesa da riqueza monetária.

Antes de avançar, porém, e para evitar ambigüidades, vou dizer exatamente o que entendo por neoliberalismo: é o sistema econômico que advoga o Estado mínimo e a desregulação dos mercados, assim como políticas monetárias e fiscais restritivas em qualquer situação do ciclo econômico, tudo no sentido de reduzir ao mínimo a carga fiscal dos ricos e a ameaça de que essa carga venha a aumentar no futuro por conta de déficits públicos. A idéia filosófica subjacente é a da liberdade irrestrita, nos termos de Hayek.

À vista dessa definição, não é difícil justificar porque o liberalismo ressuscitou nos anos 70. O contexto era de Guerra Fria. Os Estados Unidos, como potência hegemônica do Ocidente, superpunham seus interesses estratégicos e geopolíticos a qualquer outro. O liberalismo foi bramido como arma contra a ditadura soviética, e, nesse contexto, recuaram para segundo plano a regulação capitalista que estava por trás da social democracia. Apenas um punhado de idealistas opunha restrições ao desastre ambiental já em curso, e não havia nenhum limite moral à vista para o desenvolvimento científico no campo, por exemplo, da genética.

Era um mundo totalmente diferente do mundo cujas portas se abrem diante de nós. No plano filosófico, exceto por alguns pensadores idealistas, não se punha em dúvida a liberdade irrestrita de produção, de consumo, de modo de vida, de pesquisa. Foi sobre os alicerces dessa liberdade irrestrita que se lançaram de novo as fundações ideológicas do livre mercado como um valor absoluto, supostamente capaz de promover o desenvolvimento humano e a prosperidade infinita dos povos.

Tornou-se supérfluo argumentar agora sobre quão vãs eram essas promessas para a esmagadora maioria da humanidade na América Latina, na África e em grande parte da Ásia. Entretanto, poucos se deram conta da precariedade da base filosófica neoliberal. O fato novo é que descobrimos, enquanto pertencentes à espécie humana, que quanto mais avança nossa liberdade política, mais delimitado fica o campo de nossa liberdade de ação individual. Isso parece evidente na economia e no campo ambiental, mas já se reflete também na geopolítica e na pesquisa científica, em especial na biologia.

Com a generalização da democracia de cidadania ampliada, é virtualmente impossível voltar ao marco neoliberal num futuro previsível. Trata-se de algo paradoxal, pois o "normal", numa dialética rasteira, seria que o funeral neoliberal fosse feito a partir de uma nova ordem autoritária. Acontece que a democracia já deu provas cabais de sua capacidade de regular o capitalismo, e, no caso europeu, só cedeu ao saudosismo liberal nos anos 70 pelas razões peculiares mencionadas acima, e que provavelmente nunca voltarão.

Somos democracias de massa, não as democracias elitistas ou as ditaduras que conduziam a maioria dos países na maior parte do Século XX. Nas democracias de cidadania ampliada, a opinião pública conta. Não só isso: as instituições contam. Não importa que grande parte da população não vote, o fato relevante é que as instituições do Estado de Direito, para se legitimarem, atuam em seu nome. Ancorados em instituições democráticas, a regulação dos mercados e o respeito ao meio ambiente são definitivos.

É preciso ter presente que estamos diante de uma nova ordem, impelida pelo princípio da cooperação. Não se trata de um impulso subjetivo de boa vontade, de uma tomada de consciência individual de valores humanos essenciais, ou da busca da paz como valor em si. Esses impulsos humanos generosos estão presentes, sim, desde o início da civilização. Mas a novidade é que estão agora objetivados numa base inter-subjetiva na democracia de cidadania ampliada. É nesse sentido que, enquanto durar a democracia, o (neo)liberalismo econômico se tornou página virada na história. Requiesecat in pacem!

José Carlos de Assis é economista e professor, autor, entre outros livros, de "A Crise da Globalização", recém lançado pela Editora MECS.

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