O Estado de São Paulo
07/01/2009
Mario Cesar Flores
Mario Cesar Flores é almirante-de-esquadra (reformado)
Há cerca de 50 anos líderes redentoristas de países árabes, entre eles o protagônico presidente Nasser, do Egito, procuraram estruturar uma união alicerçada num ideário pan-arabista cuja motivação ideológica, inspirada no passado de relevância árabe, pretendia a superação da hegemonia ocidental. Seu passo mais audacioso foi a união política Egito-Síria, desfeita em curto prazo em razão das diferenças de interesses, perspectivas e objetivos dos dois países. Vivemos hoje uma paródia sul-americana do pan-arabismo, um pansul-americanismo estimulado por motivação similar à do antiocidentalismo árabe: o anti-império da retórica do presidente Chávez, clone ideológico de Nasser.
À semelhança do pan-arabismo antiocidental, de escassa compatibilidade com a plenitude democrática, também o pansul-americanismo anti-império está sendo mais bem aceito em países de regimes salvacionistas de tendência autoritária, travestidos de democracia por práticas em tese democráticas, viciadas por lideranças populistas messiânicas. O ideário pansul-americanista que Chávez associa ao seu socialismo bolivariano é adverso ao Primeiro Mundo, em particular aos EUA, na contramão do realismo sensato da frase do presidente da Guiana na reunião da Cúpula dos Países Latino-Americanos e do Caribe, Sauipe/2008, particularmente aplicável ao Brasil: “Somos parte do mundo...” Na sua habitual estigmatização do capitalismo, Chávez afirmou, naquela reunião, que “o socialismo nunca esteve tão vivo... morto está o capitalismo”. Essa afirmação, alheia à realidade da China, por exemplo, não faz sentido no nível internacional, em que os países se conduzem por interesses e objetivos por vezes incompatíveis com a utopia igualitária pressuposta no socialismo.
Tal como o pan-arabismo e seu antiocidentalismo, que tencionava reviver o passado de esplendor árabe, nosso pansul-americanismo e seu anti-império procura valorizar o indigenismo, haja vista sua receptividade em países sob forte influência política indígena - Bolívia e Equador -, embora as duas situações sejam radicalmente distintas: o arabismo foi relevante na história, na política, na ciência, na cultura e na religião, ao passo que mesmo o povo sul-americano de maior realce - os incas -, adiabático em seu território limitado, não deixou herança influente no mundo, como deixaram os árabes.
A implantação concreta do pansul-americanismo está sendo inibida por problemas divisionistas similares aos que prejudicaram o pan-arabismo: as percepções nacionais distintas quanto à nebulosa meta ideológica anti-império/antiglobalização, esta paradoxal no mundo inexoravelmente globalizado. E as diferenças nas concepções, nos objetivos e interesses do desenvolvimentismo: a mistura petrodolarizada de estatismo-assistencialismo do socialismo bolivariano na Venezuela, a combinação liberal-estatista-assistencialista no Brasil, o liberalismo no Chile, praticado por sua esquerda consciente da realidade, o populismo à Perón na Argentina, o cepalismo ainda atuante em alguns países, e por aí vai. Tudo isso contaminado por impulsos ideológicos unilaterais, como o refletido na rejeição categórica à Alca, proferida pelo presidente Chávez: se ela conviesse a outros países, como ficaria a união pansul-americana?
Nesse quadro de perspectivas, concepções, interesses e objetivos diferentes é natural que grassem divergências como são - para citar algumas em evidência - os tropeços conflituosos inibidores do avanço do Mercosul, que se estenderão ao Mercosul sul-americanizado, se ele vier a ocorrer, a pretensão paraguaia de revisão de Itaipu, a ameaça aos agricultores “brasiguaios”, o imbróglio do gás boliviano, atitudes hostis a empresas brasileiras e capital brasileiro (nacionalizações na Bolívia, conflitos com empreiteira brasileira no Equador, calotes) e as “papeleiras” do Uruguai (Argentina x Uruguai). Esse quadro de dissensos, ainda um tanto influenciado por anacrônicos resquícios históricos, é vulnerável à ocorrência de contenciosos de natureza política - como o recente episódio Colômbia-Equador/Farc - e até territorial, em recesso, mas não mortos. Insere-se aí a questão da influência relativa dos vários países na região e dela no mundo, o peso do Brasil, indigesto para alguns (hoje particularmente a Venezuela de Chávez, mas quantos países sul-americanos realmente apoiam o Brasil como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU...? É mais fácil vê-los na Europa). Questão em que o Brasil procura praticar sua propensão natural de forma conciliatória, vez ou outra nuançada por discreto viés populista anti-EUA e a Venezuela procura fertilizar sua intenção com seus petrodólares - estratégia cuja revisão compulsada pela queda do preço do petróleo provavelmente usará a eleição de Obama e o fim da era do “satânico” Bush, para justificá-la...
Em suma: além da ameaça inerente aos ímpetos de regimes democráticos permeados por desvios populistas autoritários, o multilateralismo consensual implícito no pansul-americanismo é difícil também em razão do cenário de países que, à diferença da União Europeia, resistem soberana e ciosamente em seus interesses, perspectivas e objetivos distintos, se não até adversos. Essa dificuldade é evidenciada nos frágeis desempenhos e resultados das várias organizações e reuniões pretensamente unificadoras - a melancólica Aladi, o Mercosul, o Pacto Andino, o Grupo do Rio, a Unisul, a Cúpula dos Países Latinos e do Caribe, a Alternativa Bolivariana para as Américas, a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica, agora o Conselho de Defesa e a projetada Organização dos Estados da América Latina e Caribe, negativista anti-EUA (quem sabe, no futuro, uma OEA também sem o Brasil: afinal, já fomos império, malvisto pelas repúblicas vizinhas...). Não é por falta de organizações e reuniões que a união avança lentamente, aos trancos e barrancos.
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