sábado, 10 de janeiro de 2009

Depois do massacre

Folha de São Paulo

10/01/2009

CÉSAR BENJAMIN
Os países do Oriente Médio reivindicam culturas antigas, mas, com exceção do Irã, são construções políticas artificiais

NA AURORA da modernidade, a formação dos Estados nacionais e do sistema interestatal foi a solução que a Europa encontrou para pôr fim a guerras religiosas que já duravam mais de cem anos. O maior teórico dessa transição foi Hobbes: para terminar com a guerra de todos contra todos, era necessário instituir um poder de novo tipo, o Leviatã. Em vez de tentar impor algum princípio religioso ou moral, ele deveria situar-se acima das partes em litígio e legitimar-se apenas pela capacidade de garantir a paz, estabelecendo regras mínimas de convivência entre pessoas e grupos.
O advento da modernidade ocidental foi marcado pela separação de dois eixos -bem/mal e paz/guerra- que até então estavam misturados. Isso correspondeu à separação entre moral (remetida, em grande medida, à esfera privada) e política (doravante submetida à razão de Estado). Invocações de mitologias históricas, teologias, regras de comportamento ou argumentos afins deixaram de ser válidas para legitimar ações de natureza política, dado o risco de elas reiniciarem, em qualquer tempo, a guerra de todos contra todos. Nasceu o Estado moderno, um ente soberano, detentor do monopólio do uso legítimo da força.
Resolvido, em tese, o problema da paz nos territórios sob jurisdição estatal, restava tratar da paz entre diferentes Estados. Também aqui prevaleceu uma solução essencialmente política: o equilíbrio (ou balanço) do poder. Estabelecida na Europa entre o Tratado de Vestfália (1648) e o Congresso de Viena (1815), essa construção foi um processo histórico específico, não um caminho natural. Nunca prevaleceu nas regiões periféricas, pois nelas faltou o elemento-chave da soberania estatal. O caso do Oriente Médio é dos mais complexos e paradoxais. Berço de civilizações milenares, tudo ali, na esfera política, é criação recentíssima. Depois da dissolução do Império Otomano, em 1922, as potências europeias fabricaram países, tal como haviam feito na África, dividindo a maior parte da região entre duas famílias que deveriam inaugurar dinastias. A Inglaterra inventou o Iraque e a Jordânia, traçou em um mapa as fronteiras entre a Arábia Saudita e o Kuait, transformou o Egito em protetorado e abrigou, na Palestina, um Lar Nacional Judaico, precursor de Israel.
A França decidiu a atual configuração da Síria e do Líbano. Curdos e palestinos foram esquecidos. Os países da região reivindicam culturas antigas, mas, com exceção do Irã, são construções políticas artificiais, estruturalmente fracas, impostas de fora para dentro. O mapa regional ainda está sujeito a grandes alterações. Mitologias históricas e religiões impedem a autonomização da política, e a interferência dos Estados Unidos desequilibra o balanço do poder. A posição de Israel implica uma contradição insanável: é parte litigante, mas quer ser também Leviatã.
A herança colonial deu lugar a um equilíbrio instável, de tempos em tempos transmudado em guerras. Não sou otimista. No futuro, o cruel massacre a que estamos assistindo em Gaza poderá ser visto como uma escaramuça preparatória do grande conflito que está em gestação. Pois os interesses fundamentais de Israel e do Irã não têm um denominador comum. Mantidas as tendências atuais, a guerra é questão de tempo.
Abrirá uma crise internacional de proporções gigantescas: um, já portador de arsenal atômico, é aliado preferencial dos EUA; o outro, que desenvolve um programa nuclear, é o segundo maior produtor de petróleo. Depois de interromper o massacre, o mundo deve se esforçar para alterar esse rumo.

CESAR BENJAMIN , 53, editor da Editora Contraponto e doutor honoris causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de "Bom Combate" (Contraponto, 2006). Escreve aos sábados, a cada 15 dias, nesta coluna.

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