Folha de São Paulo
17/01/2009
A ONU tem se mostrado irrelevante para a obtenção da paz e da segurança mundial?
NÃO
Oscar Vilhena Vieira
EM 12 de setembro de 2002, George W. Bush desafiou a ONU com a seguinte disjuntiva: ou a organização autorizava a invasão americana do Iraque "ou se tornaria irrelevante". Como a ONU, por intermédio de seu Conselho de Segurança, não se curvou à ameaça do presidente norte-americano, suas resoluções foram simplesmente desprezadas. Da mesma forma, o reincidente Estado de Israel não tem apenas afrontado a Carta da ONU e desdenhado das múltiplas resoluções adotadas pelo Conselho de Segurança ou pelo Conselho de Direitos Humanos, mas feito a instituição alvo de seus ataques aéreos em sua investida em Gaza.
Mas, afinal, por que deveríamos nutrir a ilusão de que Estados soberanos, dotados de enorme capacidade de exercer a violência física, submeter-se-iam a uma organização internacional destituída de poderio militar, como a ONU?
À parte uma justificação de ordem moral kantiana, que me dispenso de desenvolver aqui, vislumbro ao menos duas razões de natureza realista, baseadas no autointeresse, para que Estados fortes se comprometam com uma organização como a ONU.
Primeiro, seria extremamente custoso obter a cooperação das demais nações só com base no exercício da violência. A criação de regras aceitáveis de convivência, respeitadas pelos próprios detentores do poder, tendem a aumentar a confiança no sistema internacional e ampliar a cooperação voluntária das demais partes.
Em segundo lugar, uma organização multilateral pode suprir dificuldades de coordenação em temas como paz, meio ambiente, deslocamentos humanos, pobreza, direitos humanos etc., canalizando responsabilidades de polícia internacional assumidas por poucos Estados.
Evidente que essas premissas apenas serão válidas quando o poder não for tão concentrado nas mãos de um ou poucos Estados, de forma que o custo de imposição de suas vontades pela força pareça irrisório em relação ao ônus da desobediência pelos pequenos Estados, tornando a existência de uma ONU irrelevante.
O fortalecimento das economias antes periféricas do Leste asiático, da Rússia, da Índia, do Brasil e particularmente da China, somado à crise do sistema financeiro dos países do Norte, criou uma situação nova de multipolaridade econômica. A participação das economias emergentes em termos de PIB já ultrapassou, ainda que ligeiramente, a dos países desenvolvidos. Os países emergentes devem concentrar mais de 60% do PIB em 2025 ("The Economist", 3/7/08).
Essa mudança tem tido forte repercussão sobre a reconfiguração do mapa político global. Se a ONU viu-se bloqueada no sistema bipolar da Guerra Fria e sucumbiu ao unilateralismo de Bush, agora se depara com um novo cenário. Nesse sentido, a ONU precisa ser reformada para atender à nova geografia do poder e ampliar sua efetividade política.
Obama e sua secretária de Estado, Hillary Clinton, já perceberam que não é mais possível garantir a segurança internacional e angariar a cooperação das demais nações pelo simples exercício da violência. Como disse Hillary Clinton no Senado americano, é necessário dar prevalência à diplomacia e à política multilateral em detrimento da pura força. A palavra de ordem é o "smart power". Os fracassos no Afeganistão e no Iraque deixam claro a impossibilidade de os EUA colocarem-se o poder único.
Um maior equilíbrio de natureza econômica, bem como uma maior dispersão do poder político, contribuirão necessariamente para o fortalecimento da ONU, tornando-a cada vez mais relevante no plano puramente político. Num mundo onde convivem muitos poderes e nenhum parece ser tão forte a ponto de subjugar os demais, a coordenação parece ser a única alternativa racional.
No plano moral, por sua vez, a ONU jamais foi irrelevante. Sua capacidade de articular temas de substantivo interesse de toda a humanidade fizeram dela uma instituição indispensável.
Portanto, o discurso sobre a irrelevância da ONU, além de politicamente equivocado, é moralmente indefensável. Interessa, sobretudo, aos tiranos de plantão.
OSCAR VILHENA VIEIRA, 42, é professor e coordenador do Programa de Mestrado em Direito e Desenvolvimento da Direito GV e diretor jurídico da Conectas Direitos Humanos.
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