quinta-feira, 8 de janeiro de 2009

Gaza sem Pétain

O Globo

08/01/2009

Demétrio Magnoli

No verão de 1940, após a queda de Paris, instalou-se em Vichy o regime colaboracionista do marechal Philippe Pétain. O governo de Vichy exercia autoridade civil sobre toda a França, inclusive o Norte, ocupado pelos alemães. A existência daquele regime, com raízes na vertente da direita francesa atraída pelo fascismo, propiciou à Alemanha uma liberdade de ação militar que não teria se fosse obrigada a posicionar tropas em todo o território francês. A sangrenta ofensiva de Israel é o substituto, pouco eficaz, de um Pétain que inexiste na Faixa de Gaza.

O premier Ariel Sharon promoveu, há três anos, a retirada das tropas e dos assentamentos israelenses de Gaza, concedendo autonomia ao governo da Autoridade Palestina (AP) presidido por Mahmoud Abbas. Diante do congelamento do processo de paz, o gesto descortinava o horizonte estratégico de perenização da soberania israelense sobre toda a Palestina histórica pela colaboração da AP com Israel. Sem forças militares acossadas permanentemente pelo levante palestino na língua de terra destituída de valor real ou simbólico, Israel poderia se concentrar no acalentado projeto de anexação a seu próprio território dos assentamentos na Cisjordânia.

Toda a estratégia ruiu em junho de 2007, em virtude da derrubada do governo de Abbas em Gaza pelo partido fundamentalista Hamas. Israel não pode ter os dois: deve escolher entre as concessões inevitáveis derivadas de um acordo de paz e os custos políticos e militares da ocupação física. Esta é a mensagem enviada pelo Hamas desde que se instalou no poder em Gaza e intensificou o lançamento de foguetes precários sobre o Sul de Israel.

O gabinete israelense de Ehud Olmert preferiu se iludir, insistindo na estratégia de Sharon. Para isso, fixou o objetivo utópico de impor a reunificação do governo palestino sob a AP. Na tentativa de apear os fundamentalistas do poder, Israel negociou apenas com Abbas, isolou diplomaticamente o Hamas e bloqueou as fronteiras de Gaza, ampliando o desemprego, a pobreza e o desespero de 1,5 milhão de palestinos. Sem sucesso: é possível escolher muitas coisas, mas não os representantes de outra nação.

Destacados políticos de Israel indagam, com genuína perplexidade, sobre as motivações dos ataques de foguetes do Hamas. A resposta é óbvia - e Israel deveria conhecê-la desde que, há meses, negociou um cessar-fogo provisório com os fundamentalistas: o governo de fato de Gaza exige ser reconhecido como interlocutor diplomático. Não há alternativa a isso, exceto a tragédia que seria a substituição do Hamas pelos jihadistas de Osama bin Laden. Sob os efeitos do bloqueio econômico israelense, a popularidade do governo de Gaza declinou até um limite perigoso e setores de suas brigadas militares entabularam contatos sigilosos com a al Qaeda. O reinício do lançamento de foguetes sobre Israel teve como motivação imediata a restauração da auréola de resistência que cerca o Hamas.

Não há solução militar para o impasse estratégico. As pilhas de cadáveres provocadas pelos bombardeios aéreos israelenses não servem como dissuasão para um partido fundamentalista que raciocina com base no conceito de martírio. A guerra do ar não pode evitar a continuação das salvas de foguetes. Já a invasão terrestre, com custos políticos incalculáveis, só interromperia os ataques pela reocupação permanente do território, algo intolerável para a opinião pública israelense e internacional. Uma alternativa seria derrubar o governo do Hamas e reconduzir Abbas para Gaza a bordo de um tanque de Israel. Mas, mesmo na hipótese improvável de que o presidente da AP embarcasse no tanque, um regime títere não sobreviveria à saída das tropas invasoras. Pétain representava um setor significativo da sociedade francesa; Abbas, hoje, é visto como pouco mais que um colaborador de Israel.

Dez anos atrás, perguntado sobre o que faria se tivesse nascido palestino, o então candidato a primeiro-ministro e atual ministro da Defesa, Ehud Barak, replicou: "Eu me uniria a uma organização terrorista." Ele estava errado, pois o terror é condenável de modo absoluto, em qualquer circunstância. Mas a sua resposta evidencia o absurdo da política conduzida por Israel, que tirou de cena cada um dos potenciais interlocutores palestinos, até sobrar apenas o Hamas. Arafat foi humilhado tantas vezes que se tornou um líder imprestável. Marwan Barghouti, o mais popular dos opositores nacionalistas de Arafat, um homem que condenou o terror no auge dos atentados suicidas, está preso desde 2002. A guerra contra o Hamas equivale a persistir num rumo que interessa exclusivamente aos jihadistas.

Israel repete sem cessar o mantra de que o Hamas se recusa a reconhecer o Estado judeu. É um argumento tão verdadeiro quanto irrelevante, se não se conhecem as fronteiras definitivas do Estado que exige reconhecimento. O Hamas já sugeriu o estabelecimento de uma trégua que se prolongaria "até o infinito" na hipótese de acordo para a constituição de um Estado palestino. O partido fundamentalista palestino não é a al Qaeda. Enquanto Israel emprega o rótulo "terror" para igualar bestas essencialmente distintas, Barack Obama abre um discreto canal de contato com o governo de Gaza.

Um ano atrás, Matan Vilnai, vice-ministro da Defesa israelense, pronunciou a palavra shoah, que evoca o Holocausto, para descrever o destino de uma Gaza que continuasse a servir de plataforma a ataques contra Israel. No mundo inteiro, propagandistas sem escrúpulos, inspirados pela sua frase raivosa, definem o bloqueio de Gaza e a guerra em curso como atos de genocídio. A meta histórica do antissemitismo, nas suas versões de direita e de esquerda, é fabricar uma identificação entre o Estado judeu e o Estado nazista. A deplorável estratégia de Israel confere uma película de verossimilhança à alegação dos mercadores do ódio.

DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.

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