Valor Econômico
09/01/2009
Maurício Almeida Prado
Diante da unânime constatação de que os mercados financeiros se descolaram totalmente da chamada economia real, gerando uma bolha financeira sem lastro, o mundo se pergunta por que esta dinâmica foi tolerada por tanto tempo, tomando a dimensão de que hoje começamos a conhecer. Também nos perguntamos como será o mundo no dia seguinte da crise, que ordem social e econômica prevalecerá. Este artigo procura refletir sobre essas duas questões.
Dois fatores nos ajudam a responder a primeira questão. O primeiro é que, de modo geral, não só os agentes financeiros aproveitaram do momento de riqueza gerada pela "exuberância" dos mercados financeiros. O mesmo se deu com empresas (vide o mercado de capitais brasileiro), governos, cidadãos e autoridades. Os indicadores sociais e econômicos globais dos últimos anos apontaram significativas melhorias, os repetitivos crescimentos dos PIBs (com destaque para os países emergentes) são um exemplo disso. Assim, enquanto todos estão ganhando e se enriquecendo, é pouco provável que ocorra uma mudança significativa de rumo. As poucas vozes dissonantes são consideradas aves de mau agouro.
O segundo fator a ser considerado são os consensos formados durante a fase de "exuberância" dos mercados. Bancos, clientes, investidores e autoridades reconhecem a existência de valor nos ativos simbólicos (como títulos do subprime, seguros, derivativos, etc) e legitimam a dinâmica existente. Estes consensos sociais são verdadeiros alicerces que legitimam e estruturam um modelo, e contribuem para a estabilidade do sistema. Os enormes volumes de recursos continuamente direcionados para o mercado financeiro realimentam a roda, e fazem com que a economia virtual cresça muito mais do que a economia real.
A quebra do paradigma se deu com a constatação de que os ativos simbólicos gerados no mercado imobiliário americano (títulos do subprime) estavam imensamente sobrevalorizados em relação ao valor real dos imóveis em questão. Esses ativos deixam de ser vistos como "valor" e passam a ser considerados como "risco". Em conseqüência, gera-se a suspeita sobre a saúde financeira de todos os agentes deste mercado (bancos, seguradoras, empresas do setor de hipotecas) e dos agentes que financiam ou que dependem deste mercado, e assim por diante. É o que chamamos de "crise de confiança".
Esta ruptura nos consensos sociais que legitimavam o modelo torna, subitamente, insegura toda a estrutura e a dinâmica dos mercados. Não só provoca o "pânico" nos mercados acionário e financeiro, com a enorme saída de recursos, como faz com que os próprios agentes financeiros deste mercado (bancos) não emprestem mais para outros agentes do mesmo mercado. No auge de insegurança volta-se para o paradigma do modelo anterior, ou seja, os ativos seguros são os tradicionais títulos do governo e investimento em ouro. Cabe dizer que esses ativos, considerados "seguros", também são legitimados por convenções sociais que reconhecem seu valor, pois se houver uma crise de confiança sobre os títulos do governo ou sobre o ouro, os respectivos valores despencarão tal como ocorrido com o mercado de ações.
Mas e depois da fase inicial da crise, quando os mercados se acalmarem, qual será a nova ordem sócio-econômica? Em pleno resgate da economia perpetrado pelos Estados, já se vislumbra alguns desdobramentos importantes e que devem marcar a ordem internacional nos próximos anos. São eles:
1) O enfraquecimento das ideologias econômicas; 2) O fortalecimento do papel do Estado; e 3) O aprofundamento da globalização.
A primeira constatação é a da falência das ideologias econômicas. É unânime a condenação do modelo de livre mercado e seus mecanismos de auto-controle. O liberalismo absoluto, como ideologia vencedora da guerra fria, está moribundo. Como as outras ideologias também falharam no teste da realidade, estamos diante da inexorável constatação da falibilidade dos modelos e dogmas econômicos como teorias que explicam e fixam os parâmetros de comportamento dos agentes econômicos. O pragmatismo deverá prevalecer nas decisões econômicas.
O capitalismo obviamente não vai acabar, mas vai se ajustar, se reinventar e prosseguir a partir de novos parâmetros.
Neste contexto, haverá uma mudança significativa no papel do Estado na economia. A solução encontrada para o resgate dos mercados é a intervenção direta dos Estados, aplicando imensos volumes de recursos para capitalizar e conferir liquidez ao sistema financeiro, e conferindo garantias legais aos investimento e poupança dos cidadãos comuns. Sem dúvida, a dimensão da intervenção do Estado na economia (ainda em curso) e a reivindicação (e aprovação) pública para sua interferência direta definirão uma nova legitimidade e um novo papel do Estado. Este papel passará por uma função reguladora mais abrangente e atuante, mas terá também repercussões políticas e sociais importantes.
Em terceiro lugar, a recessão que chegou e se aprofunda nos EUA mostra que este país não é a única potência mundial, não é capaz de definir isoladamente a ordem mundial, e talvez não seja capaz sequer de resolver sozinho os graves problemas com os quais se defronta.
Porém, mais do que os EUA, a crise financeira afetou diversos países e cidadãos nas mais diferentes localidades do globo, em suas várias esferas (profissional e pessoal). Hoje, um agricultor brasileiro está naturalmente preocupado com o fechamento das enormes fábricas de brinquedos da China, com a falência financeira da Islândia, com a capitalização de um banco holandês e com a queda do preço do petróleo, pois todos estes fatores afetarão a demanda e os preços agrícolas (que são definidos em mercados internacionais de commodities). Ou seja, há uma conexão profunda e inexorável entre as economias, empresas e cidadãos nos diversos países e nas mais diversas atividades; a globalização não é só um fenômeno institucional ou cultural, mas uma realidade pujante.
A consciência de uma realidade econômica profundamente globalizada alia-se à discussão sobre temas intrinsecamente globais como a questão ambiental (aquecimento global), a questão alimentar (fome global, produtos transgênicos), a saúde pública (Aids, gripe aviária), e a segurança (terrorismo). O eventual aumento do protecionismo econômico não mudará esta realidade. Neste ambiente globalizado há um papel fundamental para os Estados, que é o de organizar mecanismos ágeis e eficientes de atuação interestatal nos diversas perspectivas dos temas globais. Passa não só pela necessidade de recuperar as instituições multilaterais (FMI e ONU, entre outros), mas também o de aprimorar a atuação fora dos foros institucionais tradicionais. São exemplos desta atuação a coordenação de medidas entre bancos centrais e o papel decisório que o grupo do G-20 está procurando assumir tanto na criação simultânea de controles e regras convergentes sobre o mercado financeiro, como no aumento da cooperação nos âmbito das políticas públicas e judiciais.
Este mundo mais pragmático, integrado e com intensa atuação coordenada dos Estados, pode permitir a construção de novos mecanismos que transformem os riscos da insegurança em ativos da oportunidade.
Maurício Almeida Prado é doutor em direito internacional pela Universidade de Paris-X, professor da Fundação Getúlio Vargas, e sócio de L. O. Baptista Adv. Associados.
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