segunda-feira, 2 de março de 2009

Tony Judt e a crise econômica

Folha de São Paulo de 02 de março de 2009

Crise econômica abala crença no modelo ocidental



Além de abalar os fundamentos do modelo ocidental, a crise econômica enfraquecerá as instituições privadas em favor dos Estados e atiçará ímpetos racistas e xenófobos. É o que previu o historiador inglês Tony Judt, em entrevista por e-mail à Folha. Para Judt, o mundo está pagando o preço de ter dirigentes que não viveram a Grande Depressão dos anos 30 e, por isso, ignoraram os riscos da desregulamentação dos mercados.




FOLHA - A crise global é parte de um "ciclo natural" de desaceleração econômica?
TONY JUDT - Não faço a menor ideia. Mas tendo a concordar com a crítica da economia neoclássica de [John Maynard] Keynes, segundo a qual os padrões econômicos resultam sempre da decisão de intervir ou não intervir. Estão, portanto, sujeitos a ações de governo não naturais de contraciclo. Prova disso é o grande salto econômico e a estabilidade que sucederam a Segunda Guerra Mundial [1939-45]. Ciclos econômicos longos estão relacionados à memória: enquanto as pessoas tinham em mente a Grande Depressão dos anos 30, elas continuaram acreditando em intervencionismo governamental como forma de garantir emprego e benefícios sociais e prevenir a volta das políticas extremistas que acompanharam a crise. Nos anos 80 e 90, a maioria das pessoas ligadas à autoridade política e econômica não tinha lembrança direta do que havia sido aquela crise e, por isso mesmo, nenhuma razão para preservar ou defender instituições políticas e sociais criadas para prevenir seu ressurgimento. É muito simbólico que a crise tenha ressuscitado agora, no rastro da onda de desregulamentação do sistema de comércio e investimento bancário da década de 90, 60 anos após o New Deal ter sido criado justamente para evitar o colapso que estamos vendo hoje.

FOLHA - As sociedades ocidentais têm alguma reação padrão quando submetidas a crises econômicas ?
JUDT - Não há rastros históricos de comportamento coletivo de populações ocidentais submetidas a crises econômicas modernas. Na recessão dos anos 70, países como a Alemanha encorajavam trabalhadores estrangeiros a voltarem para os seus países, mas praticamente não havia agressões ou racismo. Na Grande Depressão dos anos 30, populações europeias se voltaram para partidos nacionalistas e/ou fascistas que prometiam fechar as fronteiras e reservar os empregos aos nativos. Mas naquela época as sociedades europeias eram etnicamente homogêneas, com pouquíssimos imigrantes da Ásia, África ou América do Sul, e o racismo era voltado principalmente contra minorias locais, como os judeus. A crise atual causou nos EUA uma brutal perda da fé no que até pouco tempo atrás eram clichês inabaláveis sobre as virtudes do livre mercado. E a crise certamente atiçou o debate sobre os imigrantes ilegais. Mas a diversidade física do país amortece as consequências de medo e da insegurança, pois boa parte das vítimas do desemprego já são negros ou minorias. O impacto sociológico depende da cultura política mas, principalmente, da atitude dos Estados. Quando governos, como atualmente o Reino Unido, a Dinamarca e a Suíça, dão suporte retórico à ideia de que estrangeiros representam uma ameaça aos empregos locais e ao sistema de Previdência social, então a violência verbal e às vezes física contra imigrantes acaba legitimada. Mas não há correlação automática entre crise econômica e aumento das tensões sociais. Na França, a raiva e o medo estão diretamente voltados contra o governo e as empresas, não contra outras pessoas.

FOLHA - As reações populistas e demagogas de alguns governos ocidentais têm precedente histórico?
JUDT - Hoje não há, ao contrário do passado, uma guinada significativa rumo ao protecionismo e a barreiras comerciais em larga escala. Mas o protecionismo humano está em alta: não vejo nenhum país europeu em que os partidos dominantes não tenham dado corda ao discurso que pretende "limitar" a imigração, restringir os empregos locais aos trabalhadores locais etc. Esta é uma reação de defesa natural diante de uma crise tão grande. Mas é também um sinal de que as siglas de centro estão apavoradas com a perspectiva de que os novos partidos populistas tenham cada vez mais poder na medida em que a crise se alastra.

FOLHA - O racismo está em alta?
JUDT - O racismo e a xenofobia na Europa estão aumentado há muito tempo. O surgimento, no cenário pós-Guerra Fria, de partidos nacionais demagogos na maioria dos países da Europa Central e do Leste significa que há um nicho natural para políticos que querem explorar o medo da concorrência, dos estrangeiros e da mudança. Não é por acaso que os países pequenos e prósperos do oeste e do norte da Europa são palco da mudança mais visível: é na Áustria, na Suíça, na Holanda, na Dinamarca e na Suécia que os partidos antiestrangeiros mais crescem. Uma razão é que esses países permaneceram mais "brancos" e homogêneos por mais tempo e eram prósperos o bastante para garantir sistemas de Previdência social muito confortáveis. Acho que estamos à beira de um salto do sentimento anti-imigrante na Europa ocidental e central, com um paradoxo: o de que os europeus centrais, tão empenhados em manter à distância turcos e demais não-europeus, são eles mesmos vistos como uma ameaça à prosperidade europeia pelos membros mais tradicionais da UE.

FOLHA - Há países mais ou menos sujeitos a distúrbios sociais?
JUDT - Países como Portugal, EUA ou Grécia, que nunca fizeram grande coisa em termos de benefícios sociais, são menos propensos a sofrer mudanças bruscas de humor.

FOLHA - Que instituições ganham e quais perdem com a crise?
JUDT - Os protagonistas em toda crise econômica são os Estados. Instituições puramente econômicas acabam tendo um papel menor, em grande parte por serem as primeiras responsabilizadas pela bagunça. Nos próximos anos o setor privado será menos admirado e respeitado do que nas últimas décadas. Já o papel da autoridade pública na gestão dos assuntos econômicos vai aumentar pela primeira vez desde os anos 60.
Uma consequência será o fortalecimento da autoridade de países como a China e o declínio do chamado modelo anglo-saxão. Isto não é necessariamente uma boa notícia: por mais equivocada que fosse a cultura de capitalismo irrestrito praticada no Ocidente nos últimos 20 anos, ao menos ela estava historicamente associada a valores como o Estado de direito e a liberdade e à relativa equidade social. Se os chineses, para mencionar o exemplo mais óbvio, conseguirem convencer o mundo de que a incompetência econômica americana reflete um defeito estrutural no modelo ocidental, teremos motivo de preocupação.
Eu adoraria dizer que órgãos internacionais como a ONU, o Banco Mundial ou algumas ONGs se fortalecerão com o rápido colapso da supremacia econômica e moral americana. Mas não acho que será o caso. Temo, em vez disso, que estejamos entrando numa era de insegurança na qual atores nacionais e regionais se voltarão para os seus próprios interesses em detrimento de parceiros e competidores mais fracos, e no qual protagonistas econômicos como o Banco Mundial e o FMI, desacreditados por associação às ideias que vinham defendendo, perderão influência.
Pode ser uma coisa boa. Espero que tenhamos assistido ao fim das lições do FMI sobre como "outros" países deveriam equilibrar seus Orçamentos e abrir seus mercados.

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