O Estado de São Paulo
09/03/2009
Eliana Cardoso
A Terra está sem governo. A era da globalização comercial e financeira estava prenhe de promessas, mas abicou em crise e mostrou que a mão invisível não coordena investidores com eficiência. Sem alguma forma de governo mundial chegará a vez e a hora da desglobalização, variante moderna da Idade das Trevas.
Desde o colapso do Império Romano, o mundo ocidental nunca foi capaz de se manter unido. É verdade que nos últimos 500 anos o Ocidente promoveu a unificação econômica e cultural do globo. Mas, em geral, incentivou a desunião política. Os conflitos se multiplicaram, porque o Ocidente se assenta em Estados nacionalistas. Na hora do aperto, cada um deles apela para o protecionismo. É quase impossível que mais de uma centena de Estados nacionais sejam capazes de coordenar a política mundial, que acaba por depender de um ou dois países líderes. Depois da Pax Britânica, a guerra fria dividiu a Terra entre os EUA e a União Soviética. Com a queda do Muro de Berlim, a hegemonia americana se afirmou, mas durou pouco. Hoje se fala no nascimento de um sistema inovador, no qual a decadência americana daria lugar ao regime multipolar.
Por enquanto, esse regime, em que a governança global seria dividida entre poderes emergentes, não passa de quimera. Ian Bremmer, pesquisador do World Policy Institute, no Valor Econômico (20/2), argumenta que existe um vácuo de liderança global exatamente quando ela é mais necessária. A atenção do presidente Barack Obama, como era de esperar diante da anemia econômica de seu país, concentra-se no combate à desordem bancária e em estímulos para recuperar a atividade das empresas. A União Europeia continua o debate interno sobre a melhor forma de socorrer bancos e indústrias em estado falimentar. Outros países ricos, como o Japão, continuam ocupados com problemas internos e rejeitam encargos internacionais. Nenhuma das potências emergentes começou sequer a usar sua crescente influência política e econômica para assumir responsabilidades que Washington já não suporta.
Os organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial, parecem incapazes de influenciar políticas, a não ser em casos pontuais de países envolvidos em crise e necessitados de socorro econômico. Mas nenhuma das duas instituições tem os recursos necessários para enfrentar a situação presente. A influência da Organização Mundial do Comércio (OMC) também é limitada.
Os países mais ricos do mundo (que formam o G-7) apelaram para as potências emergentes do G-20 para que arquitetem resposta coordenada ao caos financeiro e à recessão global. Mas, se é difícil levar sete países a concordarem entre si, o desafio de gerar um consenso entre 20 não tem tamanho. Ora, isso não é um regime multipolar, eficiente e democrático, mas apenas um sistema que encobre o desgoverno e pode dar origem aos movimentos protecionistas da desglobalização.
A esperança se volta para Obama, que declarou o advento da era da responsabilidade. Seu discurso lembra a filosofia do genial historiador inglês Arnold J. Toynbee. No passado, a união de países e regiões só se deu pela força militar ou por movimentos religiosos. A perspectiva da solução militar é horripilante. Por outro lado, o homem moderno desconfia da religião, porque suspeita das certezas dogmáticas que ela oferece em resposta à busca de sentido para a vida.
Mas Toynbee acreditava ser possível inventar uma crença que reconhecesse que nossas respostas às questões fundamentais são apenas adivinhações incertas. Ela ensinaria aos homens a autodisciplina, os valores do cidadão do mundo e os da vida em comunidade. O historiador dizia que, apesar de proezas científicas e tecnológicas, o homem moderno não é mais senhor da própria situação do que o homem da era anterior à revolução industrial. Fracassa porque não é capaz de exercer o autodomínio. Essa verdade, cerne de todas as religiões tradicionais, seria preservada na nova crença e formaria a base para a governança de que o mundo precisa para se desenvolver em paz.
A era da responsabilidade proposta por Obama é parente da crença de Toynbee, que prega o autocontrole como fundamento da união e do governo global. Mas é possível que Obama tenha redescoberto a pólvora tarde demais. Ainda na década de 1970, muito antes de a China começar a crescer de forma acelerada e entrar na moda, Toynbee argumentou que a força unificadora do mundo viria a ser o país dos mandarins, e não o Ocidente.
Ele acreditava que a China possui ativos que podem transformá-la no eixo geográfico e cultural para a unificação do mundo. São eles: 1) visão pragmática; 2) racionalismo (tanto do budismo quanto do confucionismo); 3) reconhecimento (proporcionado pelo taoismo) de que a tentativa humana de dominar o universo está fadada ao fracasso; e 4) intuição (compartilhada por todas as escolas filosóficas chinesas) de que, em vez de tentar dominar a natureza, o objetivo é viver em harmonia com ela.
O Império do Meio é capaz de conservar a visão pragmática do confucionismo e as intuições do taoismo, mesmo quando o país se encontra dominado pelo caos, embora ele não seja uma marca de sua história. Com certeza, o país já passou por distúrbios civis, mesmo antes daqueles que começaram em 1911 e duraram até 1949. Mas sempre se manteve unido desde o ano 221 a.C. e, portanto, adquiriu experiência durante mais de 20 séculos na manutenção de uma nação, que serviria de modelo à união de Estados nacionais em ordem mundial. Além disso, a China demonstrou que pode aplicar a ciência à tecnologia produtiva, tão bem ou melhor do que os competidores ocidentais.
Se assim é e você ainda não começou a estudar o Tao Te King e a filosofia de Confúcio, ponha mãos à obra. Ou corre o risco de perder o trem da história. Sic transit gloria mundi.
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