sábado, 28 de março de 2009

Raposa Serra do Sol e o dia seguinte

Jornal do Brasil

28/03/2009
General Alberto Cardoso

O Supremo Tribunal Federal terminou o esperado julgamento da questão sobre a constitucionalidade da homologação da terra indígena Raposa Serra do Sol em configuração contínua, feita pelo Presidente da República em 2005. Trata-se de 1,7 milhão de hectares, na fronteira do nosso país com a Guiana e a Venezuela, no estado de Roraima, com 19 mil indios; uma relação de 890 mil metros quadrados ou quatro a cinco quarteirões residenciais urbanos por indivíduo. A votação técnica de dez a um a favor da continuidade da extensão pode parecer refletir uma quase unanimidade das opiniões dos grupos que acompanharam o longo histórico do problema. Na verdade, estes se envolveram em uma acirrada e polêmica argumentação, com premissas de naturezas variadas, tais como preocupação com ameaça potencial à soberania nacional; laudos antropológicos; mitigação extemporânea de sentimento de injustiça com os índios; visão ideológica da causa indígena; amputação de Roraima de suas poucas terras agricultáveis; direitos dos agricultores sulistas estimulados para o plantio nas várzeas em área demarcada posteriormente, em 1998.

Uma vez que decisão judicial da última instância não se discute, cumpre-se, deve-se procurar no comunicado final da Corte Suprema os caminhos que ela indica para os setores do Estado brasileiro afetados pela nova jurisprudência. São regras claras sobre como eles deverão cumprir seus deveres a partir de agora. Os rumos estão explicitados nos dezenove pontos acrescentados ao texto, que têm sido chamados adequadamente de estatuto das reservas. Quem os lê nota que podem até ser classificados de óbvios e redundantes, dado que as terras indígenas homologadas passam a ser propriedade da União, com acesso garantido para seus agentes cumprirem os encargos institucionais; mas era preciso e foi bom as regras terem sido impostas explicitamente. Destaco as de números cinco, seis e sete, por terem a ver diretamente com a defesa nacional e com nossas riquezas minerais. Por força do espaço, me fixarei na primeira delas, por ser cabal e excludente de quaisquer dúvidas.

Ela merece ser transcrita: "O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta às comunidades indígenas envolvidas e à FUNAI". Uma leitura ligeira leva a concluir sobre medidas que já existem. Afinal, na área homologada há, ainda que precariamente, estradas e instalações militares, que podem ser expandidas. Qual a novidade?

O que surge de realmente novo é o Poder Judiciário estar mostrando ao Executivo que o Estado brasileiro, por ele gerido, tem muito a fazer nas terras indígenas acerca da infraestrutura de defesa do território nacional e das suas tantas riquezas, e que não há justificativa legal para empecilhos a esse trabalho, oriundos de organizações governamentais ou – com muito mais forte razão – não governamentais. Também é novo o Judiciário ter de fazer referência ao cunho estratégico das estradas numa região de fronteiras, das suas fontes de energia, e das riquezas nela existentes – que, em Roraima, todos sabemos serem predominantemente minerais – e, finalmente, dar nome a quem tem a competência para estabelecer ou propor critérios sobre esses assuntos de valor estratégico, numa terra indígena: o Ministério da Defesa e o Conselho de Defesa Nacional.

Quando o presidente do STF lastimou, no voto derradeiro, a ausência do Estado brasileiro naquele rincão, parecia estar pedindo ao Poder Executivo que não apenas homologasse a terra indígena, mas que não a terceirizasse para organizações não governamentais e que nos apresentasse a tão esperada novidade de instalar-se lá por inteiro, além dos seus precursores militares. Que transformasse os atos em fatos e que afirmasse ao mundo a nossa disposição de defender, sim, direitos indígenas, mas, sobretudo, a soberania indelegável que todo o povo brasileiro tem sobre seu território. Em suma, que fizesse o Estado concretizar-se na nova terra indígena e se mostrasse responsável por aquelas plagas amazônicas, porque vazio de poder interno devido atrai poder externo indevido.

Essa teria de ter sido a grande preocupação do Poder Executivo no dia seguinte à mensagem do Supremo; não a corrida sôfrega para novas demarcações e homologações, conforme já anunciado pela FUNAI, com olhos em mais uma faixa de fronteira, desta feita em Mato Grosso do Sul. Muito produtiva, por sinal.

Ainda há tempo para uma parada de arrumação, a fim de pensar no que significa não se sobrepor ao interesse da defesa nacional.

Alberto Cardoso foi fundador da Agência Brasileira de Inteligência e ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República na gestão de FHC

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