Valor Econômico
20/03/2009
Por Eliane Cruxên
O recrudescimento da xenofobia tem menos a ver com a crise e muito mais com uma ética social provinciana
Sem infraestrutura, sem leis, sem comando, o mundo está transformado num caos, sob o domínio da violência e do medo. A Inglaterra é o único lugar que ainda possui governo e exército. Cercada por muros, controla com rigor a entrada de imigrantes, que isola em jaulas e guetos. As mulheres não conseguem mais ter filhos e a morte de Diego, de 18 anos, gera enorme comoção. Um grupo luta para proteger, a qualquer custo, uma jovem imigrante grávida e assegurar que tenha seu filho em segurança.
Estamos em 2027 e a história é tema do filme "Filhos da esperança" ("Children of Men"). Exibido em 2006, passou relativamente despercebido pelas salas de cinema. Profético, assustador, será, dentro em pouco, apenas uma pálida versão do que vai ocorrer pelo mundo em matéria de xenofobia, grave doença que já domina os governos europeus, principalmente do Reino Unido e da Itália. Numa reinvenção de seus papéis históricos de colonizadores, os governos desses países estão se antecipando na edição de medidas extremamente rigorosas contra os imigrantes ilegais, contra os clandestinos, enfim, contra a imigração.
Impregnado também na população, o sentimento xenófobo levou, em meados de janeiro deste ano, centenas de trabalhadores britânicos de uma empresa petrolífera a um movimento grevista contra trabalhadores portugueses, forçados a regressar a Portugal, sob o lema "Trabalhos britânicos para trabalhadores britânicos", ditado pelo primeiro-ministro Gordon Brown.
A pobreza e a falta de emprego, acirradas por guerras intermináveis em países africanos e asiáticos, expulsam milhares de pessoas, que vão buscar trabalho nos países mais desenvolvidos e são chamadas pejorativamente de "paqui", adjetivo usado pelo príncipe Harry para se referir a um colega de exército. Instado a desculpar-se por ter sido politicamente incorreto, foi defendido por Brown, que minimizou a carga de preconceito da expressão. Pouco convincente, diante das medidas que o governo vem tomando para conter a imigração, e que se resumem em seletividade com os estrangeiros e prioridade ao trabalhador britânico. Mediante restrições até para profissionais com nível de mestrado, o governo espera reduzir em mais de 50%, até o final do ano, o número de imigrantes qualificados e com qualificação restrita.
Conter, reduzir, controlar, expulsar são expressões cada vez mais frequentes no discurso oficial dos dirigentes dos dois países quando o assunto é imigração, e retratam o clima dominante nas relações com estrangeiros.
Na Itália, cerca de 500 mil estrangeiros irregulares, que trabalham sobretudo em serviços domésticos, correm risco de prisão, se virar lei o projeto que o governo enviou ao Congresso, para limitar a entrada de estrangeiros, facilitar a expulsão dos irregulares e transformar em crime a imigração clandestina. A nova legislação cria um cadastro dos sem-teto, aumenta o imposto cobrado de estrangeiro para morar na Itália ou renovar o visto de permanência, permite a detenção de imigrantes para investigações e exige que os médicos denunciem imigrantes ilegais atendidos em seus consultórios. O premiê Berlusconi anunciou o endurecimento de leis contra criminosos sexuais porque, segundo ele, a maioria dos estupros no país foi praticada por estrangeiros. Em entrevista a jornalistas no final da primeira reunião oficial de seu governo, este ano, afirmou que as novas medidas trarão maior segurança ao país. O ministro do Interior, Roberto Maroni, vem cobrando dos membros da União Europeia maior empenho na luta contra os imigrantes clandestinos, mediante controle maior das costas marítimas e a introdução de acordos bilaterais com os países de origem.
Aumentar a segurança e proteger o mercado de trabalho dos nacionais, justificativas apresentadas para essas medidas, tornaram-se quase palavras de ordem desses governos, a partir da grave crise econômica deflagrada em setembro de 2008 e que ameaça menos o processo de globalização do que os trabalhadores. Na verdade, o recrudescimento da xenofobia tem menos a ver com a crise e mais com uma ética social extremamente provinciana, praticada na antiguidade por gregos e romanos, e que considera iguais só os nativos.
Os ingleses nunca dividiram sua população entre nativos e imigrantes porque, para expandir seus domínios, saíram primeiro como piratas, depois como conquistadores e foram explorar os nativos de outros lugares, como Índia e Nigéria, para ficar em dois exemplos extremos, nos quais alterou ou destruiu as relações sociais e políticas que encontrou e explorou a mão-de-obra até o limite da subsistência mínima.
Não se pode argumentar, em defesa dos imigrantes, que essa política de contenção ameaça o processo de globalização. A supressão das fronteiras, principal característica da globalização, não será abalada pela crise. A comunicação internacional continuará instantânea, o capital continuará se expandindo e se instalará livremente em qualquer região do globo, sem muros, sem tradução para o idioma local. Porém, o mesmo processo que expande fronteiras cria muros além dos quais os homens não podem passar, numa clara demonstração de que a globalização se aplica apenas ao capital e de que a mão-de-obra estrangeira é indesejada, porque ameaça os postos de trabalho dos trabalhadores nacionais e, principalmente, aumenta as demandas por emprego, habitação, saúde, escolas, políticas sociais, enfim. Porque não podem, ou não querem promover essas políticas, esses países estabelecem restrições cada vez mais rigorosas aos imigrantes, em total afronta à Declaração Universal dos Direitos Humanos, que assinaram em 1948.
O Brasil, que sempre acolheu os imigrantes, pode prestar importante serviço aos direitos humanos se divulgar sua política de imigração, mas sem insistir na conduta solitária de sempre receber e quase sempre mimetizar as diferentes culturas que aqui chegaram, como um grande Zelig, ou o "homem-camaleão", personagem de Woody Allen. Para fugir do estigma de Zelig, deverá não apenas denunciar a onda de xenofobia, mas propor medidas de proteção para os cidadãos brasileiros que vão arriscar a vida lá fora e, sobretudo, exigir reciprocidade de tratamento em razão da nossa história de acolhida. Se não tomarmos uma posição firme nessa questão, a xenofobia em breve vai fechar os muros da intolerância para novas vítimas, e os brasileiros não terão tratamento especial.
Eliane Cruxên, advogada e mestre em Ciência Política, é consultora legislativa do Senado Federal.
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