segunda-feira, 9 de março de 2009

Acredite: Um terço das línguas está sumindo

Isto é

09/03/2009

Claudia Jordão
Levantamento da Unesco faz um raio X do problema no mundo. Globalização e morte dos últimos falantes explicam por que os idiomas desaparecem
A narrativa bíblica da Torre de Babel conta que Deus se enfureceu ao notar que as pessoas sonhavam com o reino dos céus e construíam uma edificação para alcançá-lo. Resolveu, então, puni-los por sua arrogância. Logo, cada um dos homens começou a falar uma língua diferente e, com a comunicação comprometida, a construção foi cancelada. Se na Bíblia a pluralidade linguística era uma condenação, para a história é uma bênção, pois mostra a riqueza da humanidade. Os idiomas são patrimônios porque guardam a alma de um povo, sua história, seus costumes e conhecimentos, passados de geração em geração. Segundo o livro Ethnologue, 6.912 línguas são faladas no mundo hoje, mas desde os anos 50 mais de um terço delas (2.511) sumiu ou está em risco de extinção. Dessas, 200 já desapareceram, 199 possuem menos de dez falantes e outras 178 têm de dez a 50 pessoas que as utilizam. Os dados estão no Atlas das línguas do mundo em perigo de desaparecer 2009, recém-divulgado pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Elaborado sob o comando do linguista Christopher Moseley com outros 25 pesquisadores, o Atlas contempla a situação de 155 países e divide os idiomas na categoria extinta e em outras quatro de risco, como mostra o mapa abaixo.

O documento está em sua terceira edição e chamou a atenção pelas 2.511 extintas ou sob ameaça. Eram 600 em 1999 e 900 em 2001, quando houve outras edições do Atlas. Segundo a Unesco, o crescimento está relacionado a uma mudança de metodologia. "Esse salto quantitativo não significa um agravamento, é apenas o reflexo de um melhor recenseamento dos idiomas", diz Cécile Duvelle, chefe da seção de patrimônio imaterial da Unesco.

O Atlas apresenta a situação de 190 línguas brasileiras, todas indígenas. Dessas, 12 desapareceram e as demais estão em risco. O americano Denny Moore, antropólogo e linguista colaborador do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional) e coordenador da área de linguística do Museu Emílio Goeldi, em Belém, estuda as peculiaridades das tribos amazônicas há 34 anos e foi uma das principais fontes de informação da Unesco na elaboração do Atlas. Segundo ele, o documento deixou de fora os dialetos de descendentes de imigrantes e de grupos afro-brasileiros por falta de dados sistematizados sobre eles - estima-se que sejam 20 línguas.

Para Moore, as informações sobre o Brasil devem ser vistas com cautela. Muitas das línguas citadas são extremamente parecidas e inteligíveis entre si e poderiam ser consideradas pelos linguistas como o mesmo idioma. "Eu diria que os índios brasileiros falam 150 línguas. A gavião de Rondônia e o zoró, por exemplo, são tão semelhantes quanto o português falado no Norte e o falado no Sudeste do País", explica Moore, que fala inglês, português, francês e gavião.

Com o objetivo de entender melhor nosso universo linguístico, o Iphan montou o Grupo de Trabalho da Diversidade Linguística do Brasil (GTDL), que se dedica à criação de um inventário de línguas brasileiras.
"Com o documento em mãos, teremos condições de desenvolver ações para evitar o desaparecimento dos idiomas e valorizar as comunidades", diz Sílvia Guimarães, antropóloga do Departamento de Patrimônio Imaterial do Iphan. A iniciativa surgiu de uma demanda dos falantes de talian, uma variante do dialeto vêneto. O talian nasceu no Brasil e é praticado na região da Serra Gaúcha, no Rio Grande do Sul. Não há registro oficial do número de pessoas que o utilizam, mas estima-se em 500 mil. Em 2001, a Associação dos Apresentadores de Programa de Rádio Talian pediu o registro da língua como patrimônio cultural do Brasil. "Eles estão cansados de ser tratados como estrangeiros. Nasceram no Brasil e consideram sua língua brasileira", diz Sílvia.

Hoje, o governo reconhece a importância de preservar esse patrimônio imaterial, mas nem sempre foi assim. Segundo historiadores, em 1500, eram faladas 1.078 línguas indígenas. Para colonizar o País e catequizar os povos indígenas, os descobridores forçaram o aprendizado do português. O presidente Getúlio Vargas foi outro grande inimigo. No Estado Novo (1937-1945), defendeu-se a nacionalização do ensino e os idiomas falados por descendentes de estrangeiros simbolizavam falta de patriotismo. Por isso, caíram em desuso.
Mas por que as línguas desaparecem? Por diversos motivos, como a morte de seu último falante. Foi o que aconteceu com o eyak, no ano passado. Ele foi enterrado junto com Marie Smith Jones, do Alasca, a última pessoa do mundo a dominá-lo. Em tempos de globalização, é comum também que um idioma mais forte, com mais pessoas que o utilizam em grandes centros, sufoque um mais fraco. A dominação do swahili, na África Oriental, ameaça mais de 30 dialetos da Tanzânia. Além de ser ensinado na região, o swahili é muito bem-vindo no currículo de quem procura um emprego por lá.
A melhor maneira de cuidar de um idioma é transmiti-lo para as gerações seguintes. É o que acontece com o saami falado na Suécia, Noruega e Finlândia. Ele tem perdido espaço em seu território original, mas vem crescendo entre os emigrantes. "As línguas são vivas, algumas nascem, outras tantas morrem", diz o linguista Moseley, para quem um dia as pessoas irão lutar pela sobrevivência delas assim como brigam pela preservação das espécies. O importante mesmo, dizem os especialistas, é manter registros dos idiomas. Ou seja, mesmo que deixem de ser falados, devem existir no papel. Só assim têm a chance de renascer um dia, como o latim. Considerado uma língua morta, hoje pode ser ouvido em algumas missas católicas pelo mundo, no Brasil inclusive.

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