sexta-feira, 7 de novembro de 2008

ONU e OEA criticam o belicismo policial brasileiro

O jornal Correio Braziliense publica a seguinte matéria sobre a política de segurança pública brasileira:


ONU, OEA e o caso Wallace/Opinião

Sandra Carvalho, Diretora-executiva da Justiça Global e Gustavo Mehl, Assessor de Comunicação da Justiça Global
Wallace de Almeida era recruta do Exército, negro e tinha 18 anos quando foi baleado pelas costas por policiais na porta da casa da mãe, dona Ivanilde, no Morro da Babilônia, Zona Sul do Rio de Janeiro. Depois de invadirem a casa e insultar parentes do rapaz, os policiais literalmente lhe arrastaram morro abaixo. Wallace chegou ao hospital debilitado, vindo a falecer em seguida. Várias pessoas testemunharam o episódio, mas a falta de uma perícia imediata e o descaso de integrantes do Ministério Público não permitiram que os envolvidos fossem responsabilizados.
Foi em 1998. No último 13 de setembro, o assassinato do jovem completou 10 anos e, de lá para cá, diversos outros casos semelhantes aconteceram. O aniversário é uma triste celebração da impunidade que costuma ser regra em crimes cometidos por agentes públicos no Brasil.
Há pouco, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da OEA recomendou a investigação completa e imparcial do assassinato de Wallace e a adoção de medidas que evitem a discriminação racial por parte de funcionários da Justiça e das polícias. A CIDH responsabilizou o Estado brasileiro pelas flagrantes violações dos direitos à vida e de acesso à Justiça e ressaltou o caráter discriminatório de todo o processo, por entender que o desenrolar dos fatos jamais seria o mesmo se a vítima não fosse um jovem negro morador de favela.
O relatório da ONU divulgado recentemente vai pela mesma linha. O autor, Philip Alston, relator especial de execuções extrajudiciais, sumárias ou arbitrárias, visitou o Brasil em novembro de 2007 e constatou um quadro de disseminada violência policial e impunidade. Um dos estados observados foi o Rio de Janeiro, onde meses antes a megaoperação realizada no Complexo do Alemão terminou, em um dia, com 19 mortes que apresentam fortes evidências de execução sumária.
A situação do Rio é, de fato, emblemática. Os números oficiais apontam que, em 2007, 18% dos homicídios no estado foram praticados por policiais em serviço, o que corresponde a três mortes por dia. A política do confronto, defendida pela cúpula do governo e por parte da imprensa, é, na prática, uma política de extermínio. Em segurança pública, “as políticas atuais são matar uma grande quantidade de pessoas”, resume Alston.
O relator lembra que “uma estratégia de policiamento admissível não pode ignorar nem menosprezar a proteção das pessoas que residem nas comunidades controladas pelas organizações criminosas”. Porém, ignorando os abusos e crimes cometidos por policiais, os mortos por bala perdida e a ineficiência de sua estratégia na desarticulação do tráfico de drogas, a Secretaria de Segurança enaltece as ações violentas nas favelas, postura que, segundo o relatório, evidencia uma tentativa de “agradar um eleitorado amedrontado” pelos altos índices de criminalidade. Os assassinatos cometidos por policiais são apresentados como critério de eficiência: as mortes no Alemão foram festejadas por autoridades e parte da imprensa.
Alston ressalta, confirmando o que organizações da sociedade civil vêm denunciando, que uma forma de mascarar execuções praticadas por agentes públicos é o registro desses casos como “autos de resistência”, prática que, em suas palavras, “oferece um cheque em branco às mortes por policiais”. Segundo o Instituto de Segurança Pública, em 1998 foram registradas 397 ocorrências de “autos de resistência”; em 2007, esse número subiu para 1330; de janeiro a junho de 2008, já haviam sido registrados 757 casos, um aumento de 9% em relação ao mesmo período do ano anterior e de 344% em relação a 1998.
O relatório denuncia a dificuldade de responsabilização judicial dos policiais, conseqüência de um “forte corporativismo que resulta em uma investigação fraca feita pela Polícia Civil” e de “uma tendência de alguns juízes de adiar os processos dos casos que implicam a polícia e outros atores poderosos”. Os três acusados da morte de Wallace, por exemplo, estão trabalhando. Um deles, à época comandante da operação e conhecido na região pela truculência e arbitrariedade, foi promovido, trabalhou no Bope e atualmente ocupa alto posto do Grupamento Especial de Policiamento em Estádios (Gepe).
O relatório da ONU é taxativo ao afirmar que “o assassinato não é uma técnica aceitável nem eficaz de controle do crime” e que “um policiamento menos militarizado e mais eficaz é viável”. O documento — somado à manifestação da OEA — representa a condenação da comunidade internacional às políticas de segurança que, baseadas no belicismo policial, vitimam centenas de jovens negros como Wallace nas favelas e periferias do país.

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