segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Como Obama irá governar?

Matéria da Carta Capital trata do rumo que os EUA e o mundo devem seguir após a eleição de Barack Obama.


Mudança para onde?

Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa

A campanha de 2008 foi das mais longas e renhidas na história dos EUA e, com segurança, a mais cara: consumiu mais de 1 bilhão de dólares – só a campanha de Barack Obama, com 659 milhões, mais que dobrou os gastos somados de John Kerry e Bush júnior em 2004.

Não foi dinheiro gasto à toa. De 1972 a 2004, o comparecimento a eleições presidenciais variou de 49% a 56%. Desta vez, chegou a 64,1%, o maior de todos os tempos, se não se levar em conta 1908, quando as mulheres ainda não votavam. Superou até os 63,1% de 1960, antes do direito ao voto ser garantido aos negros do Sul pelo Ato dos Direitos Civis, assinado por Lyndon Johnson em 1964. O democrata texano disse a um assessor, assim que largou a caneta: “Perdemos o Sul por uma geração”. Foi otimista.

Após a Guerra Civil, na qual os republicanos de Abraham Lincoln impuseram o fim da escravatura e a ocupação federal aos estados do Sul, os democratas haviam tido nessa região um forte reduto, por defender a autonomia dos estados e seu “direito” a discriminar a minoria negra, mas essa fidelidade tornou-se problemática desde que Franklin D. Roosevelt e Harry Truman começaram, durante a Segunda Guerra Mundial, a defender leis antidiscriminatórias.

Com o ato de Johnson, os democratas conquistaram os negros fiéis a Lincoln, mas perderam de vez o redneck – o “nuca-vermelha”, branco que trabalha sob o sol quase tropical do Sul – que com o fim da discriminação legal viu esvair-se a ilusão de ao menos pertencer a uma raça privilegiada. Tornaram-se eleitores fiéis dos republicanos, que por sua vez aproximaram-se cada vez mais de sua xenofobia e seu fundamentalismo religioso.

Em 2003, o democrata conservador Zell Miller, ex-governador e senador pela Geórgia, publicou um livro chamado Não Mais um Partido Nacional, no qual dizia que o partido “perdera contato” com o país e se confinara a “redutos” urbanos e liberais ao se deslocar para a esquerda após John Kennedy (ou seja, a partir de Johnson). Para voltar a ser “competitivo”, deveria assumir os valores da “maioria crescente dos americanos” quanto a cortes de impostos e bem-estar social, controle de armas, ambiente, arte, educação, imigração e terrorismo. Ou seja, tornar-se neoconservador.

Hoje é o partido republicano que parece em risco de deixar de ser “nacional” e confinar-se aos grotões. A Virgínia, que desde 1964 não votava em democratas, mudou de idéia, juntamente com muitos outros estados. Foram reembaralhadas as cartas da política estadunidense e formadas novas bases eleitorais, como não se via há mais de 40 anos.

O racismo não se foi: teve força suficiente para polarizar e esteve no subtexto da campanha republicana. Obama foi chamado de “exótico” (“não Wasp”), “arrogante”, “elitista” (leia-se “ousa dizer-se mais preparado que vocês, brancos ignorantes”), “não é um de nós, não vê a América como você e eu” (palavras de Sarah Palin), não defende os “valores das pequenas cidades” (leia-se “brancas, anglo-saxãs, protestantes” – e xenófobas).

Para animar a tropa, os republicanos – seguindo o exemplo de Hillary Clinton – não se cansaram de falar do “efeito Bradley”, o suposto racismo enrustido de eleitores que apareciam nas pesquisas como pró-Obama ou indecisos, mas que no segredo da urna agiriam de acordo com seus instintos, digamos, primitivos, reduzindo a votação do candidato negro em mágicos 8%.

Os rednecks votaram em John McCain, que teria vencido se apenas o voto dos brancos contasse. Mas Obama mostrou que a mobilização dos jovens, das minorias e dos progressistas já é suficiente para contrabalançar a inércia do preconceito.

O “efeito Bradley” não existiu: Obama teve 52,5% dos votos contra 46,2% de McCain e a margem de 6,3% correspondeu com precisão à média das pesquisas no final da campanha, tanto na média nacional quanto nos números estaduais.

Os resultados no Congresso foram também próximos dos previstos, mesmo se alguns casos exigirem recontagem ou (dependendo de leis locais) segundo turno. Uma das poucas surpresas é a possível reeleição no Alasca do senador republicano Ted Stevens, condenado dias antes por corrupção passiva. Se confirmada, caberá aos colegas a embaraçosa missão de cassá-lo em 2009.

Algumas causas progressistas foram derrotadas em plebiscitos locais, como o que aboliu o casamento homossexual na Califórnia. Mesmo assim, o asno democrata pespegou um belo coice no elefante republicano e expandiu sua maioria no Legislativo: terá pelo menos 57 das 100 cadeiras no Senado (3 ainda indefinidas) e 254 das 435 da Câmara (8 indefinidas). Com a Presidência e a maioria nas duas casas, os democratas podem também controlar a nomeação dos integrantes da Suprema Corte durante os próximos quatro ou oito anos e reverter a maioria conservadora formada por Bush júnior.

Deixemos de lado, porém, os aspectos simbólicos e partidários. Do ponto de vista concreto e prático, pode-se dizer que o resultado da eleição de fato traz “mudança”, como prometia Obama e temiam os republicanos? Ou fez muito barulho por nada e tudo continuará como dantes? É o que afirmam candidatos presidenciais independentes, como Ralph Nader, os obscuros partidos nanicos dos EUA e muitos extremistas de direita e esquerda. Mas não, vale notar, radicais que têm a mão na massa como Fidel Castro e Hugo Chávez.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Em janeiro de 2009, os EUA continuarão um império que age como tal. Continuarão capitalistas, isso nem se discute, e ainda mais individualistas e com menos proteção social e intervenção estatal do que qualquer concorrente entre os países desenvolvidos.

Embora os conservadores chamem Obama de “radical”, um estudo da Universidade da Califórnia o classifica, pelas posições nos debates dos quais participou, como poucos milímetros mais “liberal” que a média dos congressistas democratas, na mesma posição de Hillary Clinton (que, com o marido, liderou a guinada neoliberal dos democratas nos anos 90) e bem menos “à esquerda” que outras figuras importantes, como Russ Feingold (o único senador que votou contra o Patriot Act) e mesmo a presidente da Câmara, Nancy Pelosi.

Não seria de esperar outra coisa. A carreira de Obama o define como um defensor pragmático de causas populares, cuja principal virtude não é o purismo, mas a disposição de ouvir todos os lados e tomar decisões calmas e racionais. Conversou com o historiador intelectual palestino-americano Rashid Khalidi, defensor moderado da causa palestina, como também com os sionistas. Trabalhou com o ex-militante da esquerda radical Bill Ayers e tem o apoio do homem mais rico do mundo, o financista Warren Buffett e de Colin Powell, o general que, na posição de secretário de Estado de Bush júnior, defendeu a invasão do Iraque ante a ONU e o mundo.
Mas se Obama não é "de esquerda" pelos padrões da maior parte do mundo, Bush júnior está claramente à direita não só do centro de gravidade político de seu país, como da média dos parlamentares republicanos. Que suas posições possam ter sido tomadas por algum tempo, depois do 11 de setembro de 2001, como representativas do "consenso" do seu país é o resultado de uma dramática manipulação da opinião pública pelo patriotismo chauvinista.
McCain estava, segundo o mesmo estudo, significativamente mais perto do centro que a média dos republicanos no Congresso. Entretanto, só pôde conseguir o apoio dos militantes neoconservadores depois que aderiu a seu discurso, escolheu uma vice à direita do próprio Júnior e irresponsavelmente impôs um alto risco ao país no caso de ser incapacitado.
É por isso que o resultado da escolha não é indiferente nem para os estadunidenses nem mesmo para o resto do mundo. Não é preciso apoiar o Império Romano para preferir Adriano a Calígula. O chauvinismo histérico, a idolatria do mercado, o obscurantismo religioso, os tabus contra programas sociais e econômicos do governo e o conservadorismo, neo ou tradicional, saem da pauta por quatro anos, pelo menos.
Para o resto do mundo, o mais relevante é o compromisso de Obama de conversar e negociar com quaisquer inimigos e promover uma diplomacia multilateral. Que ninguém se iluda: será para defender os interesses dos EUA em primeiro lugar, do bloco dos países desenvolvidos e aliados preferenciais (como Israel) em segundo. Mas o simples fato de levar em conta a existência e a legitimidade dos inimigos e incentivar as correntes mais racionais dentre os aliados, em vez das mais militaristas, é um progresso.
Muito foi dito a respeito de McCain ser mais favorável ao livre-comércio e, conseqüentemente, aos interesses dos exportadores brasileiros, do que Obama. Há alguma base para isso no discurso de ambos os candidatos, mas pouca ou nenhuma em suas ações. Alan Tonelson, assessor do U.S. Business and Industry Council - um dos principais lobbies do protecionismo nos EUA, formado principalmente por indústrias familiares -, acha tíbia a crítica do presidente eleito ao livre-comércio. Obama acredita que a perda de empregos e outros problemas decorrentes da insuficiência do protecionismo podem ser combatidos com investimentos em educação e novas tecnologias.
É verdade que, enquanto McCain foi um entusiasta do acordo bilateral de livre-comércio com a Colômbia e (assim como Bush júnior) elogiou o país como o maior aliado dos EUA na América Latina, Obama, assim corno a maioria dos democratas, ajudou a bloqueá-lo. Mas neste caso estava em jogo a política repressora de Álvaro Uribe e o assassinato sistemático de opositores, principalmente sindicalistas e organizadores de movimentos sociais.
Não é uma questão comercial, não mais do que o bloqueio de Cuba ou a suspensão por Júnior das preferências comerciais da Bolívia: é uma política. Aparentemente bem-sucedida, pois, no mesmo dia da vitória de Obama, caiu o general Mario Montoya, comandante do Exército colombiano e responsável pelo bombardeio no Equador que matou Raúl Reyes e pelo resgate de Ingrid Bettancourt. Nos dias anteriores, Uribe já afastara 27 outros militares, envolvidos no escândalo dos "esquadrões da morte", que executaram mais de mil civis e os apresentaram como guerrilheiros abatidos em combate - por serem oposicionistas, ou simplesmente para mostrar serviço e engordar as estatísticas triunfalistas do governo. Um pequeno exemplo de como uma mudança política nos EUA pode fazer alguma diferenca até, mesmo para a América Latina,praticamente ignorada por ambas as campanhas.
Faz mais diferença para as perspectivas do comércio a política econômica a ser adotada por Obama ante a crise. Deve-se observar que, a se acreditar ingenuamente no discurso, tanto McCain quanto Obama ampliariam o déficit público em cerca de 200 bilhões anuais até 2013, segundo o não partidário "Comitê para um Orçamento Federal Responsável". McCain reduziria a taxação do lucro empresarial, manteria baixos os impostos dos mais ricos e compraria 300 bilhões de dólares de títulos imobiliários ao valor nominal (o que equivale a subsidiar o setor financeiro). Obama manteria a arrecadação (aumentando um pouco os impostos dos mais ricos para diminuir os da classe média) e aplicaria os 300 bilhões em resgate das famílias endividadas, além de aplicar em saúde, educação, infra-estrutura e tecnologia.
A tese republicana continua a de Reagan: quanto mais dinheiro se deixar aos empresários, mais empregos eles criarão. Obama vê a realidade assinalada por Keynes: em épocas de incerteza, quanto mais dinheiro fica nas mãos dos ricos, mais é escondido debaixo do colchão. Para fazê-lo circular e obter efeito mul-tiplicador, há que distribuí-lo a pessoas de renda mais baixa, para ampliar o consumo, ou promover investimentos estatais diretos, de pontes a escolas.
A crise financeira, que mesmo sem fatos novos levará o déficit a 1 trilhão em 2009, deve levar Obama a dar mais atenção às contas públicas (talvez criando im-postos adicionais). Mas é improvável que siga o exemplo de Bill Clinton, que, ante o mau estado da economia em 1992, abandonou seu programa e dedicou dois mandatos a reequilibrar o orçamento. O resultado foi o desânimo dos eleitores democratas e a eleição do Júnior, que deu de presente aos especuladores e ao complexo militar o resultado de oito anos de sacrifícios.
Mais encorajador é o exemplo de Roosevelt, que enfrentou uma crise ainda pior promovendo gastos públicos contra a ortodoxia e garantiu duas décadas de hegemonia democrata. Isso é bem mais útil e importante para o resto do mundo que acordos de livre-comércio: recuperar o próprio consumo é o que os EUA podem fazer de melhor para promover o comércio internacional.
Em relação ao sistema financeiro, Obama não diferia claramente dos Clin-ton, principais responsáveis pela desre-gulamentação dos anos 90. Herdou da
campanha de Hillary e incluiu em sua equipe um dos arquitetos da farra, Robert Rubin, que ainda em janeiro de 2008 negava o risco de crise. Entretanto, os acontecimentos devem levá-lo a dar mais atenção aos críticos da desregulamenta-ção, entre os quais se encontra Buffett - que chama os derivativos e outras artimanhas financeiras desenvolvidas nos últimos anos de "armas financeiras de des-truição em massa" - e Paul Volcker, crítico consistente da campanha de Alan Greenspán pela desregulamentação.
A prioridade de Obama nos investimentos estatais, conforme reafirmou durante a campanha, será a tecnologia. Pretende dobrar os gastos do governo em pesquisa e desenvolvimento nos próximos dez anos - McCain prometia incentivos fiscais a investimentos privados - e aplicar 15 bilhões anuais em energias renováveis e programas de conservação - os republicanos apostavam em liberação da produção de petróleo em reservas e águas territoriais (lucrativa, mas irrelevante ante o consumo do país e perigosa para o ambiente) e na energia nuclear.
É outro aspecto em que pode fazer muita diferença para o mundo: de principal opositor do Protocolo de Kyoto e promotor do aquecimento global, os EUA podem tornar-se o líder do esforço para estabilizar a ecologia do planeta e o prin-cipal responsável por alternativas energéticas que tornem essa meta possível. Mesmo que nada mais significasse, bastaria essa razão para o mundo sentir-se, se não feliz, ao menos aliviado.

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