sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Crise e Keynesianismo

O jornal Valor Econômico publica, no dia 14 de novembro de 2008, uma resenha sobre o "Dossiê da Crise", preparado pela Associação Keynesiana Brasileira.


Momentos Keynesianos

Por João Carlos de Oliveira, para o Valor, de São Paulo

"Seremos agora todos keynesianos?" É com essa pergunta, e um ar indisfarçável de provocação, que se encerra a introdução ao "Dossiê da Crise", preparado pela Associação Keynesiana Brasileira (AKB). Os autores desse texto inicial são os professores Fernando Ferrari Filho (UFRGS) e Luiz Fernando de Paula (UERJ), respectivamente, presidente e vice-presidente da AKB. Este é o primeiro dossiê preparado pela associação, criada em abril, durante um congresso na Unicamp, em Campinas (SP). Na próxima semana, o dossiê terá uma versão em papel, patrocinada pela Federação das Indústrias do Paraná, mas já está disponível para leitura no site www.ppge.ufrgs.br/akb. AP

Seremos agora todos keynesianos? É, certamente, uma das perguntas que o governo americano do democrata Barack Obama, que assume em janeiro de 2009, terá de responder, assim como já estão fazendo, por atos e palavras, confrontados pela maior crise do capitalismo desde 1929, os dirigentes dos bancos centrais, os governos, os economistas, os organismos multilaterais, como FMI e Banco Mundial, além do G-7 e do G-20, que terá nova reunião em Washington neste fim de semana.


Reprodução
John Maynard Keynes: para quem tem estudado o economista inglês e Hyman Minsky, "não há grande novidade nesse tipo de dinâmica financeira", diz Paulo Gala, da FGV/São Paulo
Com 82 páginas e a participação de 25 economistas da Unicamp, das Universidades Federais do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Uberlândia, da Estadual do Rio de Janeiro, da Universidade de Brasília, da Fundação Getúlio Vargas, o dossiê é dividido em quatro partes: Visões da crise, Entendendo a crise financeira mundial, Caminhos para a superação da crise e Crise no Brasil: natureza e políticas. Um dos economistas mais citados e reverenciado ao longo dos textos é o pós-keynesiano Hyman Minsky. É dele um estudo, publicado em 1982, que a crise está tornando cada vez mais clássico, sob o sugestivo título "Pode 'Aquilo' Acontecer de Novo?" (Can 'it' happen again?). "Aquilo" é referência à depressão que se seguiu ao crash de 1929.

No livro, Minsky diz que a "estabilidade é instável", uma de suas frases mais conhecidas. Dito de outra maneira, ele mostrou que as expectativas dos agentes econômicos se alternam conforme o estágio do ciclo econômico. No início do processo, os balanços apresentam solidez por que os preços dos ativos são estabelecidos de maneira conservadora e as dívidas assumidas são pequenas em relação a eles. Mas a ausência de dificuldades sérias conduz ao desenvolvimento de uma economia expansionista (eufórica), e então ocorre o aumento do financiamento de curto prazo de posições de longo prazo. Aí, o êxito econômico e os bons resultados contínuos fazem com que banqueiros e empresários reavaliem positivamente suas expectativas e passem a aceitar maiores níveis de endividamento. Para fazer frente a tal situação, considerando uma dada quantidade de reservas disponíveis, criam novas práticas financeiras e novas instituições. Durante o boom, as inovações financeiras se propagam e permitem a sustentação do investimento e do preço dos ativos. Ao longo de um boom, assim, as empresas, os acionistas e as instituições financeiras assumem continuamente posições mais arriscadas e especulativas. Quando aumenta o perigo de calote, a demanda por liquidez aumenta e as empresas e as instituições financeiras tentam vender ativos para pagar dívidas. Chega-se, então, ao "momento Minsky", no qual a economia é empurrada para o abismo recessivo em um cenário de abrupta deflação de ativos.

No Brasil, o câmbio viveu, e ainda vive, um desses momentos Minsky, como definiu Paulo Gala, professor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. De fato, as cotações têm sido afetadas por um movimento de desalavancagem e de deflação de ativos, enquanto empresas exportadoras procuram se desfazer das posições especulativas que assumiram. "O movimento de apreciação construído em dois anos é desfeito em duas semanas (...). De uma maneira conturbada, para dizer o mínimo, o câmbio volta para uma posição mais razoável do ponto de vista de relação de preços entre bens 'tradables' e 'non-tradables'. Para quem tem estudado Keynes e Minsky, não há grande novidade nesse tipo de dinâmica financeira", conclui Gala, no texto que faz parte da quarta parte do dossiê.

A descrição que Minsky faz do processo de endividamento e do momento de deflação dos ativos aplica-se como luva ao que se viu e se está vendo não só no câmbio, no Brasil, mas também na cena mundial. O detalhe adicional é que todo esse movimento de crescente endividamento e de piora da qualidade do risco assumido se deu em um cenário, como lembra de Paula, de crescente desregulação dos mercados. "Esta é uma crise da desregulamentação e, neste aspecto, aproxima-se da de 1929. A grande diferença de agora foi a reação dos governos."

No princípio, houve perplexidade e as medidas adotadas foram "vacilantes", especialmente por parte do governo Bush, como as definiu Paula. Ele lembrou artigo de Kenneth Rogoff, publicado no "Washington Post", em que o professor da Universidade de Harvard e ex-integrante do staff do FMI "elogiou e chamou de corajosa a decisão do governo de deixar o Lehman Brothers quebrar. Como hoje se sabe, a concordata da instituição deu a partida para o processo mais ruidoso da crise financeira, que ameaçou jogar o país no abismo."

De lá para cá, com a piora da crise e a experiência adquirida desde a depressão dos anos 1930, os governos dos países centrais, com grande contribuição do primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, passaram a adotar a fórmula preconizada por Keynes e atualizada por Minsky para sair da crise. Trata-se de fazer com que o banco central atue como emprestador de última instância, de forma a garantir a liquidez e a confiança do sistema, e da adoção de uma política fiscal contra-cíclica, de aumento do gasto público.

Enfim, é um pouco dessa receita, de aumento dos gastos e do papel do Estado na economia (especialmente como regulador), que se passou a empregar nos quatro cantos do planeta. Daí a pergunta: "Seremos, agora, todos keynesianos?"

A declaração final do encontro do G-20 em São Paulo, preparatória para o encontro deste final de semana em Washington, pede, mesmo, mais intervenção do Estado na economia. Contudo, enquanto mais e mais setores reclamam ajuda do Estado mundo afora, mais e mais economistas - notadamente, dirigentes de bancos centrais, como Jean-Claude Trichet, do Banco Central Europeu -, gostariam de condicionar o aumento da ajuda à capacidade fiscal do Estado. Em resumo, acreditam que só deveria gastar mais quem pode gastar mais.

O argumento do gasto, digamos, cartesiano, porém, é contestado, e não só pela ação efetiva dos governos. "Se eles (os Estados Unidos) caírem no buraco, não importará com que déficit caíram - se era (um déficit) colossal mais delta ou apenas colossal. A questão é sair da beira do abismo", frisa João Sicsú, diretor de estudos macroeconômicos do Ipea, autor de um dos textos da terceira parte do dossiê. E sair implica o Estado investir, aumentar a chamada demanda agregada, fazer a economia andar (empurrá-la, literalmente).

Sicsú acredita que o déficit externo americano não é um grande problema, na medida em que o dólar continua a ser a moeda mundial. Uma prova dos noves dessa realidade é o fato de que os investidores se protegem da crise, que tem como epicentro os Estados Unidos, em títulos emitidos pelos Estados Unidos.

Para o economista, "a sociedade americana mostrou (com a eleição de Barack Obama) que clama por emprego, saúde e educação de qualidade. E Obama deve desenvolver uma política que ataque essas três frentes". Ou seja, a política econômica do futuro governo democrata, acredita Sicsú, deve reduzir os impostos para os pobres e para a classe média (em oposição ao que os republicanos propunham, com corte de impostos para os mais ricos) e abrir linhas de crédito com custo mais baixo para a produção, de forma a garantir o emprego e a geração de renda. Num segundo momento, acredita, será preciso regular o mercado financeiro, "mas isso é para o médio prazo; no curto, são necessárias políticas de geração de emprego e renda e uma nova política habitacional", define.

Embora concorde no geral com Sicsú, de Paula acredita que o processo de regulação dos mercados deve ser deslanchado logo no início de 2009, quando Obama assume o governo. E a nova regulação, opina, deve passar pelo enterro em grande estilo do acordo de Basiléia-2, que permitiu que as instituições criassem metodologias próprias para medir o risco de suas carteiras e permitiu que não existisse uma relação mais clara entre capital e ativos da instituição, como constava do Basiléia-1.

De Paula é cético sobre a possibilidade de haver um acordo inspirado no celebrado em Bretton Woods, em 1944, mas acredita que Obama, por sua credibilidade, força política e capacidade de buscar soluções cooperadas, saberá desempenhar o papel que agora lhe cabe: o de líder nesse processo de saída da crise econômica mais grave desde 1929. Sua tarefa é a de, como o próprio Obama já definiu em sua primeira entrevista coletiva depois da eleição, "sair desse buraco".

Sicsú e de Paula concordam em que o governo brasileiro tem se comportado de maneira correta e consistente nesta crise. Sicsú lembra que há, sim, folga fiscal para que o Estado gaste mais, de forma a incentivar a atividade econômica. "O déficit nominal brasileiro é de cerca de 0,5% do PIB, enquanto na Europa, como definiu o Tratado de Maastricht, o déficit pode chegar a até 3% do PIB em uma situação econômica de normalidade, que, definitivamente, não é o caso."

De Paula, embora acredite que, no momento, a Fazenda tenha ganhado a queda-de-braço com o Banco Central e sustente as medidas de apoio à atividade, não aposta na possibilidade de, quando a crise for contornada, o país abandonar o arranjo macroeconômico que vem desde 1999. Ou seja, câmbio flexível, superávit fiscal (política fiscal não expansionista) e uma política de juros ancorada em meta inflacionária.

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