O jornal Valor Econômico publica no dia 11/11/2008 a seguinte matéria sobre a "Bretton Woods II":
Considerações sobre Bretton Woods II
Luiz Gonzaga Belluzzo
Desde o século XVIII os teóricos e praticantes da moderna economia política debatem os conflitos e contradições entre a moeda universal (e seu caráter mercantil) e o exercício da soberania monetária pelos Estados nacionais.
No final do século XIX, a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa Continental foi acompanhada pela constituição de um sistema monetário global, amparado na hegemonia da Inglaterra. Essa construção política e econômica do capitalismo suscitou, no imaginário social e na prática dos negócios, a "ilusão necessária" acerca da naturalidade e impessoalidade do padrão-ouro e de suas virtudes na promoção do ajustamento suave e automático dos balanços de pagamentos.
Ao promover a ampliação do comércio internacional, o padrão-ouro impôs a reiteração e a habitualidade da mensuração da riqueza e da produção de mercadorias por uma unidade de conta abstrata. Assim, para escândalo de muitos, a confiança na moeda universal em sua roupagem dourada promoveu a expansão da moeda bancária, suscitando a progressiva absorção das determinações funcionais do dinheiro - unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor - por uma representação, um signo desmaterializado garantido pelas finanças do Estado.
Nos anos 20 do século passado, o declínio da Inglaterra coabitou com incapacidade política do poderio econômico americano em afirmar sua hegemonia. Isso tornou problemática, após o hiato de moedas inconversíveis da Primeira Guerra, a restauração do padrão-ouro, mesmo sob a forma atenuada do Gold Exchange Standard que permitia a acumulação de reservas em dólares e libras. Em sua ressurreição, o padrão-ouro foi incapaz de reanimar as convenções e de reproduzir os processos de ajustamento e as formas de coordenação responsáveis pelo sucesso anterior. Os déficits e os superávits tendiam a se tornarem crônicos. Os países superavitários - sobretudo França e EUA - se empenharam em "esterilizar" o aumento das reservas em ouro para impedir os efeitos indesejáveis sobre os preços domésticos.
Nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes formulou uma proposta mais avançada e internacionalista de gestão da moeda fiduciária. Ela previa a "administração" centralizada, pública e supranacional do sistema mundial de pagamentos e de provimento de liquidez. O Plano Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro - ou por qualquer moeda-chave - enquanto último ativo de reserva do sistema. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, mas também de evitar que assumisse a função de um perigoso agente da "fuga para a liquidez".
Na verdade, os países trocariam mercadoria por mercadoria e o dinheiro internacional, o Bancor, seria reduzido à função de moeda de conta. Os déficits e superávits seriam registrados em uma espécie de conta corrente que os países manteriam junto à Clearing Union, a câmara de compensação encarregada de vigiar o sistema de taxas fixas, mas ajustáveis e de promover os ajustamentos entre deficitários e superavitários. No novo arranjo institucional não haveria lugar para a livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.
Em 1944, nos salões do hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar - ancorado no ouro - como moeda universal. Talvez por isso, o segundo pós-guerra conte a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narre as desditas da reprodução dos desequilíbrios globais e da sucessão de ajustamentos traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.
Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveram ao gesto de 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na "desinflação competitiva" e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar se fortaleceu, agora obedecendo ao papel dos Estados Unidos como "demandante e devedor de última instância".
A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na contramão do senso comum, os investidores globais empreendem uma fuga desesperada para os títulos do governo americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os papéis do governo dos Estados Unidos oferecem repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas e reservam os tormentos da volatilidade cambial para os incautos que acreditaram nas promessas de recompensa pelo bom comportamento.
Bretton Woods II, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar conturbações geradas pela decadência americana. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalização impulsionada pela grande empresa e ancorada na generosidade da finança privada dos Estados Unidos. O processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias "consumistas" americanas, causa e efeito da migração da indústria manufatureira para a Ásia "produtivista" e da acumulação de mais de US$ 5 trilhões de reservas nos cofres dos emergentes.
Na posteridade da crise asiática, os governos e o Fundo Monetário Internacional ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para "as assimetrias e riscos implícitos" no atual regime monetário internacional e nas práticas da finança globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira internacional. A reação do governo Clinton - aconselhado pelos conselheiros de Barack Obama, Robert Rubin e Lawrence Summers - foi negativa. Os reformistas enfiaram a viola no saco. Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Considerações sobre Bretton Woods II
Luiz Gonzaga Belluzzo
Desde o século XVIII os teóricos e praticantes da moderna economia política debatem os conflitos e contradições entre a moeda universal (e seu caráter mercantil) e o exercício da soberania monetária pelos Estados nacionais.
No final do século XIX, a metástase da Revolução Industrial para os Estados Unidos e para a Europa Continental foi acompanhada pela constituição de um sistema monetário global, amparado na hegemonia da Inglaterra. Essa construção política e econômica do capitalismo suscitou, no imaginário social e na prática dos negócios, a "ilusão necessária" acerca da naturalidade e impessoalidade do padrão-ouro e de suas virtudes na promoção do ajustamento suave e automático dos balanços de pagamentos.
Ao promover a ampliação do comércio internacional, o padrão-ouro impôs a reiteração e a habitualidade da mensuração da riqueza e da produção de mercadorias por uma unidade de conta abstrata. Assim, para escândalo de muitos, a confiança na moeda universal em sua roupagem dourada promoveu a expansão da moeda bancária, suscitando a progressiva absorção das determinações funcionais do dinheiro - unidade de conta, meio de pagamento e reserva de valor - por uma representação, um signo desmaterializado garantido pelas finanças do Estado.
Nos anos 20 do século passado, o declínio da Inglaterra coabitou com incapacidade política do poderio econômico americano em afirmar sua hegemonia. Isso tornou problemática, após o hiato de moedas inconversíveis da Primeira Guerra, a restauração do padrão-ouro, mesmo sob a forma atenuada do Gold Exchange Standard que permitia a acumulação de reservas em dólares e libras. Em sua ressurreição, o padrão-ouro foi incapaz de reanimar as convenções e de reproduzir os processos de ajustamento e as formas de coordenação responsáveis pelo sucesso anterior. Os déficits e os superávits tendiam a se tornarem crônicos. Os países superavitários - sobretudo França e EUA - se empenharam em "esterilizar" o aumento das reservas em ouro para impedir os efeitos indesejáveis sobre os preços domésticos.
Nos trabalhos elaborados para as reuniões que precederam as reformas de Bretton Woods, Keynes formulou uma proposta mais avançada e internacionalista de gestão da moeda fiduciária. Ela previa a "administração" centralizada, pública e supranacional do sistema mundial de pagamentos e de provimento de liquidez. O Plano Keynes visava, sobretudo, eliminar o papel perturbador exercido pelo ouro - ou por qualquer moeda-chave - enquanto último ativo de reserva do sistema. Tratava-se não só de contornar o inconveniente de submeter o dinheiro universal às políticas econômicas do país emissor, mas também de evitar que assumisse a função de um perigoso agente da "fuga para a liquidez".
Na verdade, os países trocariam mercadoria por mercadoria e o dinheiro internacional, o Bancor, seria reduzido à função de moeda de conta. Os déficits e superávits seriam registrados em uma espécie de conta corrente que os países manteriam junto à Clearing Union, a câmara de compensação encarregada de vigiar o sistema de taxas fixas, mas ajustáveis e de promover os ajustamentos entre deficitários e superavitários. No novo arranjo institucional não haveria lugar para a livre movimentação de capitais em busca de arbitragem ou de ganhos especulativos.
Em 1944, nos salões do hotel Mount Washington, na acanhada Bretton Woods, a utopia monetária de Keynes capitulou diante da afirmação da hegemonia americana que impôs o dólar - ancorado no ouro - como moeda universal. Talvez por isso, o segundo pós-guerra conte a história conflituosa da reafirmação do dólar como moeda-reserva e narre as desditas da reprodução dos desequilíbrios globais e da sucessão de ajustamentos traumáticos dos balanços de pagamentos na periferia.
Essas características do arranjo monetário realmente adotado em Bretton Woods sobreviveram ao gesto de 1971 - a desvinculação do dólar ao ouro - e à posterior flutuação das moedas em 1973. Na esteira da desvalorização continuada dos anos 70, a elevação brutal do juro básico americano em 1979 derrubou os devedores do Terceiro Mundo, lançou os europeus na "desinflação competitiva" e culminou na crise japonesa dos anos 90. Na posteridade dos episódios críticos, o dólar se fortaleceu, agora obedecendo ao papel dos Estados Unidos como "demandante e devedor de última instância".
A crise dos empréstimos hipotecários e seus derivativos, que hoje nos aflige, nasceu e se desenvolveu nos mercados financeiros dos Estados Unidos. Na contramão do senso comum, os investidores globais empreendem uma fuga desesperada para os títulos do governo americano. Assim como nas crises cambiais dos anos 90, protagonizadas pela periferia (México, Ásia, Rússia, Brasil e Argentina), os papéis do governo dos Estados Unidos oferecem repouso para os capitais cansados das aventuras em praças exóticas e reservam os tormentos da volatilidade cambial para os incautos que acreditaram nas promessas de recompensa pelo bom comportamento.
Bretton Woods II, ou coisa assemelhada, não vai enfrentar conturbações geradas pela decadência americana. Vai sim acertar contas com os desafios engendrados pelo dinamismo da globalização impulsionada pela grande empresa e ancorada na generosidade da finança privada dos Estados Unidos. O processo de integração produtiva e financeira das últimas duas décadas deixou como legado o endividamento sem precedentes das famílias "consumistas" americanas, causa e efeito da migração da indústria manufatureira para a Ásia "produtivista" e da acumulação de mais de US$ 5 trilhões de reservas nos cofres dos emergentes.
Na posteridade da crise asiática, os governos e o Fundo Monetário Internacional ensaiaram a convocação de reuniões destinadas a imaginar remédios para "as assimetrias e riscos implícitos" no atual regime monetário internacional e nas práticas da finança globalizada. Clamavam por uma reforma da arquitetura financeira internacional. A reação do governo Clinton - aconselhado pelos conselheiros de Barack Obama, Robert Rubin e Lawrence Summers - foi negativa. Os reformistas enfiaram a viola no saco. Mesmo depois da queda do subprime, não vai ser fácil convencer os americanos a partilhar os benefícios implícitos na gestão da moeda reserva.
Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda, e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente às terças-feiras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário