O jornal O Estado de São Paulo publica no dia 16 de novembro de 2008 matéria sobre a eleição de Cançado Trindade para a Corte de Haia.
Brasileiro quer mudar corte da ONU
Cançado Trindade assume em Haia sob expectativa de modernizar um dos tribunais mais conservadores do mundo
João Paulo Charleaux
A nomeação do brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade para uma das 15 vagas da Corte Internacional de Justiça, na semana passada, sinaliza a chance de uma verdadeira revolução - aos olhos do comedido mundo jurídico, pelo menos.
Cançado foi eleito com o maior número de votos nos 78 anos de história da instituição e, ao assumir seu posto, no dia 6 de fevereiro, será o sétimo brasileiro a ocupar o cargo neste que é o único órgão primário das Nações Unidas cuja sede não está em Nova York, mas em Haia, na Holanda.
A Corte de Haia é considerada uma das mais importantes e mais conservadoras do mundo. Suas decisões já admitiram o uso de armas nucleares em caso de legítima defesa e determinaram que a Sérvia não praticou genocídio em Srebrenica, na Bósnia, embora tenha afirmado que Belgrado deveria ter tentado evitar o massacre.
A expectativa de que Cançado possa levar novos ares ao tribunal se deve às mudanças implementadas por ele no período em que presidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao longo de dois mandatos (1999-2004), onde ficou conhecido por dar mais espaço aos cidadãos e aos direitos humanos, relativizando o predomínio absoluto dos Estados.
Uma mudança como essa, dizem os especialistas, seria bem-vinda em Haia, uma corte fundada em 1920 e restaurada em 1945 com base na Carta das Nações Unidas, documento adotado depois da 2ª Guerra, que reflete um momento histórico em que os Estados eram os atores principais na cena internacional.
NOVOS ATORES
Na ocasião, ainda não existiam tantas figuras não-estatais, como organismos internacionais, ONGs e grupos terroristas com o alcance da Al-Qaeda ou grupos mercenários como a Blackwater, empresa que chegou a manter no Iraque mais soldados que o próprio Exército dos EUA.
“O problema é que o estatuto da Corte de Haia foi redigido em 1920 e revisto em 1945. Portanto, continua marcado por uma visão estatocêntrica do Direito Internacional, a meu ver superada em nossos dias”, disse Cançado ao Estado, logo após o anúncio de sua nomeação. “Tenho algumas idéias de reformas, mas não posso antecipá-las.”
Para o jurista Renato Zerbini, doutor em Direito e relações internacionais, que trabalhou em órgãos da OEA e da ONU, Cançado “é um dos poucos juristas na atualidade que podem influenciar a Corte Internacional de Justiça nessa direção”.
A mesma nomeação que anima o mundo jurídico, porém, desperta ceticismo. Para o professor de relações internacionais da PUC de São Paulo Reginaldo Nasser, o que não tiver o apoio de EUA, China e Rússia não se realizará na ONU. “A nomeação de Cançado pode trazer mudança ética e moral para a corte, porque ele (Cançado) é brilhante, mas não terá resultados práticos”, disse.
Francisco Rezek, único juiz brasileiro ainda vivo a fazer parte da Corte de Haia (1996-2006), diz que uma das dificuldades atuais é a possibilidade de que países como os EUA se recusem a reconhecer sua jurisdição caso sejam processados. Mesmo assim, ele considera que o conhecimento e atuação de Cançado na área dos direitos humanos pode fazer diferença.
DIVERSIDADE
Eleito com 163 votos, mais que o dobro do necessário, Cançado assumirá junto com outros quatro juízes, representantes de França, Somália, Grã-Bretanha e Jordânia, num tribunal que já conta com dois latinos - um venezuelano e um mexicano. O único membro do Conselho de Segurança da ONU a se abster durante a votação foram os EUA, o que mostra onde estarão as resistências que o brasileiro encontrará na ONU.
Em três meses, ele terá de analisar o episódio mais tenso da atualidade: o conflito entre Rússia e Geórgia na região separatista da Ossétia do Sul. Cançado terá de votar também a respeito do mais grave imbróglio diplomático dos últimos anos envolvendo Uruguai e Argentina, a polêmica construção de uma indústria de celulose no Rio da Prata, e sobre os atritos entre Colômbia e Equador em torno do uso de herbicidas no combate a cultivos de coca.
Apesar da proibição de comentar casos que ainda estão em tramitação, a própria produção acadêmica de Cançado revela disposição de contrariar decisões polêmicas, como o parecer dado pela Corte, em 1996, que admitia o uso de armas nucleares em caso de legítima defesa. “Se já estivesse lá na época, teria dado um contundente voto dissidente”, disse.
Brasileiro quer mudar corte da ONU
Cançado Trindade assume em Haia sob expectativa de modernizar um dos tribunais mais conservadores do mundo
João Paulo Charleaux
A nomeação do brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade para uma das 15 vagas da Corte Internacional de Justiça, na semana passada, sinaliza a chance de uma verdadeira revolução - aos olhos do comedido mundo jurídico, pelo menos.
Cançado foi eleito com o maior número de votos nos 78 anos de história da instituição e, ao assumir seu posto, no dia 6 de fevereiro, será o sétimo brasileiro a ocupar o cargo neste que é o único órgão primário das Nações Unidas cuja sede não está em Nova York, mas em Haia, na Holanda.
A Corte de Haia é considerada uma das mais importantes e mais conservadoras do mundo. Suas decisões já admitiram o uso de armas nucleares em caso de legítima defesa e determinaram que a Sérvia não praticou genocídio em Srebrenica, na Bósnia, embora tenha afirmado que Belgrado deveria ter tentado evitar o massacre.
A expectativa de que Cançado possa levar novos ares ao tribunal se deve às mudanças implementadas por ele no período em que presidiu a Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), ao longo de dois mandatos (1999-2004), onde ficou conhecido por dar mais espaço aos cidadãos e aos direitos humanos, relativizando o predomínio absoluto dos Estados.
Uma mudança como essa, dizem os especialistas, seria bem-vinda em Haia, uma corte fundada em 1920 e restaurada em 1945 com base na Carta das Nações Unidas, documento adotado depois da 2ª Guerra, que reflete um momento histórico em que os Estados eram os atores principais na cena internacional.
NOVOS ATORES
Na ocasião, ainda não existiam tantas figuras não-estatais, como organismos internacionais, ONGs e grupos terroristas com o alcance da Al-Qaeda ou grupos mercenários como a Blackwater, empresa que chegou a manter no Iraque mais soldados que o próprio Exército dos EUA.
“O problema é que o estatuto da Corte de Haia foi redigido em 1920 e revisto em 1945. Portanto, continua marcado por uma visão estatocêntrica do Direito Internacional, a meu ver superada em nossos dias”, disse Cançado ao Estado, logo após o anúncio de sua nomeação. “Tenho algumas idéias de reformas, mas não posso antecipá-las.”
Para o jurista Renato Zerbini, doutor em Direito e relações internacionais, que trabalhou em órgãos da OEA e da ONU, Cançado “é um dos poucos juristas na atualidade que podem influenciar a Corte Internacional de Justiça nessa direção”.
A mesma nomeação que anima o mundo jurídico, porém, desperta ceticismo. Para o professor de relações internacionais da PUC de São Paulo Reginaldo Nasser, o que não tiver o apoio de EUA, China e Rússia não se realizará na ONU. “A nomeação de Cançado pode trazer mudança ética e moral para a corte, porque ele (Cançado) é brilhante, mas não terá resultados práticos”, disse.
Francisco Rezek, único juiz brasileiro ainda vivo a fazer parte da Corte de Haia (1996-2006), diz que uma das dificuldades atuais é a possibilidade de que países como os EUA se recusem a reconhecer sua jurisdição caso sejam processados. Mesmo assim, ele considera que o conhecimento e atuação de Cançado na área dos direitos humanos pode fazer diferença.
DIVERSIDADE
Eleito com 163 votos, mais que o dobro do necessário, Cançado assumirá junto com outros quatro juízes, representantes de França, Somália, Grã-Bretanha e Jordânia, num tribunal que já conta com dois latinos - um venezuelano e um mexicano. O único membro do Conselho de Segurança da ONU a se abster durante a votação foram os EUA, o que mostra onde estarão as resistências que o brasileiro encontrará na ONU.
Em três meses, ele terá de analisar o episódio mais tenso da atualidade: o conflito entre Rússia e Geórgia na região separatista da Ossétia do Sul. Cançado terá de votar também a respeito do mais grave imbróglio diplomático dos últimos anos envolvendo Uruguai e Argentina, a polêmica construção de uma indústria de celulose no Rio da Prata, e sobre os atritos entre Colômbia e Equador em torno do uso de herbicidas no combate a cultivos de coca.
Apesar da proibição de comentar casos que ainda estão em tramitação, a própria produção acadêmica de Cançado revela disposição de contrariar decisões polêmicas, como o parecer dado pela Corte, em 1996, que admitia o uso de armas nucleares em caso de legítima defesa. “Se já estivesse lá na época, teria dado um contundente voto dissidente”, disse.
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