terça-feira, 14 de abril de 2009

O enterro neoliberal na reunião do G-20

Valor Econômico

14/04/2009

José Carlos de Assis

Esta crise já é mais profunda que a de 1929 em termos de derrocada dos sistemas financeiros dos países centrais

A reunião do G-20 em Londres enterrou definitivamente o neoliberalismo como ideologia de estruturação da ordem mundial. Ergueu em seu lugar o princípio da cooperação. É uma sinalização de mudança de era, ou de idade da civilização, que transcende a economia. O que morre não é apenas o liberalismo econômico, mas a própria ideia de liberdade individual ilimitada que caracterizou, na Idade Moderna, o movimento civilizatório também nas esferas moral e política, com crescente indiferença ao outro.

O comunicado final da reunião de Londres está ancorado firmemente no reconhecimento de que nenhum país, sozinho, pode escapar das consequências da crise econômica ou superá-las. Somos uma comunidade mundial interdependente. A cooperação não é uma escolha moral, mas um imperativo de sobrevivência. É uma ironia do jogo dialético da história que a globalização, em grande parte promovida pelo movimento neoliberal, agora resulta em seu oposto, com o reconhecimento das liberdades do outro.

Alguns analistas lamentaram a falta de medidas concretas, em Londres, para reverter a crise mundial - principalmente um compromisso maior da Europa com o aumento de estímulos fiscais tais como sugeridos pelos Estados Unidos com apoio da Inglaterra, do Japão e da China. Isso, porém, é irrelevante. A Europa não resistirá à deterioração de sua situação econômica interna: a retração prevista na área do euro, este ano, é de 4,1%, e o desemprego deve aumentar para 10,1% e 11,7% em 2010. Terá, pois, de recorrer a maiores estímulos fiscais.

Numa reunião de líderes, o importante não é tanto medidas concretas, que de qualquer modo devem ser ajustadas país a país, mas acordos em torno de princípios gerais que orientam essas medidas. O que foi acordado em Londres vai além das melhores expectativas: a regulação dos sistemas financeiros, a eliminação ou controle dos paraísos fiscais, a rejeição do protecionismo e do nacionalismo econômico, e o compromisso de condicionar a retomada a uma firme política de proteção ambiental para conter ou reverter as mudanças climáticas.

Mais do que isso, os líderes reconheceram a responsabilidade comum em apoiar os países pobres e em desenvolvimento com recursos da ordem de US$ 1,1 trilhão, a maior parte através do FMI, mas com condicionalidades mais frouxas. Igualmente importante é o fato de que o comunicado final reflete uma preocupação explícita com a questão do emprego e a segurança das famílias e dos trabalhadores, algo que raramente vi em documentos políticos internacionais. E vai implícita a derrocada dos fetiches de ortodoxia fiscal de Maastricht e do BCE.

Em 1985, estive em Bonn, na Alemanha, no auge da Guerra Fria, para cobrir a reunião do G-7. Reagan exercia sua hegemonia imperial no Ocidente. Havia dois líderes socialistas no encontro, François Mitterrand, da França, e Bettino Craxi, da Itália. O documento final refletiu a capitulação mais completa dos progressistas europeus ao ideário neoliberal. Não havia uma única menção a trabalhadores e famílias. Era o absoluto império do mercado, da eficiência econômica e do apelo à desestruturação do Estado de bem-estar social na Europa Ocidental. Foi o marco inicial da hegemonia quase absoluta do pensamento neoliberal no mundo.

Curiosamente, é para os "estabilizadores automáticos" do Estado do bem-estar social - isto é, seguro-desemprego e sistemas de saúde e de educação - que os ortodoxos europeus estão apelando para justificar sua resistência a maior aporte em estímulos fiscais, relativamente aos americanos, chineses e japoneses. Atacados como responsáveis pela baixa eficiência e competitividade da indústria europeia, desses estabilizadores se espera agora contribuição decisiva para impedir o aprofundamento da crise. Infelizmente, eles são apenas estabilizadores, e num nível baixo. Não são recuperadores e estimuladores.

Apesar do sucesso inequívoco da reunião de Londres, não se deve esperar melhoras a curto prazo. Esta crise já é mais profunda que a de 1929 em termos de derrocada dos sistemas financeiros dos países centrais e da extensão planetária de seus efeitos. Na Grande Depressão, nenhum grande banco e nenhuma grande corporação industrial americana quebrou. Agora, quebraram, só nos Estados Unidos, o maior banco de investimento (Lehman), a maior seguradora (AIG), as duas maiores financiadoras imobiliárias (Freddie e Fannie) e dois dos três maiores bancos comerciais (Bank of América e Citigroup), sem falar na vanguarda do sistema produtivo, a indústria automobilística (GM e Chrysler).

A recuperação do sistema financeiro americano será lenta e difícil. Basta observar que o crédito bancário ao setor privado desabou de US$ 1,75 trilhão em meados do ano passado para praticamente zero no fim. O plano do secretário do Tesouro Geithner é engenhoso mas vai requerer tempo de maturação. Além disso, enfoca apenas um ângulo do sistema. A estatização paira sobre muitos bancos mas, independentemente de questões ideológicas, envolve problemas práticos quase insolúveis, como a precificação de ativos podres - que o plano de Geithner tenta resolver criando os fundos públicos privados, mas que não é certo que todos os bancos com problemas aceitarão.

De qualquer modo, por mais penoso que venha a ser o processo de recuperação, pode-se ter alguma segurança de que, se forem cumpridos os princípios de Londres, teremos um mundo novo a nossa frente, baseado na cooperação e na solidariedade. Haverá regulação do sistema financeiro, e não apenas uma volta ao sistema anterior. Terá regras morais jamais anteriormente aceitas, como já mencionado. Contudo, se acham pouco, recordem-se: ainda há pouco, tentou-se empurrar goela abaixo da Europa uma Constituição que promovia o dumping social e fiscal entre os países, em nome da eficiência, e elegia entre seus princípios fundamentais, lado a lado com os direitos humanos, o direito ao mercado autorregulado.

José Carlos de Assis é economista e professor, autor de "A Crise da Globalização".

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