Profa Graças Freitas envia a seguinte notícia
Carta Maior 05 de Abril de 2009
Carta Maior lança debate: o Marxismo e o Século XXI
A Carta Maior lança a partir de hoje um seminário virtual sobre a obra de Karl Marx
e os problemas que afetam a humanidade neste início do século XXI. Diante da grave
crise econômica, política e social, decorrente das políticas do modelo neoliberal
implementado nas últimas décadas no mundo, o pensamento do autor alemão voltou à
ordem do dia. A nova editoria terá a curadoria do professor Francisco de Oliveira,
que escreverá e convidará, mensalmente, intelectuais para abordar o tema num debate
que se estenderá até o final do ano e procurará ofecerer respostas à pergunta: o que
Marx tem a dizer sobre os problemas do século XXI?
Francisco de Oliveira - Texto de apresentação
O marxismo seguramente foi a doutrina mais importante do século XX, no amplo sentido
de um "campo" (Bourdieu) ou ainda no sentido de ideologia (Gramsci) e não no dos
próprios Marx e Engels.(como doutrina dominante da classe dominante.) A tal ponto
que se pode dizer que o século XX foi o século do marxismo.
A partir das formulações originais da dupla Marx-Engels, o marxismo foi se
constituindo numa concepção de história, numa visão de mundo, numa prática de luta,
numa política, diretamente na crítica ao capitalismo, seu inimigo figadal. Desde o
século XIX, formações partidárias nitidamente operárias criaram-se inspiradas nas
idéias da dupla, tais como o prestigioso Partido Social-Democrata alemão, do qual o
próprio Engels foi militante e dirigente, e o Partido Socialista Operário Espanhol.
Todos os demais partidos de origem operária na Europa Ocidental, e mesmo na Índia,
tinham o marxismo como sua orientação teórico-prática mais consistente.
Deve-se dizer, sem apologia acrítica, que esse vasto campo construiu-se cheio de
contradições, que fizeram sua riqueza, até que a mão pesada do Partido Bolchevique,
vitorioso na Revolução de 1917, em seguida Partido Comunista da URSS, converteu o
marxismo num dogma, e matou, em grande medida, sua capacidade criadora, que requer,
antes de tudo, sua própria autocrítica. O marxismo havia chegado à Rússia pelas mãos
de teóricos do calibre de Plekhanov, e deu origem imediatamente a um movimento
político que tomou explicitamente a forma de partido lutando pela Revolução e pelo
poder, com seus dirigentes que se transformaram em condotiere mundiais, Lênin e
Trotsky, para citar apenas estes.
Todos os partidos de origem operária o tinham como sua referência principal, salvo,
talvez, e ironicamente, o Partido Trabalhista britânico onde o fabianismo e a
rejeição à revolução logo dominaram a cena trabalhista inglesa, na contramão de Marx
que havia pensado que o crescimento do operariado faria aparecer um pensamento e uma
prática revolucionárias. Mas nunca deixou de haver não só uma fração de trabalhistas
ingleses marxistas, como uma tradição teórica sobretudo na área da História, como o
prova até hoje, Hobsbawm, e ontem, Laski, na teoria política. Mas a contribuição do
velho Labour para a formação das políticas do Estado do Bem-Estar talvez tenha sido
a mais importante. Esse vasto movimento chegou até às ex-colônias. O Brasil conheceu
a formação de seu Partido Comunista já em 1922.
Mesmo refluindo das posições revolucionárias, os partidos de origem social-democrata
mais que influenciar, de fato, inseriram as lutas sociais para sempre na política.
Todo o vasto movimento do Estado do Bem-Estar radicou na capacidade de operação dos
partidos de origem operária, a socialização da política a que aludia Gramsci, o que
elevou o nível de vida nos países do Ocidente capitalista a níveis que deixaram o
programa inicial de Lênin como mero exercício teórico. Aliás, o "pequeno grande
sardo" é um dos marxistas mais originais e criativos, que contribuiu poderosamente
para que o próprio marxismo entendesse e explicasse as democracias ocidentais.
Recusando-se a fazer da política uma dedução da economia - o que, infelizmente,
ocorre hoje - Gramsci, nos cárceres do fascismo mussolinista, deu as diretrizes que
tornaram o então Partido Comunista Italiano o mais original e o mais capacitado a
dirigir a nova Itália democrática. Aqui, mais uma vez, a história pregou uma peça: o
progresso italiano, de que o partido de Gramsci foi o avalista em parceria - o
"compromisso histórico" - com os cristãos do Partido da Democracia Cristã, terminou
por solapar as bases sociais de ambos, e o PCI mergulhou numa longa decadência da
qual há apenas vestígios em meio às ruínas das grandezas de Roma.
Mas o marxismo carrega nas costas o pesado fardo do estalinismo e do terror
soviético, sem que os marxistas tenham, até hoje, revelado a capacidade de explicar,
marxisticamente, a tragédia em que desembocou a revolução mais radical da era
moderna. Não é suficiente a explicação materialista-vulgar de que todas as grandes
revoluções comeram seus próprios filhos; tampouco justificar a cruel ditadura do
georgiano - que na verdade já se ensaiava sob Lenin - pelas realizações
técnico-científicas da ex-URSS: todos os marxistas nunca deveriam esquecer a lição
do próprio Marx e dos frankfurtianos de que "progresso e barbárie" sempre formaram
na história universal uma terrível unidade.
A partir de certo momento, ficou muito evidente que o "marxismo soviético" (a
expressão é de Marcuse) não era outra coisa senão uma doutrina de grande potência
arrogantemente usurpadora das tradições marxistas. Mesmo a crítica trotkysta, que
cedo viu a "degeneração burocrática" do Partido, e a também ainda mais precoce
crítica de Rosa Luxemburgo, junto com a postura de Kautsky, não foram suficientes -
nem o poderiam ser, já que o terror estalinista mal havia mostrado suas garras já
sob a criação da temível e terrível Cheka sob Lênin.
Nos fins do século que acabou, talvez nas pegadas da explicação de Perry Anderson
para o que ele chamou de "marxismo ocidental", a combinação da desestruturação
produtiva, com a revolução técnico-científica e paradoxalmente o próprio progresso
levado a cabo pelo Estado do Bem-Estar desbarataram a própria classe operária e seus
partidos social-democratas e comunistas; o "marxismo ocidental" descolou a reflexão
teórica da perspectiva revolucionária. Deixou de influenciar a política e, pois, a
luta de classe organizada, e refugiou-se nos trabalhos acadêmico-científicos. Mesmo
assim, na universidade, que apenas durante um curto período - uns 40 anos , se tanto
- abriu-se para o marxismo, o movimento também refluiu.
Mas, surpreendentemente, a força criadora do marxismo abriu novas fronteiras , mesmo
em terrenos que lhe eram anteriormente hostis e com os quais, ele mesmo, teve
relações conflitivas e lhes dirigiu anátemas dogmáticos. É o caso das religiões-
antes o "ópio do povo", da psicanálise ,-uma ciência do inconsciente da justificação
burguesa dos seus próprios crimes -, da própria literatura (nos caminhos já
originalmente pensados por Lukacs), na critica da cultura e da modernidade - os
frankfurtianos - da hegemonia norte-americana, Gramsci e seu "americanismo e
fordismo". Esses terrenos todos foram imensamente fecundados pelo marxismo, que lhes
ampliou os horizontes.
A pergunta que essa curadoria quer fazer é direta: e o século XXI e no século XXI ?
O que o marxismo pode vir a ser, o que o marxismo tem a dizer? O século abriu-se com
a maior crise econômica, mundial, global, desde os dias da Grande Depressão de
Trinta. Mesmo sobre esta, o que o marxismo disse "no calor da hora" não honrou muito
as tradições da economia política marxista, que é seu terreno e sua certidão de
nascimento. Economistas como Ievguin Varga passaram a certidão de óbito do
capitalismo na crise de 1929. E agora, que crise é esta? François Chesnais tem dado
orientações teóricas muito férteis, sobre a transição para um regime de acumulação à
dominância financeira. E que mais ?
Não há marxismo sem marxistas; estes não são muitos, hoje, no Ocidente. No Brasil,
às vezes tem-se a impressão de que o marxismo floresce sobretudo na universidade, na
área de humanas, e ilumina muitos nichos da crítica. Mas nos partidos de esquerda, o
marxismo é quase sempre um indesejado e no operariado ele é mais, é desconhecido.
Operariado aliás, hoje multifacetado, reduzido nos locais produtivos, abundante nos
locais de serviço, milhões nos trabalhos informais, uma grande classe não-classe.
Será possível combinar reflexão criadora, novas interpretações do mundo, descoladas
do trabalho?
As explorações sobre essas intrigantes questões não se farão com um marxismo
ensimesmado, sectário e doutrinário; mas não se trata de proclamar um ecletismo
despolitizado: as interrogações partem da tomada de posição de que o marxismo pode
ainda alimentar as lutas pela transformação social e política, senão com a
transcendência e abrangência mostradas no século XX, pelo menos com uma postura
crítica que não se deixará seduzir nem pelo apocalipse nem pelo conformismo. Em
suma, um marxismo dialógico e dialético.
Crise financeira?
Teoricamente, temos uma crise clássica na interpretação marxista: é de realização
do valor, mas aqui está sua novidade: a produção do valor se dá na China e sua
realização nos EUA. É no que pode dar a assimetria entre os 10% de crescimento da
China e os modestos 3 a 4% dos EUA. Nos últimos vinte anos, o capitalismo
experimenta uma violentíssima expansão: 800 milhões de trabalhadores foram
transformados em operários entre a Índia e a China, e em todos os países do arco
asiático. Uma ampliação quase sem precedentes na história mundial das fronteiras
da mais-valia. A análise é de Francisco de Oliveira.
Francisco de Oliveira
Tornou-se dominante interpretar a atual crise econômica mundial como financeira,
inclusive nos arraiais marxistas, seguindo-se as indicações elaboradas por
François Chesnais sobre os regimes de acumulação à dominância financeira. E as
evidências empíricas levam água ao moinho dessa explicação, haja visto que foi o
estouro das chamadas hipotecas subprime, que acendeu, finalmente, a luz vermelha
de uma intervenção urgente e profunda. Bush ainda brincou, e deixou o Lehmann
Brothers ir à breca, bem no receituário liberal. Mas o tsunami não perdeu o poder
destrutivo e agora o elegante Barack Obama tenta domá-lo, sem muito êxito, até
aqui.
A crise que aí está é a primeira da globalização, não a primeira global, pois de
há muito todas as crises produzidas no centro do sistema propagam-se
imediatamente. Uma crise da globalização é diferente: ela pode ser gestada nas
periferias do sistema, atingir o centro e daí propagar-se. Teoricamente, ela é uma
crise clássica na interpretação marxista: é de realização do valor, mas aqui está
sua novidade: a produção do valor se dá na China e sua realização nos EUA. É no
que pode dar a assimetria entre os 10% de crescimento da China e os modestos 3 a
4% dos EUA. Nos últimos vinte anos, o capitalismo mundial experimenta uma
violentíssima expansão: 800 milhões de trabalhadores foram transformados em
operários entre a Índia e a China, e em todos os países do vastíssimo arco
asiático. Ficaram de fora nessa verdadeira revolução capitalista, a África, como
sempre, e praticamente toda a América Latina.
Uma ampliação quase sem precedentes na história mundial das fronteiras da
mais-valia. Descentralidade do trabalho? Vade retro! Com certeza, quem escreve e
quem lê estão calçando um tênis e usando um relógio digital produzidos nessa nova
fronteira. Isto quer dizer em teoria do valor que o custo de reprodução da força
de trabalho nos países que importam tais bens de consumo foi drasticamente
reduzido, sem a contrapartida de um aumento do salário monetário das suas classes
trabalhadoras; Robert Kurz já os chamou, faz tempo, "sujeitos monetários sem
dinheiro". Flynt (GM), Dearborn (Ford) e toda Detroit são hoje cidades fantasmas,
casas abandonadas, com desempregos duas vezes superiores à taxa nacional
norte-americana, e uma cena medieval diária, inimaginavel na América das
oportunidades: trabalhadores em filas recebendo refeições; ao invés de Lutero e
Calvino, São Francisco de Assis..
Atenção: esta revolução nos mercados de trabalho mundiais não poderia ter sido
feita sem uma pesada mudança técnico-científica nos métodos e produtos. O relógio
digital que se descarta é banal porque produzido por uma enorme infra-estrutura
técnico-científica que tornou as imensas reservas de mão-de-obra baratíssimas. A
China hoje tem mais estudantes de curso universitário que os EUA, e mais
pós-graduandos que o total de estudantes universitários do Brasil.
Nos EUA isto significou que a não-contrapartida em salário monetário deixou um
buraco nas contas dos consumidores e das famílias, que no boom da especulação
imobiliária tinham adquirido a casa dos seus sonhos. Cujos empréstimos os
norte-americanos imediatamente deixam de pagar, abandonam as casas e vão morar nos
trailers de seus carrões, estacionados à noite nos parkings, onde dormem. E os
bancos e financeiras hipotecárias deixaram até de cobrar, porque o crédito novo,
obtido através do FED e dos empréstimos chineses, era mais barato do que cobrar
dos inadimplentes.
A oferta de dinheiro barato, as subprimes, veio das aplicações chinesas em títulos
do tesouro americano, cujo FED deixou os bancos privados expandirem o crédito para
além de qualquer critério. Já em março de 2005, Ben Bernanke, então importante
economista de Princeton, alertava para o risco da utilização dos empréstimos
chineses para financiar os pesados gastos das famílias norte-americanas, em
hipotecas de casas e carros. Ben é hoje o todo-poderoso presidente do FED, e de
crítico converteu-se em administrador da bancarrota (citado em Mark Landler,
"Somente os bolsos chineses se enchiam" Folha de S.Paulo, 5/jan/2009, artigos
selecionados do The New York Times).
Francisco de Oliveira é Professor Emérito da FFLCH-USP.
domingo, 5 de abril de 2009
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