terça-feira, 14 de abril de 2009

Entrevista: Fukuyama

Veja

O liberalismo é o caminho
13/04/2009

Chico Mendez, de Washington
Francis Fukuyama
O cientista político Francis Fukuyama diz que os Estados Unidos precisam repensar o estado mínimo para vencer a crise atual – mas sem abrir mão dos valores liberais

Francis Fukuyama ficou famoso com o livro O Fim da História e o Último Homem (1992) ao defender a ideia de que os sistemas políticos encontraram na democracia liberal sua expressão evolutiva final, provocando a ira dos acadêmicos esquerdistas, para quem o pináculo só seria atingido pelo comunismo. Pela ousadia de pensar contra a corrente, Fukuyama não mais foi deixado em paz, dividindo-se seus leitores entre desafetos e seguidores. O cientista político americano de 56 anos agora reflete sobre a América Latina no livro Falling Behind: Explaining the Development Gap Between Latin America and the United States (Ficando para Trás: as Razões do Abismo de Desenvolvimento entre a América Latina e os Estados Unidos), ainda sem tradução para o português. Fukuyama falou a VEJA em seu escritório na Universidade Johns Hopkins, em Washington.

Quando o senhor anunciou o fim da história, o império soviético acabara de ruir e a globalização econômica começava a se tornar realidade. Hoje, vinte anos depois, sua tese ainda fica de pé?
Até aquele momento era dado como um fato da vida pelos intelectuais de esquerda que a história continuaria seu caminho evolutivo em direção à utopia socialista. Para eles, a história só terminaria quando alguma forma de socialismo ou de comunismo fosse atingida. Mostrei em O Fim da História que essa ideia de progresso não tinha fundamento e que o mundo não trilharia o caminho previsto pela ortodoxia esquerdista. Ocorria justamente o contrário. O mundo estava evoluindo rumo à democracia liberal, e ela será o destino final. Ainda acredito nisso. Só vou considerar que há alternativa viável à democracia liberal se, no prazo de uma geração, o regime autoritário da China conseguir mesmo levar o país a igualar o nível de desenvolvimento dos Estados Unidos e da Europa. Acredito, porém, que esse objetivo não seja alcançável pelo atual modelo chinês.

O que o capitalismo e a democracia liberal precisam fazer para sobreviver à atual crise?
Precisamos, urgentemente, de maior controle sobre o sistema financeiro, que está completamente desregulamentado. Acredito, também, que o estado mínimo não funcionou. A partir de agora veremos uma presença bem maior do estado na economia. Ou seja: será uma economia mais de estado e menos de mercado.

Isso não representa uma derrota do liberalismo econômico?
Não há nada de errado com o liberalismo. A receita liberal, baseada no livre mercado e na globalização, ainda é a melhor alternativa para o desenvolvimento global. Mantenho-me fiel a ela. Milhões de pessoas deixaram a linha de pobreza nos últimos anos justamente por causa do crescimento econômico robusto no mundo. A crise atual não foi causada por um desvio do liberalismo, mas por opções políticas equivocadas. Por décadas, seguimos um modelo que propunha a máxima desregulamentação dos mecanismos financeiros e a crença de que os mercados iriam se ajustar automaticamente a qualquer situação. Até o Alan Greenspan (ex-presidente do banco central americano) reconhece que foi um erro acreditar nisso.

Qual é o melhor caminho para regular os mercados agora? A criação de uma "ONU das finanças" é uma boa ideia?
Há quem veja o G-20 (grupo dos vinte países mais ricos do mundo) atuando nessa área. Não acho que seja uma boa saída dar a uma instituição supranacional o papel de regular todo o mercado. O G-20 deveria expandir organismos que já existem, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). As reformas para regular mercados deverão ser desenvolvidas em âmbito nacional ou regional. Os europeus, por exemplo, precisam criar um sistema de regulação bancária, que eles ainda não têm.

Quais são os danos até agora para os Estados Unidos?
Se a economia real entrar em uma longa recessão, o que me parece bastante possível neste momento, os Estados Unidos não terão os recursos econômicos suficientes para sustentar uma série de atividades que mantêm ao redor do mundo, como a ajuda a outros governos ou as operações no Oriente Médio. Mas as implicações não ficarão restritas à política. No campo das ideias, haverá uma série de danos à imagem do país como promotor de um modelo de democracia e de capitalismo. As ideias que exportamos desde os tempos do presidente Ronald Reagan (1981-1989) deverão ser modificadas, pois foram justamente elas que nos impeliram para a crise atual.

Entre tantos efeitos globais da crise, qual mais o assusta?
O pior dessa história toda é que, na esteira da crise, estamos assistindo a um aumento do nacionalismo econômico. Não só nos Estados Unidos, mas em todo o mundo. Seu desdobramento mais nefasto é o protecionismo. Esse movimento é um grande perigo. Sabemos das consequências do protecionismo. Não funcionou nos anos 1930 e não funcionará novamente.

Como a China está se movimentando nesse cenário?
Os chineses estão usando a crise econômica global de maneira estratégica, promovendo investimentos em várias partes do mundo. Eles estão aumentando seu peso político. Também pressionam por mudanças nas instituições multilaterais para que o papel deles seja mais relevante. Acho que os chineses sairão da crise com mais poder de barganha do que tinham antes.

A União Europeia também pode ganhar?
Creio que o bloco sairá enfraquecido da crise. A União Europeia está enfrentando uma situação nova e delicada. A crise atual expôs a falta de unidade entre os europeus. Não vejo, neste momento, disposição dos países mais ricos, como a Alemanha, em ajudar seus vizinhos do Leste que entraram no bloco recentemente, como Hungria e Lituânia. Para um bloco econômico, unidade é fundamental.

E a América Latina?
Além da crise atual, há inúmeros obstáculos para a América Latina. Talvez o principal deles seja a atuação de um grupo de dirigentes populistas, que se opõem a qualquer iniciativa americana.

Esse grupo populista está promovendo reformas constitucionais em países como Equador, Bolívia e Venezuela. Como o senhor vê esses movimentos?
Eles vivem a ilusão de que essas mudanças produzirão justiça social, mas elas são propostas por líderes populistas cujo único objetivo é aumentar o poder do Executivo. Justificam isso com programas sociais de redistribuição de renda que retiram direitos da elite e os repassam aos excluídos. É uma tendência perigosa. Se for para fazer redistribuição, que se faça com o consenso de toda a sociedade. Se não houver um consenso na sociedade para que essas mudanças ocorram, haverá uma polarização cada vez maior entre direita e esquerda.

Por que o Brasil, onde as desigualdades sociais também são profundas, consegue evitar o populismo?
Porque o Brasil é mais estável. É um estado federativo, com experiência na descentralização do poder. Além disso, o consenso a respeito da importância da participação política é muito maior na sociedade brasileira do que na maioria dos outros países da região.

Mas brasileiros vivem às turras com seus políticos...
O problema no Brasil é o Legislativo. As regras eleitorais dificultam a formação de maiorias no Congresso, o que força os presidentes a criar coalizões com diferentes partidos. Um presidente brasileiro jamais tem uma maioria no Congresso, como o presidente Obama tem nos Estados Unidos. Além disso, os partidos brasileiros não têm disciplina. Isso é terrível. Os partidos não podem forçar seus membros a seguir a orientação do líder, o que obriga o presidente a fazer acordos paralelos. Esse modelo favorece a corrupção e dificulta a aprovação de leis.

Em seu último livro, o senhor atribuiu a disparidade de desenvolvimento entre os Estados Unidos e a América Latina a suas diferenças de colonização. Por quê? Países colonizados herdam tradições de quem os colonizou. Alguns erros de política econômica cometidos na América Latina, como a política fiscal frouxa e a inflação alta, são uma herança do período imperial da Espanha, que enfrentou problemas semelhantes. Os altos índices de desigualdade na região também podem ser explicados pela herança histórica. No meu livro, tento mostrar que a herança histórica não pode ser confundida com a cultura, que é frequentemente usada para explicar a disparidade de desenvolvimento entre as duas regiões. Quando se fala em cultura, está-se referindo a religiões e valores enraizados em uma sociedade. Por exemplo, é comum vincular o atraso da América Latina ao catolicismo. Mas isso é uma desculpa, não a realidade. França, Polônia, Hungria e Espanha são católicos e se modernizaram.

O que fez, então, os Estados Unidos serem tão mais bem-sucedidos?
Na América Latina, o crescimento foi frequentemente interrompido pela instabilidade política. Esse é o motivo central do distanciamento entre os Estados Unidos e os demais países. Os Estados Unidos tiveram uma revolução, a da Independência, e um único momento de descontinuidade, que foi a Guerra Civil (1861-1865); a América Latina teve inúmeros períodos de instabilidade. Além disso, nos Estados Unidos há na sociedade um consenso muito forte de respeito à Constituição e ao estado de direito. Isso permitiu ao país viver períodos longos de crescimento.

O que a América Latina deve fazer para encurtar essa distância?
Há inúmeras áreas com problemas de diferenças institucionais. A segurança pública é um exemplo. Os índices de criminalidade da América Latina são tão altos que dão uma sensação de caos. A corrupção é grande, e o respeito ao estado de direito, ainda pequeno. Isso não quer dizer que a América Latina não tenha registrado avanços. As reformas macroeconômicas realizadas por muitos países da região mostram que houve importantes progressos institucionais.

A América Latina deveria seguir o exemplo dos países asiáticos, que conseguiram se desenvolver rapidamente sem grandes programas sociais?
Não foi bem assim. Os asiáticos promoveram ampla reforma agrária no fim dos anos 1940 e, em seguida, uma reforma educacional. A distribuição de propriedade na América Latina foi muito mais desigual do que na Ásia. Iniciativas como o Bolsa Família, que exige a frequência escolar, são sinais de mudanças. Infelizmente, em muitos casos, não há acompanhamento adequado da frequência escolar e o programa corre o risco de se tornar um instrumento político. Outro grande problema é que os professores são muito mal preparados. Para piorar, os pais dos alunos não estão dispostos a cobrar a melhoria do ensino nem são preparados para isso.

Com relação a Cuba, é o momento de acabar com o embargo?
Obama tem uma oportunidade enorme para mudar as relações com a ilha. O embargo não funcionou. Na verdade, o embargo serve de desculpa para os líderes cubanos não promoverem reformas e se perpetuarem no poder.

Suas afirmações são surpreendentes para quem já foi colocado entre os ícones do conservadorismo americano. O senhor mudou?
Rompi com os conservadores no início da Guerra do Iraque. Não concordei, e não concordo, com a maneira como o governo anterior utilizou o poder americano. O erro de estratégia ficou claro com os danos ao prestígio do país. Os republicanos precisam repensar sua política externa e, no campo da economia, devem rever suas posições ideológicas sobre economia e governo mínimo, porque foram justamente elas que nos impeliram para a crise econômica atual.

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