Valor Econômico
24/04/2009
A Presidência e os ministérios, incluindo as Relações Exteriores, têm se capacitado
Cássio França e Michelle Ratton Sanchez
A concentração de competências no Ministério das Relações Exteriores não está só no imaginário do cidadão comum
A política externa brasileira passou a integrar o debate político nacional há poucas décadas. O que o cidadão comum sabe é que um ministério, o Ministério de Relações Exteriores (MRE), conhecido por sua organização rígida e boa reputação técnica, representa os interesses do Brasil internacionalmente. Isso, entretanto, está muito distante da realidade da organização do Estado brasileiro hoje.
Duas vertentes importantes mudaram esse cenário do senso comum, a partir da década em 1990 em especial: o processo de globalização e as mudanças no Estado brasileiro. Há uma crescente conexão entre políticas domésticas e internacionais, o que requer que o processo decisório das políticas brasileiras passe a considerar argumentos e tendências internacionais. Isso significa que determinados assuntos antes restritos ao Estado nacional assumiram uma dimensão transnacional e as políticas nacionais comunicam-se com as de outros Estados e outras passam a ser deliberadas em fóruns internacionais. Em decorrência, o Estado brasileiro tem se reestruturado de forma a atender aos desafios dessa mudança.
Como o Estado brasileiro então está organizado neste momento de inserção internacional? A competência para manter relações com Estados estrangeiros e para participar de organizações internacionais é atribuída à União, na figura do presidente da República, pelos artigos 21 e 84 da Constituição federal. O presidente deve então creditar seus representantes diplomáticos. A lei que trata da organização da presidência da República e uma série de decretos e portarias é que definem, no âmbito da União, as competências para os seus diferentes órgãos. Uma pesquisa vem sendo elaborada por pesquisadores da Direito GV e da Fundação Friedrich Ebert com o objetivo de mapear essa distribuição legal de competências e o efetivo exercício das mesmas.
Uma análise dessa regulamentação surpreende pelo fato de contarmos com competências para a política externa em todos os órgãos do Poder Executivo federal, desde aqueles que compõem a presidência da República aos ministérios. Resultados parciais da pesquisa indicam que, no âmbito da Presidência, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, a Secretaria Especial dos Direitos Humanos e a Secretaria de Relações Institucionais, por exemplo, contam com pelo menos 50% de suas estruturas com competência para atuar na política externa. Dentre os ministérios, destacam-se o Ministério da Educação, Ministério do Meio Ambiente, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ministério dos Esportes, Ministério da Fazenda, Ministério do Turismo e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, que contam com pelo menos 70% de suas estruturas envolvidas em política externa.
Esses números e o mapeamento das competências da política externa evidenciam que há uma horizontalidade nas competências para formulação da política externa, muito além da percepção intuitiva do papel central do MRE. Por que será que essa percepção ainda prevalece no imaginário nacional?
Recentes artigos na mídia reforçam essa percepção e questionam a legitimidade da atuação de outros órgãos que não o MRE na política externa e a divergência por vezes resultante disso. Algumas entrevistas foram realizadas pelos autores deste artigo, coordenadores da pesquisa, com funcionários daqueles órgãos do Poder Executivo para identificar se as competências definidas pela legislação brasileira confirmam-se na realidade. Apesar de quase nenhuma das regulamentações analisadas contar com previsão de cooperação com o MRE ou mesmo entre os ministérios e desses com a Presidência para a condução da política externa, os entrevistados confirmaram em sua totalidade contatos frequentes com o MRE. Exceções a essa regra foram indicadas em negociações muito técnicas. Portanto, a intuição da concentração de competências no MRE não está só no imaginário do cidadão comum, mas também daqueles que teriam competência para atuar autonomamente em temas de política externa.
A questão valorativa - se essa horizontalização legal e a verticalização pragmática é positiva ou negativa - ainda está pendente e certamente requer estudos detalhados e comparativos de casos e negociações específicas. Será que a coordenação do MRE com o Ministério de Meio Ambiente e o da Saúde no contencioso entre Comunidades Europeias e governo brasileiro sobre o caso de importação de pneus recauchutados foi além do que tradicionalmente se estabelecia entre o MRE e outros ministérios? O que tem mudado na política externa brasileira e na relação entre o MRE e o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) na medida em que se intensificam as negociações nessa área no âmbito internacional e o próprio MAPA tem ampliado a sua estrutura para atuar nessa arena? O que há de novo no governo brasileiro quando se tem o protagonismo conjunto do Ministério da Defesa, da Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos e do MRE ao proporem o "Conselho de Defesa Sul-Americano"? A pesquisa em andamento ainda não avançou na análise desses casos, porém apresenta algumas conclusões parciais que podem ajudar a enriquecer o debate nacional sobre o processo de formulação da política externa brasileira, especificamente no tocante à distribuição legal de competências e o seu contraste com a praxe.
Nos últimos anos, não só os órgãos da Presidência como os ministérios, incluindo o MRE, têm-se capacitado em termos técnicos e de recursos humanos, mas o quanto isso ocorre de forma coordenada e possibilita processos de tomada de decisão racional? O que se tem hoje é um avanço do processo de horizontalização de competências que pode incorporar uma posição de vanguarda no campo da administração pública e do Direito, ao relacionar a competências dos ministérios e da própria Presidência para uma coordenação internacional das políticas domésticas que determinam. Mas, por outro lado, esse processo também pode ser o início de uma incerta - para não dizer perigosa - pulverização de responsabilidades na arena internacional. Portanto, definir quais são os arranjos institucionais mais adequados na estrutura do Estado brasileiro para responder a determinadas decisões da política externa é uma questão que depende - e clama hoje - por uma definição urgente por parte do Estado e da sociedade brasileiros, a começar por uma revisão do imaginário sobre a política externa e da relação entre a sua regulação e a sua praxe.
Cassio França é cientista político, doutor em administração pública e governo e diretor de projetos da Fundação Friedrich Ebert.
Michelle Ratton Sanchez é professora vinculada ao Núcleo de Direito Global na Direito GV e pesquisadora no Núcleo de Direito e Democracia do CEBRAP.
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