segunda-feira, 20 de abril de 2009

Cúpula das Américas deixa saldo positivo

Época

20/04/2009

Murilo Ramos
A ação combinada de Lula e Barack Obama pode fazer bem para o futuro político do continente
Juan Barreto
NOVOS TEMPOS

Em 2005, era difícil esconder a sensação de fiasco no final da IV Cúpula das Américas, realizada em Mar Del Plata, na Argentina. Depois que ficou claro que não trouxera nenhuma ideia importante na bagagem, o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, foi submetido a um isolamento constrangedor. Nos intervalos do encontro, enquanto outros presidentes se dividiam em rodas de conversa, Bush ficou vários momentos sozinho. Com o governo moído pelo mensalão, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva estava, na ocasião, longe de exibir o prestígio e o desembaraço acumulados no segundo mandato – havia quem duvidasse até que fosse disputar a reeleição. Sem muito para fazer, mas revigorado pela alta dos preços da principal fonte de riqueza de seu país, o petro-presidente da Venezuela, Hugo Chávez, subiu no palanque de um comício contra a globalização, que reuniu 25 mil pessoas.
Iniciada na sexta-feira, em Port of Spain, capital do arquipélago de Trinidad e Tobago, no Mar do Caribe, a V Cúpula das Américas ocorre num mundo novo, diferente e inseguro, que enfrenta com perplexidade crescente e ideias contraditórias a pior crise econômica em três gerações. Aguardado em Port of Spain com as honras e a reverência de quem governa o país que ainda é a primeira economia do planeta, Barack Obama publicou um artigo em que escreveu: “Nós podemos trabalhar como parceiros”. Em seguida, Obama não deixou de acrescentar que reserva a seu país o papel de “liderança” na região. Enquanto Hugo Chávez reforçava a retórica antiamericana, o jornal The New York Times previa um evento em que 33 chefes de Estado pretendem “redefinir sua relação” com os Estados Unidos. Talvez seja exagero esperar tanto.
Num gesto próprio de quem escolheu um aliado para ajudá-lo a aproximar-se de um continente que há décadas se queixa de ser tratado como a última das prioridades por Washington, Obama, na quinta-feira, telefonou para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os dois conversaram durante 20 minutos. Lula disse a Obama que “os Estados Unidos precisam ter para a América Latina um olhar pensando no desenvolvimento tecnológico, na parceria e na contribuição”. O bom relacionamento entre Lula e Obama é um sinal de que a diplomacia brasileira, daqui por diante, será submetida a um teste de maturidade compatível com o bom momento de prestígio internacional que o país atravessa. Lula tornou-se personagem de um irreverente desenho animado da TV americana, South Park, numa demonstração de que sua personalidade começa a se tornar conhecida pelo público mais amplo de outros países. Ele também foi apontado por uma pesquisa de opinião como o segundo presidente mais popular das Américas, atrás apenas de Barack Obama.
O desafio brasileiro será comportar-se como parceiro preferencial dos EUA sem parecer submisso ao vizinho poderoso. “É preciso que haja uma mudança na visão que os Estados Unidos têm da política latino-americana”, disse Lula em sua conversa com Obama. “Nós não temos mais guerra fria, não temos mais luta armada.” Nos últimos 50 anos, a Casa Branca ocupou-se dessa região do mundo em duas oportunidades. Uma delas foi em 1959, depois que Fidel Castro tomou o poder em Cuba e surgiram organizações armadas por todo o continente. Numa reação típica da Guerra Fria, Washington aliou-se a regimes militares que jogaram o continente num longo inverno antidemocrático. Quase três décadas depois, George Bush pai lançou a ideia da Alca, a zona americana de livre comércio. A proposta foi enterrada durante o governo de Bush filho por falta de interesse dos principais parceiros, a começar pelo Brasil de Lula.
Pablo Martinez
Os irmãos e líderes Fidel e Raúl Castro – EUA finalmente acenam para Cuba
As duas questões estiveram presentes em Port of Spain. Numa mudança em direção a Cuba, Obama eliminou uma regra que impunha limites às viagens de cubanos-americanos à terra de seus ancestrais. Também revogou restrições à remessa de divisas para familiares. São decisões simpáticas, mas de pouco efeito prático, diz Marcelo Coutinho, cientista político e fundador do Observatório Político Sul-Americano do Iuperj (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro). “As medidas são coerentes com as promessas de Obama. Mas Cuba precisa de grandes investimentos, principalmente para melhorar a infraestrutura do país, que é precária. Isso só vai ocorrer com o fim do bloqueio econômico”, diz Coutinho, referindo-se ao isolamento comercial, tecnológico e financeiro de Cuba. A caminho de Port of Spain, Obama deixou claro que descarta uma mudança desse tamanho. Repetindo um gesto que a ditadura dos irmãos Castro encara como uma interferência em assuntos internos, convocou “todos os nossos amigos do hemisfério para se unir no apoio a liberdade, igualdade e direitos humanos em Cuba”.
Em encontros preparatórios, diplomatas fizeram o rascunho de um documento para ser assinado pelos chefes de governo – embora qualquer unanimidade seja sempre uma incógnita na presença de Hugo Chávez. Nos capítulos econômicos e sociais, o documento contém afirmações sob medida para obter apoio irrestrito. Compromete-se a reduzir à metade a pobreza do continente até 2015, aumentar os gastos com saúde e educação, elevar a porcentagem de alunos nas universidades – e até reduzir para 30 dias o prazo máximo para abertura e fechamento de empresas.
Um dos pontos polêmicos do documento é o parágrafo 51, em que se faz a defesa de “democracias fortes e de uma boa governança, do império da lei e do respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”. Em dificuldade crescente para manter sua popularidade depois que o preço do petróleo desabou, nas últimas semanas Hugo Chávez multiplicou iniciativas antidemocráticas, colocando em vigor até propostas que a população venezuelana rejeitou em plebiscito. Depois de passar quatro dias em greve de fome para pressionar a oposição a realizar medidas destinadas a encaminhar as eleições onde é candidato favoritíssimo à própria reeleição, o presidente da Bolívia, Evo Morales, declarou-se “marxista, leninista, comunista e socialista”, numa definição a anos-luz de qualquer regime democrático que se preze. Por sua origem ligada a mudanças sociais, e um compromisso sem manchas na relação com a democracia, o governo Lula pode desempenhar um papel decisivo nessa discussão necessária.

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