sábado, 11 de outubro de 2008

O Papel da ONU

Segue texto de autoria do Secretário Geral da Organização das Nações Unidas, Ban Ki-Moon, publicado no dia 10/10/2008 pelo jornal Valor Econômico. O artigo fala sobre a crise global (ou diversas crises globais) e sobre o atual papel da ONU. Destacamos que, dentre suas palavras, está a necessidade de modernização da ONU. Realmente, não é possível que tal instituição supranacional se encontre engessada por mecanismos que refletem a estrutura política pós 2ª guerra.


O Estado do Mundo

Ban Ki-Moon

Todos nós reconhecemos os perigos de hoje. Uma crise financeira global. Uma crise de energia global. Uma crise de alimentos global. As conversações sobre comércio ruíram, outra vez.

Há novas erupções de guerra e violência. A mudança climática ameaça o nosso planeta de forma cada vez mais clara. Dizemos que problemas globais exigem soluções globais.

E, apesar disso, será que agimos? Na verdade, atualmente também enfrentamos uma crise de natureza distinta: o desafio da liderança global. Novos centros de poder e liderança estão despontando - na Ásia, América Latina e por todo o mundo recentemente desenvolvido.

Neste novo mundo, os desafios são progressivamente de colaboração, não de confronto. Os países já não conseguem proteger os seus interesses, ou promover o bem-estar dos seus povos, sem a participação dos demais.

Apesar disso, vejo um perigo de os países olharem para dentro de si mesmos em vez de contemplarem um futuro compartilhado. Eu vejo um perigo de retroceder ante o progresso que já obtivemos, especialmente no âmbito do desenvolvimento econômico e da imparcialidade no compartilhamento dos frutos do crescimento global.

Sim, o crescimento global tirou bilhões de pessoas da pobreza. Se você estiver entre os pobres do mundo, contudo, jamais terá sentido a pobreza tão agudamente. Sim, o Direito e a Justiça internacional jamais foram tão amplamente adotados. Mesmo assim, as pessoas que vivem em países nos quais os direitos humanos são desrespeitados jamais estiveram tão vulneráveis.

Sim, a maioria de nós vive em paz e segurança. No entanto, a violência está se aprofundando em muitos países: Afeganistão, Somália, República Democrática do Congo, Iraque e Sudão.

Seus problemas são parte da emergência de desenvolvimento que enfrentamos. Ao longo do ano passado, o preço dos combustíveis, dos alimentos e das commodities aumentou de forma alarmante. Países ricos se preocupam com recessão, enquanto os pobres já não conseguem se alimentar.

As Metas de Desenvolvimento do Milênio são parte da solução. O progresso, porém, tem sido desigual. Promessas não foram honradas. Mesmo assim, já realizamos o suficiente para saber que as metas estão ao nosso alcance.

As Nações Unidas são os defensores dos mais vulneráveis. Quando os desastres se abatem, nós agimos. Fizemos isso neste ano no Haiti e em outros países caribenhos flagelados por furacões. Fizemos isso após o ciclone Nargis em Myanmar, onde o desafio agora é pressionar por progresso político, inclusive pela adoção de medidas confiáveis em direitos humanos e democracia.

Ajudamos pessoas afetadas por graves inundações no Sudeste da Ásia e por seca no Chifre da África, onde 14 milhões de pessoas precisam de ajuda de emergência. Desde que assumi o cargo, exigi ação mais enérgica na Somália. Precisaremos esperar - e ver mais crianças morrendo na areia?

A crise de alimentos mundial não desaparecerá por si só. Ela pode ter desaparecido das manchetes. Nesta época no ano passado, o arroz custava US$ 330 a tonelada. Hoje seu preço é US$ 730. As pessoas que costumavam comprá-lo por saca hoje o compram a granel. Aqueles que comiam duas refeições ao dia hoje subsistem com uma.

A ONU se concentrou em levar grãos e fertilizantes às mãos dos pequenos agricultores. Almejamos uma nova "revolução verde" na África. Mas carecemos de novos recursos. A comunidade internacional não conjugou as palavras às ações.

Em Burundi e Serra Leoa, Libéria e Timor Leste, nossos recursos estão sob pressão porque as forças de manutenção da paz da ONU estão ajudando países a vencer a crise rumo à paz. A diplomacia preventiva da ONU, porém, é muitas vezes decisiva. Vemos os frutos no Nepal, Quênia e, esperamos, no Zimbábue.

Igualmente, existe uma possibilidade real de reunificar o Chipre. Na Geórgia, a ONU pode ajudar a aliviar as tensões resultantes do conflito recente. Na Costa do Marfim, ajudaremos a organizar eleições antes do fim do ano - um progresso importante rumo à recuperação e à democracia.

Mas é perigoso pensar que a ONU pode lidar com os complexos problemas atuais sem o respaldo pleno dos seus países-membros. Em Darfour, por exemplo, enfrentamos um desafio permanente em atender os prazos de posicionamento. Não dispomos de pessoal e de recursos cruciais. Os mandatos, se não forem combinados com recursos, são vazios.

E agora todo o nosso trabalho - recursos para desenvolvimento, gastos sociais nos países ricos e pobres, as Metas de Desenvolvimento do Milênio, a manutenção da paz - está ameaçado pela crise financeira global. Nós precisamos restaurar a ordem nos mercados financeiros internacionais. Precisamos refletir sobre uma nova ordem econômica global que espelhe mais plenamente as realidades mutantes do nosso tempo.

Essas realidades exigem ação contínua da ONU em inúmeras frentes: combatendo a malária e a Aids, reduzindo a mortalidade infantil e materna, combatendo o terrorismo mundial e assegurando o desarmamento e a não-proliferação nuclear. Na península coreana, todos os acordos das conversações entre as seis partes devem ser implantados, e o Irã deve observar as resoluções do Conselho de Segurança e cooperar plenamente com a Agência Internacional de Energia Atômica.

A área de direitos humanos, acima de tudo, requer a nossa vigilância. A justiça deve ser tratada como um pilar da paz, segurança e desenvolvimento. Precisamos promover a "responsabilidade para proteger". Apesar das dificuldades políticas reais, não podemos deixar que crimes contra a humanidade fiquem impunes.

A mudança climática continua sendo o tema definidor da nossa época. Precisamos reconquistar o nosso impulso. Nosso primeiro teste virá em três meses em Poznam, na Polônia. Até lá, precisaremos ter uma visão compartilhada de um novo acordo de mudança climática global, para substituir o Protocolo de Kyoto, que termina em 2012.

A base de todo o trabalho da ONU é a transparência e a prestação de contas. Precisamos mudar a cultura da ONU. Precisamos nos tornar mais ágeis, mais flexíveis e mais eficazes - mais modernos, enfim. Precisamos substituir o nosso sistema atual de contratos e condições de serviço, que são deficientes e degradantes.

Os países-membros da ONU, porém, também precisam prestar contas. Resoluções que autorizam operações de paz não podem continuar sendo concedidas sem as tropas, dinheiro e material necessários. Não podemos continuar enviando bravos funcionários da ONU - 25 dos quais morreram neste ano - ao redor do mundo sem garantir a sua segurança. Não podemos reformar esta organização sem os recursos necessários.

As incertezas de hoje passarão, mas somente se agirmos sábia e responsavelmente. Assim agindo, estaremos preparando o terreno para uma nova era de estabilidade e prosperidade global, mais ampla e justamente compartilhada.

Ban Ki-Moon é secretário-geral das Nações Unidas. © Project Syndicate/Europe´s World, 2008. www.project-syndicate.org

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