É interessante a leitura de artigo publicado no dia 27 de outubro de 2008 pelo Valor Econômico, no qual um membro do governo paraguaio analisa o impasse entre Brasil e Paraguai no que concerne à hidrelétrica de Itaipu.
Itaipu e o desafio da integração
Ricardo Canese é coordenador da Comissão de Negociação de Itaipu pelo governo paraguaio.
O Paraguai ingressou em uma nova era a partir de 15 de agosto passado, quando Fernando Lugo tomou posse na presidência da República, depois de 61 anos de governos do Partido Colorado, aí incluídos os 35 anos da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). Existe uma grande expectativa de toda a população e um otimismo generalizado, inclusive daqueles que não votaram nele. A situação, porém, não é fácil.
O conflito no campo (onde vive mais de 40% da população) é muito forte entre sem-terra e camponeses, de um lado, e do outro, os grandes produtores (em muitos casos "brasiguaios", brasileiros, ou filhos deles, presentes desde os anos 1970 nas férteis terras do Alto Paraná). Já houve um trabalhador rural sem-terra paraguaio morto em conflitos nos primeiros 60 dias de governo e as organizações camponesas mais radicalizadas têm dado um prazo peremptório de alguns dias aos brasiguaios do Departamento de San Pedro - o mais pobre, onde Fernando Lugo foi bispo - para que se retirem. O governo Lugo busca com equilíbrio e dentro da lei resolver esse problema que herdou dos governos anteriores.
Mas a solução definitiva desse e outros conflitos sociais agudos no país têm como via incontornável a redefinição do papel e inserção de Itaipu na relação bilateral e regional e, por isso, o povo paraguaio espera ver essas tratativas finalizadas com o Brasil o mais breve possível.
Na campanha eleitoral, Fernando Lugo colocou a reivindicação em relação a Itaipu como prioridade. Pela primeira vez essa foi a questão mais importante em uma eleição e sua postura ampliou sua popularidade. Os outros candidatos manifestaram que não queriam "incomodar" o sócio brasileiro. A vitória de Lugo foi contundente (11% na frente da segunda colocada). Pouco antes de sua vitória, o presidente Lula o recebeu em audiência em Brasília, no começo de abril. Foi aí que se determinou o início da negociação que hoje está em andamento. Na reunião dos dois presidentes, em 17 de setembro passado, em Brasília, foi formada uma comissão com delegados dos dois países para analisar os pontos propostos pelo Paraguai.
O que propõe o governo Lugo em relação a Itaipu? Os reclamos paraguaios são seis: 1) a livre disponibilidade da energia paraguaia, para ser vendida a terceiros países ou mesmo ao Brasil; 2) o preço justo da energia paraguaia que é comercializada no Brasil; 3) a redução da dívida e de seu serviço; 4) a co-administração na administração de Itaipu; 5) a transparência e fiscalização das contas de Itaipu; e 6) a conclusão das obras que faltam. O ponto que enfrenta mais resistência por parte do Brasil é o da livre disponibilidade.
O Brasil adota em todos os fóruns uma intransigente defesa de sua soberania em matéria de recursos naturais, tais como a Amazônia e o petróleo do pré-sal. Quando organizações internacionais ou outros países defendem que a Amazônia é um "recurso da humanidade", a resposta do governo Lula é que "a Amazônia é brasileira". Igual postura tem em relação ao petróleo em águas profundas.
Por isso, quando o Paraguai reivindica seu direito de definir soberanamente o uso de seus recursos hidrelétricos (a livre disponibilidade), há algo de inexplicável ao se ouvir do lado brasileiro vozes contrárias a essa reclamação. Por um lado, o Brasil defende seu direito soberano aos seus próprios recursos naturais, mas ao mesmo tempo tem que tentar justificar que tal princípio não deve vigorar para o Paraguai em Itaipu, em relação a sua energia hidrelétrica.
E há outra contradição ainda. O Brasil é um dos maiores impulsionadores da integração regional como o Mercosul e a Unasul, onde inclusive se discute a integração energética regional como uma das prioridades, mas não considera a possibilidade que essa política geral incorpore Itaipu.
Nesse caso, não se trata apenas de princípios, mas de uma conveniência. Nenhum técnico brasileiro nega as vantagens que teria uma forte integração elétrica no Cone Sul da América entre Itaipu e Yacyretá (e Corpus, quando for construída) através do território paraguaio. De fato, falar de integração elétrica neste espaço geográfico é falar de Paraguai, que é o único país que possui verdadeiros excedentes hidrelétricos.
Levando em conta apenas esta década, ocorreram terríveis conjunturas de falta de energia elétrica em Brasil (ano 2001, a um custo avaliado em US$ 15 bilhões), Argentina (em 2007, a um custo de US$ 4 bilhões), no Uruguai (2007-08) e Chile (vários anos). O que o Brasil teria que pagar a mais pela energia paraguaia, a preço de mercado, para evitar que fosse negociada por melhor preço ao sul da região, é menos que o benefício que obteria afastando os perigos do desabastecimento com uma potente interconexão (a mais importante da região) entre Itaipu e Yacyretá, por território paraguaio. Se o Brasil também ganha com a proposta paraguaia de exercer sua soberania em um contexto de integração regional, por que a posição brasileira até o presente tem sido a da não-integração elétrica do Cone Sul? Em nossa opinião, há uma defasagem nessa posição, que ainda está orientada pela pesada herança do período militar, em relação à realidade de nossos países, os desafios que temos e os compromissos comuns que estamos assumindo no conjunto de nossas relações bilaterais e regionais.
Nosso governo está convencido que finalmente chegaremos a um acordo para aplicar plenamente neste tema os princípios que compartilham nossas políticas exteriores, da soberania nacional de cada país sobre seus recursos e da integração regional. Estamos seguros disso porque é evidente a conveniência para todos (o Brasil incluído) e porque, como expressou o presidente Lula quando se despediu do presidente Lugo, em Brasília, "o Brasil não quer enriquecer provocando mais pobreza em um país mais pobre como o Paraguai". Os conflitos sociais de que falávamos no início são resultado de décadas de políticas de concentração de renda, corrupção e de abandono do projeto nacional. Na nova era que iniciamos no dia 15 de agosto, nosso governo lidera um novo projeto para o país onde a prioridade é um desenvolvimento sustentável com inclusão social. As redefinições que propomos em relação a Itaipu são peça-chave desse desenvolvimento nacional e da nova inserção do Paraguai na região.
Itaipu e o desafio da integração
Ricardo Canese é coordenador da Comissão de Negociação de Itaipu pelo governo paraguaio.
O Paraguai ingressou em uma nova era a partir de 15 de agosto passado, quando Fernando Lugo tomou posse na presidência da República, depois de 61 anos de governos do Partido Colorado, aí incluídos os 35 anos da ditadura de Alfredo Stroessner (1954-1989). Existe uma grande expectativa de toda a população e um otimismo generalizado, inclusive daqueles que não votaram nele. A situação, porém, não é fácil.
O conflito no campo (onde vive mais de 40% da população) é muito forte entre sem-terra e camponeses, de um lado, e do outro, os grandes produtores (em muitos casos "brasiguaios", brasileiros, ou filhos deles, presentes desde os anos 1970 nas férteis terras do Alto Paraná). Já houve um trabalhador rural sem-terra paraguaio morto em conflitos nos primeiros 60 dias de governo e as organizações camponesas mais radicalizadas têm dado um prazo peremptório de alguns dias aos brasiguaios do Departamento de San Pedro - o mais pobre, onde Fernando Lugo foi bispo - para que se retirem. O governo Lugo busca com equilíbrio e dentro da lei resolver esse problema que herdou dos governos anteriores.
Mas a solução definitiva desse e outros conflitos sociais agudos no país têm como via incontornável a redefinição do papel e inserção de Itaipu na relação bilateral e regional e, por isso, o povo paraguaio espera ver essas tratativas finalizadas com o Brasil o mais breve possível.
Na campanha eleitoral, Fernando Lugo colocou a reivindicação em relação a Itaipu como prioridade. Pela primeira vez essa foi a questão mais importante em uma eleição e sua postura ampliou sua popularidade. Os outros candidatos manifestaram que não queriam "incomodar" o sócio brasileiro. A vitória de Lugo foi contundente (11% na frente da segunda colocada). Pouco antes de sua vitória, o presidente Lula o recebeu em audiência em Brasília, no começo de abril. Foi aí que se determinou o início da negociação que hoje está em andamento. Na reunião dos dois presidentes, em 17 de setembro passado, em Brasília, foi formada uma comissão com delegados dos dois países para analisar os pontos propostos pelo Paraguai.
O que propõe o governo Lugo em relação a Itaipu? Os reclamos paraguaios são seis: 1) a livre disponibilidade da energia paraguaia, para ser vendida a terceiros países ou mesmo ao Brasil; 2) o preço justo da energia paraguaia que é comercializada no Brasil; 3) a redução da dívida e de seu serviço; 4) a co-administração na administração de Itaipu; 5) a transparência e fiscalização das contas de Itaipu; e 6) a conclusão das obras que faltam. O ponto que enfrenta mais resistência por parte do Brasil é o da livre disponibilidade.
O Brasil adota em todos os fóruns uma intransigente defesa de sua soberania em matéria de recursos naturais, tais como a Amazônia e o petróleo do pré-sal. Quando organizações internacionais ou outros países defendem que a Amazônia é um "recurso da humanidade", a resposta do governo Lula é que "a Amazônia é brasileira". Igual postura tem em relação ao petróleo em águas profundas.
Por isso, quando o Paraguai reivindica seu direito de definir soberanamente o uso de seus recursos hidrelétricos (a livre disponibilidade), há algo de inexplicável ao se ouvir do lado brasileiro vozes contrárias a essa reclamação. Por um lado, o Brasil defende seu direito soberano aos seus próprios recursos naturais, mas ao mesmo tempo tem que tentar justificar que tal princípio não deve vigorar para o Paraguai em Itaipu, em relação a sua energia hidrelétrica.
E há outra contradição ainda. O Brasil é um dos maiores impulsionadores da integração regional como o Mercosul e a Unasul, onde inclusive se discute a integração energética regional como uma das prioridades, mas não considera a possibilidade que essa política geral incorpore Itaipu.
Nesse caso, não se trata apenas de princípios, mas de uma conveniência. Nenhum técnico brasileiro nega as vantagens que teria uma forte integração elétrica no Cone Sul da América entre Itaipu e Yacyretá (e Corpus, quando for construída) através do território paraguaio. De fato, falar de integração elétrica neste espaço geográfico é falar de Paraguai, que é o único país que possui verdadeiros excedentes hidrelétricos.
Levando em conta apenas esta década, ocorreram terríveis conjunturas de falta de energia elétrica em Brasil (ano 2001, a um custo avaliado em US$ 15 bilhões), Argentina (em 2007, a um custo de US$ 4 bilhões), no Uruguai (2007-08) e Chile (vários anos). O que o Brasil teria que pagar a mais pela energia paraguaia, a preço de mercado, para evitar que fosse negociada por melhor preço ao sul da região, é menos que o benefício que obteria afastando os perigos do desabastecimento com uma potente interconexão (a mais importante da região) entre Itaipu e Yacyretá, por território paraguaio. Se o Brasil também ganha com a proposta paraguaia de exercer sua soberania em um contexto de integração regional, por que a posição brasileira até o presente tem sido a da não-integração elétrica do Cone Sul? Em nossa opinião, há uma defasagem nessa posição, que ainda está orientada pela pesada herança do período militar, em relação à realidade de nossos países, os desafios que temos e os compromissos comuns que estamos assumindo no conjunto de nossas relações bilaterais e regionais.
Nosso governo está convencido que finalmente chegaremos a um acordo para aplicar plenamente neste tema os princípios que compartilham nossas políticas exteriores, da soberania nacional de cada país sobre seus recursos e da integração regional. Estamos seguros disso porque é evidente a conveniência para todos (o Brasil incluído) e porque, como expressou o presidente Lula quando se despediu do presidente Lugo, em Brasília, "o Brasil não quer enriquecer provocando mais pobreza em um país mais pobre como o Paraguai". Os conflitos sociais de que falávamos no início são resultado de décadas de políticas de concentração de renda, corrupção e de abandono do projeto nacional. Na nova era que iniciamos no dia 15 de agosto, nosso governo lidera um novo projeto para o país onde a prioridade é um desenvolvimento sustentável com inclusão social. As redefinições que propomos em relação a Itaipu são peça-chave desse desenvolvimento nacional e da nova inserção do Paraguai na região.
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