domingo, 12 de outubro de 2008

Guantánamo e o juiz Urbina

O jornal Estado de São Paulo publica no dia 12 de outubro matéria sobre a biografia do juiz Ricardo Urbina, que determinou a libertação de 17 chineses detidos na base americana de Guantánamo. Tal determinação foi posteriormente suspensa, entretanto, conforme as próprias palavras do juiz, ela pode se tornar um precedente que encoraje outras cortes a examinar mais de perto sua tarefa de agir, mesmo quando a questão da separação de Poderes vêm à tona.


O Juiz que Desafia a Doutrina Bush

Autor de decisão inédita sobre presos de Guantánamo, Ricardo Urbina não tem medo do Lobo Mau. Há muito tempo

Flávia Tavares

Dezessete chineses muçulmanos, da minoria uigur, protagonizaram decisão inédita da Justiça americana nessa semana. Eles estão presos em Guantánamo, o já famoso centro de detenção fincado pelos Estados Unidos na região sudeste de Cuba, onde se encontram 255 detentos. E estão lá há quase sete anos. Por ordem do juiz federal Ricardo M. Urbina, de Washington, seriam libertados na última sexta-feira, quando deveriam se apresentar diante do magistrado. O parecer de Urbina foi recebido pela imprensa e por defensores dos direitos humanos como um marco histórico: pela primeira vez desde que a prisão foi aberta naquela península cubana, detentos não-americanos seriam soltos e levados para os EUA.
Para fundamentar sua decisão, Urbina argumentou que os chineses não são considerados “combatentes inimigos” pelo Departamento de Justiça . Portanto, não poderiam ser mantidos presos. Por outro lado, não deveriam ser extraditados para a China, onde são considerados terroristas e podem sofrer mais abusos e torturas. Como nenhum outro país aceitou recebê-los, ficariam sob custódia do governo americano.
A reação da administração Bush veio rápida: um tribunal de apelação determinou, acatando moção de urgência do governo, que os prisioneiros permanecessem em Guantánamo até que fosse feita uma nova avaliação do caso, o que deve acontecer em 16 de outubro. O marco histórico de Urbina sofreu, assim, um duro revés: a libertação dos uigures pode demorar anos para acontecer. Mas, seja como for, o juiz assinou a sentença com a tinta da coragem.
Ricardo M. Urbina, 62 anos, nascido em Nova York, filho de um hondurenho e de uma porto-riquenha, parece não temer contragolpes do governo. “Embora a independência do sistema legal americano seja atacada com freqüência, ele permanece sendo um dos mais eficientes do mundo”, afirmou, por e-mail, em entrevista ao Aliás. Não é a primeira vez que atua em favor de detentos de Guantánamo. Em 2006, quatro cidadãos britânicos presos na ilha formalizaram reclamações contra o Pentágono, com acusações de tortura física e psicológica e afrontas à sua fé islâmica. Urbina determinou, então, que a prisão deveria seguir as leis americanas de respeito à livre escolha de religião. E que os quatro prisioneiros teriam o direito de processar o Estado que os deteve.
A trajetória do juiz atesta sua independência. Formado pela Universidade Georgetown, em Washington - onde ganhou medalhas por seu desempenho nas pistas de atletismo e um lugar no Hall da Fama dos atletas da escola -, Urbina foi inicialmente indicado pelo presidente democrata Jimmy Carter, em 1980, para uma posição na corte de Washington. No ano seguinte, na primeira nomeação do presidente republicano Ronald Reagan, tornou-se o primeiro juiz hispânico na história do distrito. Finalmente, em 1994, outro democrata, Bill Clinton, o nomeou juiz federal por Washington, também o primeiro latino a ocupar a posição. Enquanto ascendia na carreira pública, Urbina se dedicava paralelamente à acadêmica, tendo sido professor na Universidade Howard (onde dirigiu o Programa de Justiça Criminal e foi eleito, pelos alunos, professor do ano em 1978), em Harvard e na Universidade George Washington.
Sob a toga de juiz, esteve à frente da Divisão de Família do tribunal de Washington e enfrentou ali alguns casos que o marcaram. Como o de um homem HIV positivo que havia molestado sexualmente, sem preservativo, cinco garotos e cujas provas a polícia havia coletado ilegalmente. “Tive de suprimir do processo algumas evidências muito importantes, impedindo a promotoria de usá-las”, lembra. Nem todos os garotos queriam testemunhar e aqueles que aceitaram falar passaram pelo enorme constrangimento de contar com detalhes a violência sexual a que foram submetidos a um júri de 14 desconhecidos. “Os jurados condenaram o réu mesmo sem aquelas provas adicionais. E eu o sentenciei à prisão perpétua. Foi meu caso mais difícil até hoje.” Ele então montou um comitê e redigiu o que viria a ser a lei de apoio à criança de Washington, uma espécie de Estatuto da Criança e do Adolescente da capital. Também ali Urbina criou o gabinete de Serviços de Intérprete da corte, que pela primeira vez institucionalizou a prática de o tribunal oferecer tradutores para estrangeiros e deficientes auditivos no distrito.
No âmbito político, dois processos julgados por ele ficaram célebres. A condenação da alemã naturalizada americana Ana Montes, uma analista de serviços de inteligência que espionava para Cuba, a 25 anos de prisão. Isso foi em 2002. “Se você não pode amar seu país”, Urbina disse à ré, “pelo menos não deveria prejudicá-lo.” O outro foi o do empresário Douglas Jemal, acusado de fraude, em 2007. Para Urbina, o trabalho filantrópico de Jemal com moradores de rua amenizava suas ações ilícitas e, por isso, o juiz ordenou que ele servisse um período em condicional e pagasse uma multa, sem ir para a cadeia. Foi uma decisão polêmica, mas que refletiu, em alguma medida, a preocupação social de Urbina. Batalhador dos direitos da comunidade hispânica, ele recebeu diversas condecorações e virou até nome de prêmio da Hispanic Bar Association de Washington.
Nenhum desses casos, porém, tem o peso da decisão sobre os uigures de Guantánamo. Mesmo que a administração de Bush consiga revertê-la, o ineditismo da ação do juiz pode causar um impacto no tratamento dado a esses prisioneiros no futuro. Para Flávia Piovesan, especialista em direito constitucional e direitos humanos, “o central dessa decisão é a firmeza de impor limites jurídicos à doutrina Bush de segurança nacional, em que tudo se faz possível na repressão arbitrária e ilegal dos chamados ‘combatentes inimigos’.” Jennifer Daskal, conselheira jurídica para contraterrorismo da organização Human Rights Watch, em Washington, concorda com Flávia. Mas está muito frustrada com o bloqueio da decisão pelo tribunal de apelação. “Esperamos que nosso próximo presidente, seja ele quem for, tenha como prioridade máxima fechar Guantánamo. Aqueles contra quem houver provas devem ser formalmente acusados. Os outros devem ser libertados e mandados de volta para seus países”, disse Jennifer ao Aliás.
Perguntado sobre o que seu parecer pró-uigures pode representar no futuro, o juiz Urbina afirma que, por ser a primeira vez que o Judiciário federal foi chamado a julgar casos como esse, “ela pode se tornar um precedente que encoraje outras cortes a examinar mais de perto sua tarefa de agir, mesmo quando a questão da separação de Poderes vêm à tona.” É um chamamento à responsabilidade, portanto, acima das pressões governamentais.
Quando cursava a faculdade, nos anos 60, o movimento pelos direitos civis influenciou o jovem estudante negro. “A contradição entre o que as leis diziam e como eram aplicadas me levou a crer que este país precisava de mudanças profundas para fazer jus aos padrões firmados pela Constituição”, explica. A obediência à Constituição, inclusive, é a base de sua fundamentação no caso dos chineses.
Urbina é casado e tem dois filhos, ambos jornalistas. Mora em Washington com a mulher e chegou a atuar como conselheiro de algumas escolas em regiões carentes, principalmente voltadas a crianças hispânicas. Certa vez, numa iniciativa conjunta com a organização Teach for America, organizou e presidiu o julgamento do caso Estado de Nova York versus Lobo Mau. Isso mesmo. O Lobo Mau finalmente seria julgado por assoprar as casas dos Três Porquinhos. O júri foi formado por 150 alunos do terceiro ano do ensino fundamental, a grande maioria de ascendência latina. Depois de uma breve deliberação, os estudantes, por unanimidade, declararam o Lobo Mau inocente. O julgamento teve transmissão pela rádio pública nacional. A idéia, diz a biografia de Urbina enviada por sua assistente ao Aliás, “era ilustrar como qualquer um recebe um julgamento justo diante do juiz Ricardo M. Urbina.” Até mesmo o Lobo Mau.

Um comentário:

Prof. Ribas disse...

Postagem excelente de Renan Cardoso que demonstra o perfil de um juiz norte-americano - suas origens, a nomeação por Clinton e seu traço político-ideológico. Esta trajetória nítida falta aos juízes brasileiros mesmo ressalvando o fato de termos o critério do mérito burocrático de ingresso.