Meio século de liberdades negativas
Ademar Seabra da Cruz
Neste 31 de outubro, cumpre 50 anos uma das mais célebres e influentes conferências da teoria política de todos os tempos, "Dois conceitos de liberdade", de Isaiah Berlin, proferida na inauguração de cátedra que criara em Oxford, em 1958. Trata-se da ocasião em que Berlin cunhou a expressão "liberdade negativa" para designar um espaço mínimo de fronteiras não discerníveis em que o exercício da autonomia individual não pode ser restringido ou coagido por qualquer instituição social ou política. Diversos comentaristas consideram a conferência de 1958 como uma das maiores contribuições de todos os tempos para o pensamento liberal e para a definição de liberdade.
Talhado na pura tradição da filosofia analítica, Berlin - nascido em Riga, na atual Letônia, e radicado praticamente toda a vida em Oxford - foi pioneiro em distinguir o conceito de liberdade de outros assemelhados, de corte liberal e republicano, como justiça e fraternidade. Seu conceito de liberdade negativa terá sido ainda mais preciso (e radical) ao dissociar-se de automatismos que vinculavam liberdade com regimes de governo, como a democracia. Com esta a liberdade negativa manteria relação de afinidade, mas não de necessidade. Segundo Berlin, a pergunta "o que eu posso ser ou fazer?" é logicamente distinta de "por quem sou governado, ou quem tem o direito de me governar?". Berlin sustenta que, em certos períodos de despotismo do Século XIX, vivia-se com mais liberdade que em muitas democracias do Século XX.
Conceito-espelho de liberdade negativa é o de "surgimento do indivíduo", entendido a partir de um movimento que segue da plena constituição social da pessoa até chegar ao "eu" liberal desenraizado, independentemente de seus vínculos e lealdades sociais. Com base nesse conceito, Berlin trata a liberdade de modo bastante diverso de outro epígono do liberalismo, Benjamin Constant, que numa também célebre conferência ("Da liberdade dos antigos comparada à dos modernos") sustenta que nos regimes e sistemas políticos da antigüidade o conceito de liberdade individual carecia de sentido político-social. Para o filósofo suíço, a possibilidade de participação nos negócios da polis ou o princípio rousseauniano da legitimidade bastariam (numa acepção "positiva", republicana) para assegurar o exercício das liberdades individuais.
Berlin refuta a proposta de Constant de equiparar a liberdade positiva à negativa, ao rejeitar o utilitarismo e o comunitarismo como bases para a promoção das liberdades individuais: "Se minha liberdade, de minha classe ou país, dependesse da miséria de outros seres humanos, então o sistema que promove essa liberdade é injusto e imoral". Estava também consciente de que, na prática, sua noção de liberdade negativa não constituía uma virtude suprema a que a grande maioria da humanidade desejaria aspirar. Valores como segurança, status, poder, recompensas na próxima vida, entre outros, incompatíveis com a maximização das liberdades individuais, apelariam mais à consciência dos povos. A elevação da liberdade na escala dos valores humanos depende da formação da autoconsciência, que requer, por sua vez, a universalização do acesso à educação, num movimento semelhante ao preconizado por pensadores como Hegel, Marx e Paulo Freire ("Entender o mundo é libertar-se"; "o ato de compreender já corresponde à ação").
A primazia da educação como requisito para a liberdade faz com que Isaiah Berlin acompanhe Kant ao considerar o paternalismo como "o maior despotismo imaginável", uma vez que gera a concepção falaciosa de que as pessoas são incapazes de formular seus próprios projetos de vida, ou de que tais projetos devem ser submetidos a uma determinada interpretação da verdade. Uma das mais memoráveis passagens de "Dois conceitos" é quando Berlin identifica na não-interferência o caminho para a dignidade individual, para o reconhecimento e a construção da personalidade. O paternalismo, o arbítrio, o desrespeito à impessoalidade do direito e a (des)caracterização da pessoa como meio constituem práticas abomináveis porque lhe rouba a autonomia e a identidade.
Do mesmo modo que Berlin denunciava o assalto à autonomia de parte de regimes demagógicos e populistas, rejeitava o livre mercado - diferentemente, portanto, de Constant e da tradição liberal - como uma forma "brutal" e "inescrupulosa" de atentar contra os direitos dos menos aptos e afortunados: "Liberdade para os lobos representa quase sempre a morte para as ovelhas". Mais além, protesta que "os malefícios do laissez-faire irrestrito (...) acarretaram violações inaceitáveis da liberdade negativa e dos direitos básicos".
Longe, no entanto, de bandear-se para as fileiras do socialismo ou do comunitarismo, Berlin lançou, em "Dois conceitos", as bases para uma profunda revisão do liberalismo, que culminaria anos depois com a obra de John Rawls. Percebe-se claramente na conferência de 1958 princípios da ética deontológica; surgem os fundamentos do "consenso superposto" e do "fato do pluralismo"; enunciam-se protovisões dos "valores justos da liberdade"; e notam-se profundas marcas da liberdade negativa nos princípios de justiça depreendidos do contratualismo de Rawls.
Um dos aspectos mais marcantes do liberalismo berliniano é o de que não se presta a justificar nenhuma doutrina com pretensão ao universalismo nem qualquer visão abrangente de mundo. O baluarte que quer defender é o da ampliação da margem de liberdade de todo indivíduo, de poder dirigir sua vida e não ser dirigido (tal como proclama o brasão de São Paulo, non dvcor, dvco). O contrato social consiste basicamente em atribuir a um poder maior a tarefa de impedir, contra qualquer pretexto ou circunstância, a afronta às liberdades: seja de parte mercado anárquico, da onipresença do Estado ou dos valores associados à própria democracia. "Dois conceitos de liberdade" é mais que um breviário liberal, pois consiste numa das grandes formulações analíticas da teoria política de todos os tempos. Expressa um momento de autoconsciência do homem e um dos pontos culminantes da civilização.
Ademar Seabra da Cruz, diplomata, doutor em Sociologia (USP) e membro do CEDEC-SP. Publicou "Justiça como Eqüidade" (Lumen Juris).