segunda-feira, 28 de setembro de 2009

A visão americana de Zelaya

Folha de São Paulo, segunda-feira, 28 de setembro de 2009



ENTREVISTA

JULIA SWEIG

Honduras expõe tensão recente entre governos de Brasil e EUA
Para especialista, diplomacia brasileira pode ter "atenção mais positiva" da Casa Branca com tom mais firme sobre o Irã

O "SURPREENDENTE" protagonismo que o Brasil adquiriu na crise em Honduras, em contraste com a posição vacilante dos EUA, expõe a tensão recente entre os dois países, depois de um início que parecia promissor após a posse de Barack Obama, em janeiro. O Brasil vê sua expectativa de ser a ponte para uma relação renovada entre a Casa Branca e a região frustrada pelo novo governo, "incrivelmente vulnerável" à oposição conservadora no Congresso e até agora sem porta-voz para a política hemisférica. Mas é possível que os EUA esperem posição mais firme do Brasil numa questão que consideram vital, o programa nuclear do Irã.

CLAUDIA ANTUNES
DA SUCURSAL DO RIO

Este é, em resumo, o diagnóstico feito por Julia Sweig, diretora para a América Latina do Council on Foreign Relations, que reúne parte da elite dos estudiosos da política externa americana. Sweig conversou com a Folha por telefone e e-mail no fim de semana. Abaixo, trechos da entrevista.




FOLHA - A Casa Branca parecia satisfeita com a situação que havia antes da volta do presidente deposto Manual Zelaya a Honduras, de esperar para ver o que fazer depois das eleições lá. Qual a sua opinião?
SWEIG - Não sei. Se você pensar que a estratégia do Departamento de Estado e da Casa Branca sempre foi se mover vagarosamente, até que houvesse eleições que eles pudessem descrever como legítimas, pode-se dizer que estavam satisfeitos. Mas na semana retrasada veio o anúncio de que eles [do governo americano] finalmente imporiam sanções adicionais [ao governo golpista]. Portanto, ainda havia dúvidas sobre se as eleições poderiam ser reconhecidas. E agora a ONU anunciou que vai retirar sua assistência eleitoral. Acho, francamente, que ninguém sabe o que fazer.

FOLHA - Por que os EUA se moveram tão devagar?
SWEIG - O fator importante é que este governo, pelo menos no que diz respeito à América Latina, tem tentado excessivamente acomodar a oposição no Congresso, fantasmas da Guerra Fria que saíram do armário com esse evento [o golpe hondurenho]. Depois que Obama e [a secretária de Estado] Hillary Clinton disseram as coisas certas sobre restaurar o governo legítimo, foram alvo de uma chuva de críticas por supostamente facilitar a aliança chavista na região. E se mostraram incrivelmente vulneráveis. Claro que o oposto é verdadeiro. Ao se moverem com mais força para restaurar Zelaya, eles teriam esvaziado a retórica de [o presidente da Venezuela, Hugo] Chávez. Essas forças no Congresso ainda seguram a confirmação do novo secretário de Estado assistente para a região [Arturo Valenzuela] e do novo embaixador no Brasil [Thomas Shannon, ex-responsável pelo hemisfério no Departamento de Estado].

FOLHA - Qual o impacto regional de o Brasil ter recebido Zelaya na embaixada?
SWEIG - É cedo para dizer. Mas acho que isso surpreendeu, porque o Brasil não tem tradicionalmente esse ativismo em sua política externa. É muito ativo nos bastidores, na resolução de conflitos na América do Sul etc. Mas Honduras é o último lugar na América Latina onde você esperaria que o Brasil assumisse um papel ativo. Acho que a frustração foi crescendo, o compromisso verbal dos EUA com a democracia não foi apoiado por fatos. E isso, claro, dá ao Brasil uma oportunidade para elevar sua posição na região.

FOLHA - Mas o governo brasileiro também é acusado de intromissão nos assuntos internos hondurenhos. Qual o limite entre intervenção indevida e a defesa da democracia?
SWEIG - Esse é um longo debate. A Carta Democrática da OEA (Organização dos Estados Americanos) não é um documento intervencionista. Há uma grande diferença entre tomar medidas para corrigir violações de princípios articulados na Carta e intervir em assuntos internos de outro Estado. Mas o risco de ser uma potência nesta região ou globalmente é que você fica vulnerável à acusação de intervenção, seja por ação ou seja por omissão. Do meu ponto de vista, a disposição do Brasil em enfatizar a legitimidade do pleito de Zelaya pela volta à Presidência não deve ser confundida com intervenção no sentido clássico. Dito isso, pode ser que ir da retórica à prática, permitindo que Zelaya se estabeleça na embaixada, seja um passo ambicioso demais mesmo para o compromisso do governo Lula em restaurar a ordem democrática.

FOLHA - E o que isso significa na relação do Brasil com os EUA?
SWEIG - Não vi os EUA dizerem nada publicamente sobre a decisão do Brasil de permitir a entrada de Zelaya na embaixada. Você viu?

FOLHA - O chanceler Celso Amorim e a embaixadora americana na ONU tiveram uma discussão [na sexta-feira]. A embaixadora disse que o Brasil recorrera ao fórum errado para tratar de Honduras.
SWEIG - Lembre-se de que hoje não há nenhuma liderança respondendo pela América Latina no governo americano. Temos o Afeganistão, a questão nuclear no Irã. O último lugar em que este governo quer pôr sua energia é na região. O que eu diria é que há tensões entre EUA e Brasil, como essa conversa sobre Honduras sugere. Mas isso pode forçar uma atenção [ao Brasil] em nível superior, porque os dois governos, seja no G20, no tema da mudança climática, em Cuba, precisam um do outro. Ambos têm a ganhar com relações mais fortes e menos polarizadas.

FOLHA - O acordo para o uso pelos EUA de bases na Colômbia contribuiu para essa tensão?
SWEIG - Nos primeiros nove meses deste ano, o Brasil queria ser visto como a potência na América do Sul que poderia ajudar Washington a recuperar sua posição na região. Mas ocorreu que, primeiro, do ponto de vista brasileiro os EUA não se moveram com a rapidez esperada na questão de Cuba [o governo brasileiro tem insistido no fim do embargo]. Depois, vieram as bases. Acho que falhas da diplomacia americana levaram a uma batalha desnecessária. Se a consulta à região tivesse sido mais séria, a tensão poderia ter sido evitada.

FOLHA - Quem está no comando da diplomacia para a região nos EUA?
SWEIG - Ninguém sabe. Thomas Shannon submergiu, porque não quer pôr em risco sua confirmação para a embaixada em Brasília. Não acho que isso [a disputa sobre as bases] teria acontecido se ele e Valenzuela não tivessem sido tão enfraquecidos pelo caso de Honduras. E aí é que tudo se junta.

FOLHA - Há preocupação nos EUA com o acordo militar entre Brasil e França?
SWEIG - Diria que há alguma preocupação, não porque seja a França, que é aliada dos EUA, mas porque reflete a redução da influência dos EUA na região. Mas há algo importante sobre o Irã.

FOLHA - O que é?
SWEIG - Com o aumento do foco sobre o Irã, haverá uma expectativa em Washington de que uma potência como o Brasil deve se juntar a França, Reino Unido, EUA, Alemanha, China e Rússia [o grupo que iniciará negociações com Teerã na próxima quinta-feira] na advertência ao Irã de que haverá um preço a pagar por não cumprir as regras da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica) ou enganá-la.
A percepção de que o presidente Lula se preocupa pouco com as pretensões nucleares do Irã ou com a anormalidade extrema das últimas eleições [iranianas] pode alimentar a sensação em Washington de que o problema brasileiro em Honduras poderia ter uma atenção mais positiva dos EUA se o Brasil expressasse posição mais dura sobre o Irã.
Proliferação nuclear e Irã são questões vitais para os EUA, e a impressão de que Lula tenta ficar acima disso pode diminuir a posição brasileira em temas mais perto de casa. O Brasil pode condenar as instalações secretas iranianas [denunciadas por EUA, França e Reino Unido na semana passada] sem sacrificar suas prioridades nas relações Sul-Sul.

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