terça-feira, 1 de setembro de 2009

Será que a ficha começa a cair?

Valor Econômico

01/09/2009

José Eli da Veiga

As elites brasileiras não estão de olho no futuro, repetindo atitude que por vezes chega a parecer sua sina: perder o bonde da história.

No Século XIX optaram por uma estratégia fundiária inversa à que havia alavancado todos os países que lideraram a primeira revolução industrial e que também estava sendo posta em prática nos Estados Unidos. Em vez de promoverem o acesso à propriedade da terra, preferiram criar uma multidão de excluídos que garantisse farta mão-de-obra barata aos seus negócios exportadores de produtos primários.

No Século XX, também pegaram a contramão de países que conseguiram se aproximar do pequeno clube formado pelas nações que já tinham se desenvolvido por terem sido as pioneiras da era industrial. Como se fosse o avesso da tigrada asiática, a baleia Brasil se dotou de um sistema educacional tão excludente quanto sua estrutura fundiária, o que a impediu de transformar em desenvolvimento os frutos de um desempenho econômico que por alguns decênios chegou a ser exuberante.

Hoje, essas mesmas elites que conseguiram evitar a distribuição da riqueza e abertura de acesso à educação mostram-se cegas para a importância estratégica do único trunfo que poderá virar a mesa no Século XXI. O trevo CT&I: Ciência, Tecnologia e Inovação. Basta prestar atenção à disputa que estão travando sobre a exploração dessa incógnita chamada pré-sal. Se estivessem de olho no futuro, aquilo que está sendo eufemisticamente chamado de "receita" da exploração petrolífera deveria ser integralmente investido na construção de um sistema de CT&I capaz de preparar a sociedade para os dois maiores desafios deste século: a transição ao baixo carbono e a nova etapa da globalização marcada pela ressurreição chinesa. Em vez disso, se apressam em retalhar as prováveis rendas desse escasso recurso natural para atender interesses que nem de longe poderiam colocar o Brasil no rumo do desenvolvimento. E desenvolvimento que agora não pode mais deixar de ser ambientalmente sustentável.

É verdade que um segmento parece começar a esboçar um movimento de ruptura com a cegueira histórica que manteve adormecido o gigante tropical. Tanto o evento promovido na última terça-feira por parceria do Valor com a GloboNews, quanto a muito bem-vinda entrevista que o ministro Celso Amorim concedeu ao jornalista André Trigueiro, são indícios de que a ficha pode estar começando a cair, pelo menos entre a banda mais antenada do empresariado. Todavia, mesmo aí falta clareza sobre a importância que terá para as condições de vida das futuras gerações a atribuição de prioridade absoluta para um sistema de CT&I que esteja à altura dos desafios deste século. Esses expoentes do empresariado brasileiro só sugerem ao governo que seja proativo nas negociações sobre o desdobramento do Protocolo de Kyoto e que se empenhe pela simplificação do MDL (Mecanismo de desenvolvimento limpo) e criação de algum Redd (incentivo para a redução de emissões por desmatamento e degradação florestal).

Quem leu o excelente suplemento especial do Valor intitulado Mudanças Climáticas (26/ago) certamente notou que a sustentabilidade não está dentro do modelo de negócios das empresas signatárias de uma carta "que representa um marco na posição do setor produtivo rumo à economia de baixo carbono" (p.F1). Da mesma forma que a sustentabilidade também está fora do arranjo político-econômico da governança brasileira, mesmo que finalmente o Itamaraty comece a levar mais a sério aquilo que sempre lhe disseram os ministros do Meio Ambiente ao longo das últimas duas décadas. Praticamente todo o resto do governo - inclusive o Ministério de Ciência & Tecnologia - é vítima da cegueira histórica que trava o desenvolvimento do Brasil. E disso não há evidência mais chocante do que o papel da Casa Civil na concepção do PAC e do marco regulatório para a exploração do pré-sal.

Simultaneamente, também há sinais muito positivos de inquietude no andar de baixo, como mostram os resultados da campanha "Brasil Ponto a Ponto" realizada pelo Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) com apoio de 25 parceiros, entre as quais Rede Globo, TIM e Natura. O objetivo foi estimular o debate sobre o que precisa ser mudado no Brasil para melhorar a vida das pessoas. Depois de árdua análise da imensa diversidade de meio milhão de respostas, os técnicos do PNUD concluíram que a principal mensagem foi "valores".

Isso não quer dizer que não tenha sido dado muito destaque a outras preocupações, como violência, educação, política pública, emprego, meio ambiente ou saúde (nessa ordem). Mas constatou-se que a ênfase em algum desses seis temas quase sempre apontava como principal dificuldade o déficit de valores humanos. E dos mais básicos, como respeito, honestidade ou racionalidade. O que é óbvio ululante quando se diz que o que mais precisa mudar é a violência, mas tal escolha recai sobre o emprego, por exemplo.

Será bem complexa a elaboração do próximo Relatório de Desenvolvimento Humano Nacional do PNUD, pois no Brasil há pouco acúmulo de conhecimento científico sobre a questão dos valores, em contraste com a literatura internacional nos âmbitos da psicologia social, antropologia ou ciência política. Mas uma coisa essa pioneira iniciativa já deixou bem clara: a percepção de que as mudanças que realmente poderão melhorar a vida das pessoas se referem à interdependência entre ética e economia. Justamente aquilo que sumiu da teoria econômica convencional com a redução do bem-estar a utilidades.

Pergunta: seria preciso dizer algo mais para saudar a entrada da senadora Marina Silva na corrida à Presidência da República em 2010? O que o Brasil mais precisa para avançar é de uma estadista imaculada que mostre aos gerentes o rumo do desenvolvimento sustentável. Esse valor que emergiu há exatos 30 anos e precisará ser incluído na sexagenária Declaração Universal dos Direitos Humanos.

José Eli da Veiga, professor titular da Faculdade de Economia (FEA) e orientador do Programa de Pós-Graduação do Instituto de Relações Internacionais (IRI) da Universidade de São Paulo, escreve mensalmente às terças.

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