O Globo
06/09/2009
Deborah Berlinck
Presidente da França diz que bloco vai se abrir para incluir o Brasil e mais cinco emergentes
PARIS. A morte do G-8 — o grupo de 7 países ricos, mais a Rússia, que durante anos ditou sozinho soluções para os problemas do mundo — tem data marcada: 2011. Em entrevista exclusiva ao GLOBO, por e-mail, o presidente da França, Nicolas Sarkozy, que chega hoje ao Brasil, confirmou que no ano em que a França assumirá a presidência rotativa do G-8, ele mesmo vai selar a morte, ao consolidar um grupo maior: o G-14, que inclui Brasil, China, Índia, México, África do Sul e Egito.
Fim da exclusividade dos ricos. Só não disse se seus companheiros do G-8, como os EUA ou o Japão (que se opõe), vão concordar. Sarkozy, que os diplomatas brasileiros descrevem como o presidente de país rico que mais defende as ambições brasileiras, diz que vai insistir na reunião do G-20 (países ricos e emergentes) em Pittsburgh, nos EUA, no final deste mês, na necessidade de agilizar a reforma da governança global, “que deve abrir mais espaço aos grandes países emergentes, a começar pelo Brasil”. Os banqueiros que se cuidem: o presidente francês vai insistir no aperto ao cerco aos bancos e pedir, na reunião do G-20, para que outros países sigam a França, que acaba de anunciar medidas para para reduzir os bônus dos traders. “Se alguém acreditar que após a crise tudo poderá recomeçar como antes”, alerta Sarkozy, “estará redondamente enganado”.
Deborah Berlinck
O GLOBO: Um ano após o início da crise de subprimes nos Estados Unidos, como o senhor avalia a situação? NICOLAS SARKOZY: Ainda é cedo demais para fazer um balanço definitivo desta crise, da qual, aliás, ainda não saímos.
Mas uma coisa é certa: ela promoveu uma tomada de consciência.
Quando o mundo se viu à beira do precipício, um certo número de ideias que o presidente Lula e eu — juntamente com outras pessoas — defendíamos há muito tempo adquiriram força, graças à realidade dos fatos: era preciso pôr fim aos excessos de um sistema sem regras nem moral e recolocar o sistema financeiro a serviço da economia real e do desenvolvimento, ou seja, a serviço das pessoas. O movimento de reforma que empreendemos desde as reuniões do G-20 em Washington, em novembro último, e em Londres, em abril, é simplesmente sem precedentes. Desejamos reconstruir um capitalismo regulado, no qual os bancos cumpram a sua missão, ou seja, financiar o desenvolvimento econômico e não a especulação; um capitalismo no qual nenhuma das instituições que o constituem e nenhum mercado financeiro escape aos controles; no qual a opacidade dê lugar à transparência; no qual as formas de remuneração não conduzam as pessoas a correrem riscos cada vez maiores; no qual mais ninguém possa se servir do sigilo bancário para sonegar impostos; por fim, um capitalismo no qual aqueles que colocam em risco o dinheiro dos investidores sejam punidos.
Naturalmente, ainda não chegamos ao fim do caminho e é por isso que, com nossos parceiros do G-20, vamos nos reunir novamente em Pittsburgh dentro de alguns dias. Mas, sinceramente, quem teria imaginado, há um ano, que teríamos chegado aonde estamos hoje? Em 2007, o senhor defendia a ruptura em relação ao modelo social francês, considerado como a causa do “atraso” da França. Muitos acreditavam que fosse um admirador incondicional do modelo americano.
Hoje, o senhor denuncia o modelo anglo-saxão, que "intensifica as desigualdades", e desacelera o ritmo das reformas. A crise mudou o seu ponto de vista? SARKOZY: Não é verdade que reduzimos a velocidade das reformas com a crise. Aliás, é justamente o contrário: aceleramos o ritmo. A crise, tenho certeza, não coloca em questão a necessidade das reformas: ela apenas as torna mais urgentes. Aos cidadãos franceses, declarei que usar a situação como pretexto para interromper as reformas seria um grave erro. Acredito, ao contrário, que a crise oferece uma oportunidade extraordinária para implementarmos mudanças que, mais do que nunca, fazem-se necessárias.
Isso é verdade no plano internacional, com a profunda renovação do sistema financeiro que empreendemos, e é verdade também em nossos respectivos países. Não posso também deixar de dizer que aqueles que me descreveram como um “admirador incondicional do modelo americano” estavam enganados. O “modelo americano” ao qual se referem tem como base, majoritariamente, os seguros privados.
Nunca desejei que esse tipo de sistema fosse adotado na França, pois ele deixa um grande número de pessoas sem proteção. Ao contrário, sempre considerei que o sistema francês, que oferece a todos os cidadãos, mesmo os mais desfavorecidos, um alto nível de proteção social, constituía um tesouro que deveria ser preservado a todo custo. E é justamente para preservar nosso modelo social que precisamos modernizá-lo, a fim de adaptálo às novas realidades e aos novos desafios. Neste aspecto, meu ponto de vista nunca mudou.
A maioria dos bancos se salvou da crise com a ajuda do Estado e anuncia bônus mirabolantes, enquanto a maior parte das pessoas tem de fazer esforços adicionais.
Não há o risco de uma volta à situação anterior? SARKOZY: Se alguém acreditar que após a crise tudo poderá recomeçar como antes, estará redondamente enganado. Isto ninguém poderá aceitar e nós não permitiremos que aconteça.
Quanto aos bônus dos traders, por exemplo, será uma questão central em Pittsburgh, pois os nossos compatriotas estão exasperados — e com razão — por constatar que as lições tiradas da crise foram logo esquecidas.
Sobre esta questão, a França decidiu dar o exemplo. Há dez dias, anunciei uma série de novas regras extremamente rigorosas. Agora, na França, os bônus deverão ser sistematicamente parcelados em pelo menos três anos. E nós criamos um málus, o que significa que se os resultados não estiverem à altura das expectativas, a parte diferida do bônus não será paga. Terminou a era do “é só ganho”. Também decidimos que agora uma parte substancial desses bônus será distribuída sob a forma de títulos e que esses títulos não poderão ser vendidos durante pelo menos dois anos. E eu disse com toda a clareza que nós deixaremos de dar mandato aos bancos que não respeitarem as regras que fixamos. Nenhum outro país no mundo foi tão longe no âmbito dessa questão dos bônus. Assim, perante os nossos parceiros do G-20 em Pittsburgh, nós poderemos dizer, não “aqui está o que tencionamos fazer”, mas sim “aqui está o que nós decidimos”. É fundamental.
Não aceito o raciocínio que consiste em dizer “nós estamos esperando que os outros avancem, para então avançarmos”. Se for assim, arriscamos ter de esperar muito, pois ninguém avança. Os nossos amigos alemães e britânicos já aderiram à nossa iniciativa. Com Angela Merkel e Gordon Brown, nós assinamos, na quartafeira passada, uma carta em comum para que a Europa chegue a Pittsburgh unida e com o mais alto nível de ambição, como foi o caso em Washington e Londres. Nesta carta, a questão da regulamentação dos bô nus está claramente formulada. Desejo que o conjunto dos nossos parceiros do G-20 se una a nós no âmbito dessas proposições ambiciosas
Os países emergentes, como o Brasil, parecem ter saído reforçados da Cúpula do G-20 em Londres.
Por que se insiste no formato G-8, ainda que ampliado, em vez de simplesmente adotar o G-20? SARKOZY: Uma coisa é certa: é que o G-8 não é mais suficiente. Se quisermos que seja eficaz, se quisermos que permaneça legítimo, não temos escolha: somos obrigados a ampliá-lo aos grandes países emergentes, sem os quais não poderemos enfrentar os desafios globais com os quais se defronta o nosso mundo. Esses países bôsão, por exemplo, a China, a Índia e, naturalmente, o Brasil. Reconheço perfeitamente que o G-20 se mostrou particularmente eficaz para enfrentar a crise. O G-20 representa 85% da riqueza mundial e tem, por conseguinte, uma verdadeira legitimidade quanto às questões econômicas e financeiras e principalmente quanto à reforma da governança econômica mundial.
É o caso da reforma do FMI, por exemplo, que também tem de refletir melhor os novos equilíbrios mundiais e sobretudo a emergência de novos gigantes, como o Brasil. Para todas as outras questões globais, o presidente Lula e eu solicitamos que o G-8 se transforme em G-14, estendendo-se aos seis grandes países emergentes que são o Brasil, é claro, mas também a China, a Índia, o México, a África do Sul e o Egito. Veja bem: não se trata apenas de dar um papel mais importante a esses seis grandes países; o que nós queremos é a completa transformação do G-8 em G14, porque não é possível termos, de um lado, o G-8 e, de outro, o G-6, de um lado o Norte e de outro o Sul. Na Cúpula de Áquila, demos um passo decisivo nesse sentido, tendo mais da metade da reunião se realizado em formato ampliado.
Espero que a presidência canadense organize, este ano, a maior parte da próxima cúpula em formato G-14. E, é claro, tenciono concluir esta transformação sob a presidência francesa em 2011.
Os diplomatas brasileiros falam de um estreitamento excepcional dos laços entre o Brasil e a França durante o seu governo. O que o senhor vê no futuro do Brasil que os seus predecessores não viram? SARKOZY: Não tenho a pretensão, evidentemente, de ser o primeiro a ter compreendido que no século XXI simplesmente não se pode mais prescindir de um país como o Brasil para solucionar os grandes problemas do mundo. Mas a verdade é que o presidente Lula e eu decidimos dar à parceria entre os nossos dois países uma nova dimensão e sobretudo um conteúdo muito mais concreto.
Tínhamos de passar das palavras aos atos e foi o que fizemos.
O presidente Lula gosta de ver resultados; tanto melhor, porque eu também. Em todas as grandes questões, a concertação entre os nossos dois países nunca foi tão intensa.
Com o presidente Lula, nós nos comunicamos antes de cada grande encontro internacional.
Juntos, defendemos esta ideia de que a reforma da governança mundial é não apenas necessária, mas urgente. E pensamos que é chegada a hora de darmos um maior realce à dimensão social da globalização. É justamente o objetivo da Aliança para a Mudança, que lançamos no mês de julho, antes da reunião de cúpula de Áquila.
Constatamos também esta nova dimensão da parceria francobrasileira no plano econômico, em que a cooperação entre os nossos dois países jamais foi tão densa, ou ainda no setor cultural, com o êxito do Ano da França no Brasil.
Na parceria estratégica assinada com o Brasil, a França defende abertamente as ambições brasileiras: entre outras, uma cadeira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU e maior participação do país no cenário internacional. Ao mesmo tempo, a França obteve contratos militares rendosos, com outras possibilidades promissoras. O que o senhor responde aos que falam de uma “barganha entre amigos”? SARKOZY: Respondo que eles não entenderam bem o sentido desta parceria estratégica e sobretudo que não avaliaram o que o Brasil e a França podem realizar juntos, um para o outro, naturalmente, mas também para o mundo. Sim, temos interesses e é bem verdade que os defendemos. É perfeitamente normal e ninguém está tentando negar. Mas, a parceria que nos liga é muito mais profunda. No alicerce da nossa amizade há, em primeiro lugar, o apego a valores em comum: a democracia, a liberdade e os direitos humanos. Com o Brasil, compartilhamos também a mesma visão do mundo e do que está em jogo no plano mundial. Juntos, somos portadores da ideia de uma nova ordem mundial mais justa e mais solidária. E se a França defende a ideia de que o Brasil deve ser membro permanente do Conselho de Segurança é simplesmente porque pensamos que o Brasil se tornou um país incontornável, um gigante de que o mundo não pode prescindir para enfrentar os desafios que o espreitam. Aliás, certamente ninguém ignora o fato de que nós não reclamamos uma cadeira permanente na ONU para todos os países nos quais temos interesses econômicos.
E quanto aos contratos, pois bem, entre o Brasil e a França, não se trata de uma relação de fornecedor a cliente, mas de uma parceria. Todas as nossas cooperações industriais, em matéria civil como de defesa, baseiam-se em transferências de tecnologia e em coproduções muito extensas. Até mesmo, diria, sem precedentes. Não se trata de vender. Trata-de de agir em conjunto. E queremos agir em conjunto porque compartilhamos os mesmos valores e uma mesma visão das grandes metas internacionais.
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