Valor Econômico
11/09/2009
Por João Caminoto, para o Valor, de São Paulo
Você se lembra de algum dia, ao longo dos últimos 12 meses, no qual o tema "crise" não tenha emergido em suas reuniões no trabalho, nos bate-papos com familiares, amigos ou taxistas, nas manchetes dos jornais, ou em sua caixa de e-mails? OK, talvez nos últimos tempos, com a recuperação das bolsas de valores e alguns sinais de alívio na economia real, o assunto tenha até perdido algum espaço no seu dia-a-dia. Mas o fato é que desde a quebra do banco de investimentos Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, nossas vidas, de alguma maneira ou outra, foram afetadas pela maior crise financeira desde a Grande Depressão de 1930. E assim devem continuar nos próximos meses e anos.
Como, ninguém ainda sabe dizer. A recuperação será em V, U, ou W? A mão mais pesada do Estado na economia veio para ficar? Quando desarmar a gigantesca injeção de recursos públicos no sistema financeiro ou corporações em apuros sem que a a recuperação desande? As lições da crise serão aprendidas ou teremos tempestades semelhantes pela frente? O poder econômico dos Estados Unidos está migrando para a China? Estamos prestes a ver uma reversão da febre da globalização das duas últimas décadas? A lista de incertezas é extensa.
Ainda é cedo para tentar calcular o custo dos eventos do último ano. Mas alguns números ajudam a traçar os contornos do rombo. Segundo estimativa do Fundo Monetário Internacional (FMI), as perdas acumuladas do sistema financeiro global podem totalizar US$ 4,1 trilhões. O PIB mundial, que em 2007 havia crescido vistosos 5%, deve encolher 1,4% neste ano. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê que o total de desempregados no mundo deve saltar dos 189 milhões em 2008 para até 239 milhões em 2009. Em termos de criação de empregos, 2009 será o pior ano já monitorado pela OIT. Com a queda no comércio mundial, os habitantes dos países menos desenvolvidos serão os mais prejudicados. O Banco Mundial espera que mais de 50 milhões de pessoas escorreguem para baixo do nível de extrema pobreza neste ano. No Brasil, foram fechadas em dezembro 654 mil vagas de trabalho formal, um recorde negativo histórico. De lá para cá, a situação do emprego ainda ficou longe dos melhores tempos, mas há o dado positivo de que a taxa de desocupação praticamente se estabilizou em junho e julho, em torno de 8%. De todo modo, o crescimento da economia, que vinha um passo superior a 5% até meados do ano passado, pode chegar a 1% em 2009, se tanto, segundo as melhores previsões, fazendo cair para no máximo 700 mil a criação de novos empregos até dezembro, como prevê o ministro da Fazenda, Guido Mantega.
Mas o impacto da crise vai além dos números recordes e da quebradeira de bancos ou corporações ícones do capitalismo do século XX, como a General Motors. Como explica Martin Wolf, economista e colunista do jornal "Financial Times" (leia entrevista na página 12), a crise fraturou a crença nos mercados financeiros com rédeas livres, capazes de precificar com honestidade e precisão os riscos em suas operações sofisticadas, recheadas de ativos inescrutáveis, entre os quais os "subprime" se tornaram os mais notórios por terem deflagrado o colapso. "Banqueiros não vão prever os riscos do mercado e agir preventivamente. Quando ele quebra, todos quebram. Isso joga por terra a teoria dos mercados eficientes", disse Wolf à repórter Márcia Pinheiro.
A crise abalou a confiança na classe dos economistas, inclusive os estrelados e paparicados, quase todos incapazes em antecipar o gigantesco problema que estava em gestação no sistema financeiro mundial. O mesmo vale para a credibilidade dos principais bancos centrais. O ex-presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, idolatrado até 2007 como um deus da nova ordem financeira global, é hoje visto, por muitos, como um dos principais responsáveis pela bolha que abalou a economia dos Estados Unidos e além.
O atual comandante do banco central americano, Ben Bernanke, foi outro que deu sua contribuição à complacência oficial diante do que ocorria nos mercados. Ele também é criticado por não ter antevisto, juntamente com o ex-secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, as consequências nefastas para todo o sistema financeiro causadas pela decisão de deixar o Lehman Brothers, uma instituição de 185 anos, fechar as portas. Bernanke, no entanto, parece ter se recuperado a credibilidade ao orquestrar com ousadia e rapidez a redução dos juros aliada a uma operação de socorro ao sistema financeiro americano, evitando o que ele próprio chama de "Grande Depressão 2.0". O êxito desta estratégia foi premiado pelo presidente Barack Obama com o recente anúncio de um novo mandato de quatro anos para Bernanke chefiar o Fed.
Houve também outras consequências, pontuais, mas não menos relevantes. A revelação, em dezembro, da fraude perpetrada durante 16 anos por Bernard Madoff, que lesou milhares de investidores em mais de US$ 50 bilhões com um esquema de pirâmide financeira, escancarou a incompetência das autoridades em detectar pilantragens de tamanha envergadura cometidas à luz do dia. No Brasil, a volatilidade cambial, com a temporária, mas acentuada, desvalorização do real, infligiu prejuízos bilionários e quase fatais a empresas que haviam se acostumado a faturar, com uma enorme dose de imprudência, na ciranda dos mercados financeiros.
Madoff - condenado a 150 anos de prisão - não foi o único catapultado pela crise do campo da normalidade para o dos escândalos. Os cerca de US$ 18 bilhões em bônus pagos aos executivos de instituições financeiras nos Estados Unidos no ano passado geraram uma onda de indignação popular. Muitos dos mesmos indivíduos que ajudaram a erigir castelos de areia financeiros foram recompensados com cheques milionários - em muitos casos, mesmo após seus bancos terem sido socorridos com vastas somas do dinheiro público, como no Merrill Lynch, Bank of America e Citigroup, nos Estados Unidos, e o Royal Bank of Scotland, no Reino Unido.
No lado positivo, a crise serviu para chancelar a drástica redução da vulnerabilidade externa brasileira resultante de medidas adotadas ao longo da última década, como o câmbio flutuante, a redução da dívida pública e o acúmulo de reservas. Dez em cada dez analistas, nacionais ou estrangeiros, apontam o país como um daqueles que foi menos pior do que o resto. "O Brasil virou uma coisa sexy", afirma Alexandre Schwartsman, economista-chefe do Banco Santander e ex-diretor do Banco Central. No entanto, ele alerta que é preciso evitar exageros com o novo status adquirido pela economia brasileira. "O país enfrentou bem a crise mas, economicamente falando, aumentou sua importância no mundo? O volume de comércio aumentou? A atração de investimentos subiu em relação ao passado? O PIB cresceu? A resposta é não. Reduzimos a vulnerabilidade, mas não nos transformamos num líder global."
E o futuro, o que nos reserva? A questão mais urgente é tentar saber quando virá a recuperação. Instalou-se um consenso de que o pior do ajuste já passou. Alguns indicadores nos Estados Unidos, Europa e Japão parecem sinalizar o início de uma retomada na confiança dos consumidores e na produção industrial. A economia chinesa e seu insaciável apetite por commodities, após um breve período de fragilidade, deve fechar 2009 com um crescimento em torno dos 8%, ancorando a recuperação global. Os mercados acionários, após terem US$ 30 trilhões do valor de suas ações evaporados no auge da turbulência, embalaram na aposta da retomada e acumulam valorizações expressivas nos últimos meses. O índice Dow Jones, da Bolsa de Nova York ostenta uma alta superior a 40% desde seu nível mais baixo neste ano, registrado em março.
Mas a história muito recente ensina que o entusiasmo dos mercados financeiros e de seus analistas precisa ser encarado com boa dose de ceticismo. O Federal Reserve, o FMI e a maioria dos analistas creem que a recuperação nos Estados Unidos, Europa - e talvez no Japão - está sendo iniciada neste segundo semestre, mas virá muito lentamente, cercada de riscos. Como esperar uma recuperação vigorosa enquanto as taxas de desemprego não param de subir nas principais potências econômicas, devendo superar os 10% em 2010? Com o mercado imobiliário americano ainda praticamente paralisado? E o risco ainda real de quebradeira que ameaça centenas de instituições financeiras nos Estados Unidos?
Nem mesmo a tese de início de recuperação - seja ela lenta, gradual, ou acelerada - é abraçada por todos. O economista Fred Bergsten, diretor do "think tank" Peterson Institute for International Economics, dos Estados Unidos, atribui uma "forte possibilidade" ao risco de um "double-dip" (queda dupla), ou seja, a tese do W. "O pior passou, por enquanto. Não tenho certeza de que a recuperação é sustentável", disse Peterson em entrevista ao Valor. "O que vai acontecer quando acabar o impacto do estímulo fiscal? O consumo privado será suficiente para manter a economia caminhando? E o sistema financeiro também continua frágil, mais bancos podem quebrar." Segundo Bergsten, a nova queda, se ocorrer, virá entre 12 e 18 meses.
O economista Nouriel Roubini, que ganhou notoriedade por ter sido um dos poucos a prever a crise, bate na mesma tecla em recente artigo no "Financial Times": "A recuperação deve ser anêmica e abaixo da tendência (histórica de crescimento ) nos países desenvolvidos e há um grande risco de uma recessão "double-dip"".
O momento para a desmontagem do massivo relaxamento monetário e fiscal empregado para conter a crise será um dos maiores desafios das autoridades. Se prematuramente elevarem os juros, enxugarem a liquidez, aumentarem os impostos, poderão abortar a recuperação e arremessar suas economias de volta à recessão. Mas se demorarem demais, permitindo a manutenção de amplos déficits orçamentários, as expectativas inflacionárias poderão inchar, acompanhadas de um ciclo de crescimento fraco ou nulo. "O estímulo fiscal foi necessário, mais do que o monetário", afirmou Bergsten. "Mas vai ser difícil desarmar essa situação. Serão necessárias estratégias de gerenciamento adotadas no momento correto."
A necessidade do estímulo fiscal massivo provocou um renascimento das ideias do economista britânico John Maynard Keynes, que ultrapassaram as fronteiras da academia e invadiram o cenário político. O Estado deve assumir um papel mais forte na economia?
Nos próximos meses será possível verificar se as lições da crise foram realmente aprendidas. No auge da turbulência, não faltaram promessas oficiais de reformas urgentes no arcabouço financeiro global, necessárias para se evitar crises semelhantes no futuro. Mais regulamentação, mais supervisão, mais transparência, mais capitalização das instituições financeiras. No entanto, com a recente melhora de humor nos mercados, o tema começou a perder espaço. "Há um perigo claro de que as mudanças importantes serão diluídas com o passar do tempo", afirmou ao Valor John Bowler, diretor de risco da consultoria Economist Intelligence Unit. "Tempos melhores geram complacência, mas alguma coisa tem que mudar para evitarmos situações semelhantes no futuro."
Embora necessárias, mudanças nas regras para o sistema financeiro terão que superar obstáculos poderosos. Um controle eficiente do sistema financeiro requer ação internacional coordenada. A City londrina, por exemplo, teme que, ao adotar regras mais draconianas, acabe perdendo negócios para outras praças com exigências mais brandas. O assunto está no topo da agenda oficial do G-20, o grupo dos 20 principais países desenvolvidos e emergentes, mas por enquanto, pouco se avançou para além do campo retórico. Já os pagamentos dos bônus dos executivos graduados de bancos americanos e europeus estão sendo submetidos a algumas limitações, embora aquém do que esperavam os críticos mais severos da liberalidade antes generalizada.
Passado um ano do trauma com o fechamento do banco Lehman Brothers, previsões apocalípticas feitas no pico da nervosismo, como "derretimento dos mercados", "fim do capitalismo", ou "nova onda de nacionalismo", foram esquecidas. Poderia ter sido muito pior. Mas ainda teremos que conviver por um bom período com um enorme leque de incertezas que terão um impacto duradouro sobre nossas vidas. Esses tempos serão daqueles que você, certamente, relatará aos netos.
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