A Folha de São Paulo do dia 7 de dezembro publica artigo sobre os o julgamento do STF sobre a reserva indígena Raposa/Serra do Sol.
Datas históricas
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA e PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Na quarta-feira, saberemos se o Brasil pode realmente festejar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
NO DIA 10/12, celebram-se os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Coincidência? No mesmo dia, haverá um julgamento no Supremo Tribunal Federal que poderá reverter os direitos dos índios brasileiros. E há outros aniversários significativos em jogo: os 20 anos de uma Constituição Federal que se quis mais fraterna e os 20 anos do assassinato de Chico Mendes, que mostrou a contribuição que as populações tradicionais podiam trazer a problemas ecológicos.
Em pauta está uma contestação por senadores e pelo Estado de Roraima da decisão do Executivo de homologar a demarcação contínua da uma área de Roraima habitada por cerca de 19 mil índios. Em jogo está não só essa área, mas um possível precedente que poderia permitir o esfacelamento de demarcações estabelecidas.
Os argumentos jurídicos pesam inequivocamente a favor de uma demarcação contínua. Um parecer circunstanciado do eminente constitucionalista José Afonso da Silva o confirma. Lembra ele a posição de João Mendes Jr., que demonstrou serem os direitos indígenas à terra anteriores a qualquer outro direito. Daí serem tais direitos dos índios descritos como originários no artigo 231 da Constituição Federal. Também ressalta ele que a continuidade das terras indígenas é condição necessária para que se cumpra o disposto nesse mesmo artigo, a saber, a possibilidade de os indígenas se reproduzirem não só física mas também culturalmente.
É o próprio atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, quem transcreveu, antes mesmo de 1988, o seguinte texto, em apoio à tese da continuidade do Parque Nacional do Xingu e contra o Estado de Mato Grosso: "Essa conformidade cultural das populações xinguanas impõe um modo particular de observar seus problemas: a necessidade de encará-los em seu conjunto.
Fracionar a região que hoje ocupam coletivamente em territórios particulares, isolados por faixas que seriam ocupadas mais tarde por estranhos, seria destruir uma das bases do sistema adaptativo daqueles índios e condená-los ao aniquilamento". O problema, se o há, não é, portanto, jurídico, mas político -ou melhor, de ganância.
Considerações extemporâneas foram introduzidas no debate, viciando-o. Argumentou-se, assim, que "é muita terra para poucos índios". Ora, a densidade da população rural não indígena de Roraima é inferior à densidade na Raposa/Serra do Sol. Disse-se que o fato de terras indígenas ocuparem 46% do Estado de Roraima inviabilizava o "progresso".
Ora, os mais de 120 mil km2 restantes, como lembra Washington Novaes, são mais terras do que as do Estado de Pernambuco (98,3 km2), onde vivem 8,4 milhões de pessoas, 21 vezes a população total de Roraima.
Alardeou-se que os índios na fronteira seriam uma ameaça à soberania do Brasil, esquecendo-se propositalmente de pelo menos duas coisas fundamentais: primeiro, que sua presença nessas fronteiras foi política colonial e suas relações amistosas com Portugal permitiram ao Brasil ganhar em 1904 um pedaço significativo de território, aquele mesmo que lhes é hoje contestado; segundo, que terras indígenas -em contraste com as grandes extensões privadas nas fronteiras- não são propriedade dos índios, mas da União.
Argumentou-se que a magnitude das áreas indígenas em Roraima impediria o progresso do Estado, como se os índios fossem intrusos e já não estivessem lá antes de Roraima ser elevada a Estado. Argumento no mínimo paradoxal, pois a maioria dos políticos e dos rizicultores, cujos interesses foram esposados pelo Estado, não nasceram em Roraima.
Se esses e outros argumentos infundados puderam ser debatidos, talvez seja porque ainda perdura uma mentalidade que pensávamos definitivamente abolida, a que vê os índios como estrangeiros e os considera um obstáculo a um tipo de "desenvolvimento" que só se mede pelo PIB. O desenvolvimento sustentável que o Brasil hoje quer se baseia em outros valores: justiça, qualidade de vida, respeito ao meio ambiente e às gerações futuras. Em suma, direitos humanos. Para esse tipo de desenvolvimento, os índios são aliados, e não obstáculos.
Há três meses, apesar de uma batalha de desinformação na imprensa, o relator do processo da Raposa/Serra do Sol no STF, ministro Carlos Ayres Britto, soube dar um voto sereno e justo. Na próxima quarta-feira, saberemos se o Brasil pode realmente festejar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é professora de antropologia da Universidade de Chicago (EUA) e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO , 64, é pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP e professor-adjunto de relações internacionais da Brown University, EUA. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC.
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.
Datas históricas
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA e PAULO SÉRGIO PINHEIRO
Na quarta-feira, saberemos se o Brasil pode realmente festejar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos
NO DIA 10/12, celebram-se os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Coincidência? No mesmo dia, haverá um julgamento no Supremo Tribunal Federal que poderá reverter os direitos dos índios brasileiros. E há outros aniversários significativos em jogo: os 20 anos de uma Constituição Federal que se quis mais fraterna e os 20 anos do assassinato de Chico Mendes, que mostrou a contribuição que as populações tradicionais podiam trazer a problemas ecológicos.
Em pauta está uma contestação por senadores e pelo Estado de Roraima da decisão do Executivo de homologar a demarcação contínua da uma área de Roraima habitada por cerca de 19 mil índios. Em jogo está não só essa área, mas um possível precedente que poderia permitir o esfacelamento de demarcações estabelecidas.
Os argumentos jurídicos pesam inequivocamente a favor de uma demarcação contínua. Um parecer circunstanciado do eminente constitucionalista José Afonso da Silva o confirma. Lembra ele a posição de João Mendes Jr., que demonstrou serem os direitos indígenas à terra anteriores a qualquer outro direito. Daí serem tais direitos dos índios descritos como originários no artigo 231 da Constituição Federal. Também ressalta ele que a continuidade das terras indígenas é condição necessária para que se cumpra o disposto nesse mesmo artigo, a saber, a possibilidade de os indígenas se reproduzirem não só física mas também culturalmente.
É o próprio atual presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, quem transcreveu, antes mesmo de 1988, o seguinte texto, em apoio à tese da continuidade do Parque Nacional do Xingu e contra o Estado de Mato Grosso: "Essa conformidade cultural das populações xinguanas impõe um modo particular de observar seus problemas: a necessidade de encará-los em seu conjunto.
Fracionar a região que hoje ocupam coletivamente em territórios particulares, isolados por faixas que seriam ocupadas mais tarde por estranhos, seria destruir uma das bases do sistema adaptativo daqueles índios e condená-los ao aniquilamento". O problema, se o há, não é, portanto, jurídico, mas político -ou melhor, de ganância.
Considerações extemporâneas foram introduzidas no debate, viciando-o. Argumentou-se, assim, que "é muita terra para poucos índios". Ora, a densidade da população rural não indígena de Roraima é inferior à densidade na Raposa/Serra do Sol. Disse-se que o fato de terras indígenas ocuparem 46% do Estado de Roraima inviabilizava o "progresso".
Ora, os mais de 120 mil km2 restantes, como lembra Washington Novaes, são mais terras do que as do Estado de Pernambuco (98,3 km2), onde vivem 8,4 milhões de pessoas, 21 vezes a população total de Roraima.
Alardeou-se que os índios na fronteira seriam uma ameaça à soberania do Brasil, esquecendo-se propositalmente de pelo menos duas coisas fundamentais: primeiro, que sua presença nessas fronteiras foi política colonial e suas relações amistosas com Portugal permitiram ao Brasil ganhar em 1904 um pedaço significativo de território, aquele mesmo que lhes é hoje contestado; segundo, que terras indígenas -em contraste com as grandes extensões privadas nas fronteiras- não são propriedade dos índios, mas da União.
Argumentou-se que a magnitude das áreas indígenas em Roraima impediria o progresso do Estado, como se os índios fossem intrusos e já não estivessem lá antes de Roraima ser elevada a Estado. Argumento no mínimo paradoxal, pois a maioria dos políticos e dos rizicultores, cujos interesses foram esposados pelo Estado, não nasceram em Roraima.
Se esses e outros argumentos infundados puderam ser debatidos, talvez seja porque ainda perdura uma mentalidade que pensávamos definitivamente abolida, a que vê os índios como estrangeiros e os considera um obstáculo a um tipo de "desenvolvimento" que só se mede pelo PIB. O desenvolvimento sustentável que o Brasil hoje quer se baseia em outros valores: justiça, qualidade de vida, respeito ao meio ambiente e às gerações futuras. Em suma, direitos humanos. Para esse tipo de desenvolvimento, os índios são aliados, e não obstáculos.
Há três meses, apesar de uma batalha de desinformação na imprensa, o relator do processo da Raposa/Serra do Sol no STF, ministro Carlos Ayres Britto, soube dar um voto sereno e justo. Na próxima quarta-feira, saberemos se o Brasil pode realmente festejar os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
MANUELA CARNEIRO DA CUNHA é professora de antropologia da Universidade de Chicago (EUA) e ex-presidente da Associação Brasileira de Antropologia.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO , 64, é pesquisador associado do Núcleo de Estudos da Violência da USP e professor-adjunto de relações internacionais da Brown University, EUA. Foi secretário de Estado de Direitos Humanos no governo FHC.
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