segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Entrevista: Ban Ki-Moon

A Folha de São Paulo publica, no dia 8 de dezembro de 2008, a seguinte entrevista como secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon.


Para secretário da ONU, Brasil deve assumir mais encargos

Marcelo Ninio, enviado especial a Doha
ENTREVISTA DA 2ª
BAN KI-MOON
Com novo peso global, Brasil tem mais responsabilidades
Para dirigente da ONU, Obama é fonte de "mudança climática" nas relações internacionais

EM JANEIRO , Ban Ki-moon completa dois anos no cargo de secretário-geral da Organização das Nações Unidas em meio à mais grave crise financeira mundial desde a fundação da entidade, em 1945. Para o diplomata sul-coreano, é o momento de a ONU assumir papel de liderança para permitir uma resposta coordenada à crise, que inclua a reforma das instituições multilaterais e a maior participação de países emergentes, como o Brasil. Ban aposta em avanços no projeto de ampliar o Conselho de Segurança da ONU, no qual o Brasil aspira a um assento permanente.
Diplomático, Ban Ki-moon, não diz qual a melhor fórmula de expansão, mas lembra que, com o peso mundial crescente do país, espera um maior "senso de responsabilidade" do Brasil. Em entrevista exclusiva concedida à Folha durante dois vôos, Ban falou de seus dois primeiros anos no cargo e não escondeu sua satisfação com a eleição de Barack Obama, que classificou como uma "mudança climática" na política mundial. "Estou muito otimista", disse.

FOLHA - Esta é a maior crise financeira desde a criação da ONU. Qual a relevância da organização neste momento?
BAN KI-MOON - As Nações Unidas são o único órgão intergovernamental com capacidade de assumir um papel universal no combate à crise. Cada país pode implementar medidas domésticas. Mas, se elas não forem coordenadas internacionalmente, o impacto será reduzido. A ONU pode dar um valor agregado a essas medidas, sobretudo diminuindo os efeitos nos países em desenvolvimento. Se os problemas sociais e econômicos criados pela crise financeira não forem atacados, a estabilidade política e a paz estarão sob ameaça.

FOLHA - Apesar dos discursos e conferências, a impressão é de que ainda há muita relutância em estabelecer uma resposta coletiva à crise. Os países membros estão dispostos a dar à ONU esse papel de liderança?
BAN - Recebemos um mandato para esse tipo de ação. Um bom exemplo foi como a ONU lidou com a crise alimentar. Eu estabeleci uma força-tarefa de alto nível, formada por todas as instituições da organização, que foi muito bem-sucedida no sentido de estabelecer um plano de ação. As Metas do Milênio, que incluem a redução de infectados pelo vírus HIV e da mortalidade infantil, o combate ao aquecimento global e a educação, são temas que não podem ser resolvidos por um único país, por mais poderoso que ele seja. Precisamos de uma ação coletiva concertada, que só pode ser feita pela ONU.

FOLHA - O sr. insistiu na realização da Conferência de Doha, para discutir uma ação contra a crise. Ficou surpreso com a resistência em reformar as instituições internacionais, mesmo dentro da ONU?
BAN - Não fiquei tão surpreso, pois já esperava por isso. Mas acho importante que os países desenvolvidos, onde a crise teve início, reconheçam a importância de uma ação coletiva e de que é preciso reformar as instituições para dar mais voz aos emergentes. Isso já está ocorrendo nas instituições de Bretton Woods, onde Robert Zoellick [presidente do Banco Mundial] e Dominique Strauss-Kahn [diretor-gerente do FMI] nomearam comissões para estudar as reformas.

FOLHA - Para muitos, a crise é o prenúncio de uma nova ordem mundial. Que lugar devem ter os países emergentes?
BAN - O discurso do presidente Lula em Washington foi eloqüente e apaixonado e deixou todos impressionados. Reforçou o forte chamado atual por reformas das instituições de Bretton Woods e o fortalecimento das regras que monitoram os sistemas bancário e financeiro. Antes de mais nada, cada país precisa apagar o seu incêndio, para que ele não se espalhe para os vizinhos. Mas creio que são necessárias modalidades inclusivas e multilaterais, uma visão mais abrangente. Não há uma fórmula fechada: começaram com G7, depois expandiram para G8. Agora, considerando que a maior parte do crescimento econômico vem dos emergentes, expandiram para G20. Esses países representam 90% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial e da população, então tecnicamente é um formato justo. Mas não há um corte exato.

FOLHA - E o Brasil?
BAN - Por qualquer critério, o Brasil é hoje um dos países mais importantes do mundo e está no centro das discussões sobre os maiores desafios, como as mudanças climáticas e a crise financeira. Tem um papel-chave no G20. Com isso, também terá que ter um maior senso de responsabilidade.

FOLHA - Este é um bom momento para a ampliação do Conselho de Segurança, com a inclusão do Brasil entre os membros permanentes?
BAN - A Assembléia Geral da ONU tomou uma decisão muito importante em setembro. Pela primeira vez aprovou, por consenso, que os membros devem dar início a uma negociação para a reforma do Conselho de Segurança. Isso deve acontecer até 28 de fevereiro. Agora, cabe aos membros decidir como essa expansão deve ser feita. Há o chamado G4 [Brasil, Índia, Japão e Alemanha], mas também há países com outras idéias, como o Unindo por Consenso [grupo contrário ao G4 composto por 40 países, entre eles Argentina e Itália]. Há consenso, porém, sobre a necessidade de reformar e expandir o Conselho de Segurança. Seria bom para a ONU, para refletir a dramática mudança política ocorrida no mundo.

FOLHA - O "maior senso de responsabilidade" que o sr. espera do Brasil também inclui mais contribuição financeira e em tropas para a ONU?
BAN - Sim, inclui todos esses aspectos, das missões de manutenção da paz, à contribuição financeira e ao cumprimento de metas ambientais.

FOLHA - O sr. vê oportunidades nesta crise?
BAN - Se os pacotes de estímulo econômico forem investidos em economia verde, é possível criar milhões de empregos. Veja o caso da China: um terço do seu pacote de estímulo será investido em economia verde. Isso levará a uma profusão de inovação tecnológica que criará empregos. Biocombustíveis são uma das formas de criar empregos e reduzir a dependência de combustíveis fósseis. Quando visitei o Brasil, no ano passado, fiquei impressionado com o investimento de longo prazo em tecnologia e a inovação na produção de etanol.

FOLHA - O governo Bush invadiu o Iraque sem autorização da ONU e foi avesso ao sistema multilateral. Que mudanças o sr. espera com o novo presidente dos EUA?
BAN - Acho que podemos esperar uma mudança climática em termos políticos com a eleição de Barack Obama. Fiquei muito impressionado com o seu forte compromisso com o multilateralismo, por exemplo no combate ao aquecimento global. Tive uma ótima conversa com ele, que me deixou muito otimista ao prometer que os EUA fortalecerão sua parceria com a ONU.

FOLHA - Nesses quase dois anos no cargo, o que o sr. considera ser sua maior conquista e qual foi a maior frustração?
BAN - Ainda é muito cedo para dizer que tive conquistas. Não porque sou modesto, mas porque os desafios são muitos. Veja o caso das mudanças climáticas. Este é o melhor exemplo da necessidade de uma parceria global. Por um lado, temos agora esperança de uma contribuição dos EUA. Por outro, há sinais desencorajadores na Europa, de recuo das metas estabelecidas.
Meu trabalho é um contínuo processo de persuasão. Exige diálogo o tempo todo, pois cada um dos 192 membros é um país soberano, com diferentes culturas e interesses. Há conflitos e é preciso chegar a um equilíbrio entre o interesse coletivo e o doméstico. Meu papel é harmonizar todos esses interesses em uma estrutura coerente.
O jornalista viajou a Doha a convite da ONU


perfil
Sul-coreano preza "centro" e evita polêmicas
DO ENVIADO A DOHA
Amante do golfe, Ban Ki-moon gosta de comparar seu estilo no campo de jogo e na arena diplomática. "Minhas bolas nunca vão muito para a direita ou para a esquerda", diz um sorridente Ban, já livre do paletó e da gravata, no avião que o leva de Londres a Doha. "Sou assim como secretário-geral. Sempre buscando o centro, o consenso."
Esse esforço, pelo que chama de "harmonização" das posições quase nunca convergentes dos 192 países da ONU, tem sido muitas vezes interpretado como ausência, e rendido críticas ao ex-chanceler sul-coreano desde que ele assumiu o cargo.
Para muitos, com seu desapreço pelos grandes gestos e o receio de provocar controvérsias, Ban é o homem errado para reabilitar a organização dos escombros em que o sistema multilateral foi lançado pela invasão americana do Iraque. Para seus assessores, Ban é um injustiçado, vítima da expectativa do Ocidente por uma exuberância que não condiz com o temperamento asiático.
O diplomata de 64 anos prefere não polemizar. Mas a reportagem da Folha pôde comprovar o incômodo que essas críticas lhe causam, e seu empenho para mostrar que a revolução para recolocar a ONU no centro das decisões pode ser silenciosa.
Por coincidência, as duas conversas que teve com a Folha, nos vôos de ida e volta à Conferência de Financiamento, no Qatar, ocorreram no espaço aéreo do Iraque, país que melhor simboliza os dilemas da organização. Agora, quando o que mais aflige o mundo não é mais a guerra, mas a crise financeira, Ban acha que a ONU pode experimentar um renascimento.
Mas ao dar maior ênfase a temas sociais, ambientais e do desenvolvimento, o secretário-geral tem sido freqüentemente considerado omisso em relação aos conflitos mundiais, como Sudão, Zimbábue e Geórgia. O jornal espanhol "El País" chamou-o de "o homem invisível".
Sem perder o humor, Ban não ignora as alfinetadas. Ao chegar ao hangar para o embarque rumo a Doha, comenta um artigo da revista britânica "Economist" que fala da invisibilidade da chanceler alemã, Angela Merkel, em meio à crise. "A sra. Merkel, imaginem, também está sendo chamada de invisível", diz Ban. "Acho que estou em boa companhia."

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