Posta-se abaixo artigo do Valor Econômico do dia 4 de dezembro de 2008. Mostra-se, nesse texto, o intenso debate ocorrido na sociedade inglesa, há cerca de cem anos, e como a economia se afastou do espaço público de discussão, ao longo do século XX.
As virtudes esquecidas do livre comércio
Frank Trentmann
Nicolas Sarkozy, o presidente francês "laissez-faire", declarou recentemente: "está acabado". Talvez, mas deveríamos realmente ficar satisfeitos se ele estiver certo? Caso o laissez-faire tenha chegado a seu fim, o que poderia substituí-lo no papel de base de uma sociedade global e aberta?
Agora, mais do que nunca, vale lembrar que a última grande crise financeira não apenas inspirou o "New Deal" nos Estados Unidos, como fez o mundo mergulhar em uma nova e sombria era de nacionalismo econômico e imperialismo. O livre comércio está longe de ser perfeito, mas as alternativas são piores. O protecionismo é ruim para a prosperidade, é ruim para a democracia e é ruim para a paz.
Uma nova onda de protecionismo é um verdadeiro perigo. Barack Obama, em apelo ao crescente sentimento de protecionismo entre os americanos, ameaçou durante sua campanha presidencial reescrever o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês) de forma unilateral. Em julho, a Rodada Doha de negociações comerciais da Organização Mundial do Comércio (OMC) naufragou em parte porque os Estados Unidos se recusaram a reduzir seus subsídios agrícolas.
O mundo está em uma rampa escorregadia, inclinada em direção ao nacionalismo e exclusão. Se um governo pode intervir para ajudar bancos falidos, por que não proteger da mesma forma suas empresas ou agricultores que estão quebrando?
Precisamos de um novo acordo para o comércio. Há conversas generalizadas agora sobre um "Bretton Woods II" para reestruturar as finanças mundiais, promover sustentabilidade e oferecer aos países em desenvolvimento "auxílio para o comércio". Porém, pare ser efetivo, qualquer novo acordo de promoção do comércio precisa envolver mais do que um novo conjunto de instituições internacionais. Precisa de reformas democráticas de baixo para cima.
De fato, esta exigência tem raízes na história. Ficamos tão acostumados a pensar no livre comércio como um assunto de especialistas, destinado a economistas liberais ou negociadores de comércio exterior em ternos escuros, que nos esquecemos como o livre comércio era, há um século, uma crença central para muitos democratas, radicais, ativistas mulheres e, certamente, para o trabalho organizado.
Naqueles tempos, a Grã-Bretanha estava em uma posição não muito diferente da dos EUA hoje: uma superpotência em relativo declínio, deparando-se com novos concorrentes e uma reação adversa à globalização. No fim do século XIX, todas as potências ampliaram suas barreiras comerciais - exceto a Grã-Bretanha.
A posição britânica traz lições para os dias de hoje. A maioria dos economistas ressalta a superioridade do modelo de livre comércio e acusa os lobbies e grupos de interesse para explicar sua atual impopularidade. O presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, argumentou que a expansão comercial inevitavelmente cria alguns perdedores, cujos protestos distraem a atenção dos benefícios da globalização.
Isso é verdade, mas é apenas metade da história, pois ignora como, em momentos cruciais da humanidade, o livre comércio arregimentou o apoio dos muitos vencedores.
Há um século, durante uma crise anterior da globalização, a demanda por livre comércio na Grã-Bretanha inspirou um genuíno movimento de massas. Era uma causa desejada não apenas por banqueiros, mercadores ou pelo jovem John Maynard Keynes. Mobilizou milhões de pessoas. Para as mulheres, que continuavam com direitos civis cassados, o livre comércio era um tipo de substituto da cidadania: o Parlamento protegia seus interesses como consumidoras ao manter a porta aberta para as importações baratas. Para muitos democratas, era uma força pela paz e justiça social, minimizando o poder dos interesses especiais e ensinando aos cidadãos sobre justiça e entendimento internacional.
Não devemos idealizar esta era anterior do livre comércio. A pobreza não desapareceu. Muitos britânicos acreditavam em um "Império do Livre Comércio". Outros alimentavam o fogo do antagonismo anglo-germânico, caricaturando a Alemanha protecionista como uma sociedade de bárbaros sobrevivendo de salsichas de cavalo e carne de cachorro; Lloyd George, futuro primeiro-ministro, dizia a platéias ter mais medo das salsichas alemãs do que da Marinha alemã.
Um motivo para o livre comércio ter derrotado o protecionismo na Grã-Bretanha há um século foi o fato de seus defensores terem apelado para a emoção e identidade da população, não apenas a seus interesses racionais de riqueza e alimentos baratos. Liberais e radicais organizaram mostras itinerárias, pôsteres coloridos e atividades de entretenimento político. Nas cidades, cartazes nas vitrines das lojas ilustravam o custo das tarifas aos consumidores comuns. No campo, as pessoas assistiam à exibição de slides políticos até tarde da noite. Encontros em estâncias de férias na costa reuniam quase 1 milhão de pessoas em 1910. Quando foi a última vez em que você foi à praia e viu-se arrastado a um debate sobre tarifas?
A Primeira Guerra Mundial e a fragmentada década de 20 derrubaram qualquer crença ingênua no livre comércio puro. Assim como hoje, os consumidores descobriram que os mercados poderiam deixá-los indefesos, o que levou a pedidos em favor da regulamentação. Os internacionalistas aceitaram o simples fato de que o comércio, por si só, não possibilita a paz. A globalização econômica sobrepujou a política, criando novas tensões sobre o petróleo e outros recursos estratégicos. As instituições políticas precisaram equiparar-se.
Bretton Woods e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) criaram uma nova ordem depois da Segunda Guerra Mundial. Em termos econômicos, tiveram sucesso considerável. As tarifas diminuíram, embora as barreiras não-tarifárias e acordos preferenciais estejam em ascensão. Porém, em termos de cultura democrática, o GATT também levou a uma maior separação do comércio em relação à política cotidiana. É por isso que o livre comércio foi deixado tão indefeso ante os protestos contra a globalização.
A boa notícia é que as pessoas não deixaram de importar-se com a ética do comércio. Ao contrário, se estenderam em outros movimentos como o "comércio justo" e "comércio com justiça". Para ser justo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) sob Pascal Lamy tentou estender a mão a tais grupos. Ainda assim, há um longo caminho a seguir para reconectar um comércio mais livre com a cidadania e a solidariedade mundial. A história mostra que fazê-lo é tanto possível como necessário.
Frank Trentmann é professor de História no Birkbeck College, da University of London.
As virtudes esquecidas do livre comércio
Frank Trentmann
Nicolas Sarkozy, o presidente francês "laissez-faire", declarou recentemente: "está acabado". Talvez, mas deveríamos realmente ficar satisfeitos se ele estiver certo? Caso o laissez-faire tenha chegado a seu fim, o que poderia substituí-lo no papel de base de uma sociedade global e aberta?
Agora, mais do que nunca, vale lembrar que a última grande crise financeira não apenas inspirou o "New Deal" nos Estados Unidos, como fez o mundo mergulhar em uma nova e sombria era de nacionalismo econômico e imperialismo. O livre comércio está longe de ser perfeito, mas as alternativas são piores. O protecionismo é ruim para a prosperidade, é ruim para a democracia e é ruim para a paz.
Uma nova onda de protecionismo é um verdadeiro perigo. Barack Obama, em apelo ao crescente sentimento de protecionismo entre os americanos, ameaçou durante sua campanha presidencial reescrever o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (Nafta, na sigla em inglês) de forma unilateral. Em julho, a Rodada Doha de negociações comerciais da Organização Mundial do Comércio (OMC) naufragou em parte porque os Estados Unidos se recusaram a reduzir seus subsídios agrícolas.
O mundo está em uma rampa escorregadia, inclinada em direção ao nacionalismo e exclusão. Se um governo pode intervir para ajudar bancos falidos, por que não proteger da mesma forma suas empresas ou agricultores que estão quebrando?
Precisamos de um novo acordo para o comércio. Há conversas generalizadas agora sobre um "Bretton Woods II" para reestruturar as finanças mundiais, promover sustentabilidade e oferecer aos países em desenvolvimento "auxílio para o comércio". Porém, pare ser efetivo, qualquer novo acordo de promoção do comércio precisa envolver mais do que um novo conjunto de instituições internacionais. Precisa de reformas democráticas de baixo para cima.
De fato, esta exigência tem raízes na história. Ficamos tão acostumados a pensar no livre comércio como um assunto de especialistas, destinado a economistas liberais ou negociadores de comércio exterior em ternos escuros, que nos esquecemos como o livre comércio era, há um século, uma crença central para muitos democratas, radicais, ativistas mulheres e, certamente, para o trabalho organizado.
Naqueles tempos, a Grã-Bretanha estava em uma posição não muito diferente da dos EUA hoje: uma superpotência em relativo declínio, deparando-se com novos concorrentes e uma reação adversa à globalização. No fim do século XIX, todas as potências ampliaram suas barreiras comerciais - exceto a Grã-Bretanha.
A posição britânica traz lições para os dias de hoje. A maioria dos economistas ressalta a superioridade do modelo de livre comércio e acusa os lobbies e grupos de interesse para explicar sua atual impopularidade. O presidente do Federal Reserve, Ben Bernanke, argumentou que a expansão comercial inevitavelmente cria alguns perdedores, cujos protestos distraem a atenção dos benefícios da globalização.
Isso é verdade, mas é apenas metade da história, pois ignora como, em momentos cruciais da humanidade, o livre comércio arregimentou o apoio dos muitos vencedores.
Há um século, durante uma crise anterior da globalização, a demanda por livre comércio na Grã-Bretanha inspirou um genuíno movimento de massas. Era uma causa desejada não apenas por banqueiros, mercadores ou pelo jovem John Maynard Keynes. Mobilizou milhões de pessoas. Para as mulheres, que continuavam com direitos civis cassados, o livre comércio era um tipo de substituto da cidadania: o Parlamento protegia seus interesses como consumidoras ao manter a porta aberta para as importações baratas. Para muitos democratas, era uma força pela paz e justiça social, minimizando o poder dos interesses especiais e ensinando aos cidadãos sobre justiça e entendimento internacional.
Não devemos idealizar esta era anterior do livre comércio. A pobreza não desapareceu. Muitos britânicos acreditavam em um "Império do Livre Comércio". Outros alimentavam o fogo do antagonismo anglo-germânico, caricaturando a Alemanha protecionista como uma sociedade de bárbaros sobrevivendo de salsichas de cavalo e carne de cachorro; Lloyd George, futuro primeiro-ministro, dizia a platéias ter mais medo das salsichas alemãs do que da Marinha alemã.
Um motivo para o livre comércio ter derrotado o protecionismo na Grã-Bretanha há um século foi o fato de seus defensores terem apelado para a emoção e identidade da população, não apenas a seus interesses racionais de riqueza e alimentos baratos. Liberais e radicais organizaram mostras itinerárias, pôsteres coloridos e atividades de entretenimento político. Nas cidades, cartazes nas vitrines das lojas ilustravam o custo das tarifas aos consumidores comuns. No campo, as pessoas assistiam à exibição de slides políticos até tarde da noite. Encontros em estâncias de férias na costa reuniam quase 1 milhão de pessoas em 1910. Quando foi a última vez em que você foi à praia e viu-se arrastado a um debate sobre tarifas?
A Primeira Guerra Mundial e a fragmentada década de 20 derrubaram qualquer crença ingênua no livre comércio puro. Assim como hoje, os consumidores descobriram que os mercados poderiam deixá-los indefesos, o que levou a pedidos em favor da regulamentação. Os internacionalistas aceitaram o simples fato de que o comércio, por si só, não possibilita a paz. A globalização econômica sobrepujou a política, criando novas tensões sobre o petróleo e outros recursos estratégicos. As instituições políticas precisaram equiparar-se.
Bretton Woods e o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT, na sigla em inglês) criaram uma nova ordem depois da Segunda Guerra Mundial. Em termos econômicos, tiveram sucesso considerável. As tarifas diminuíram, embora as barreiras não-tarifárias e acordos preferenciais estejam em ascensão. Porém, em termos de cultura democrática, o GATT também levou a uma maior separação do comércio em relação à política cotidiana. É por isso que o livre comércio foi deixado tão indefeso ante os protestos contra a globalização.
A boa notícia é que as pessoas não deixaram de importar-se com a ética do comércio. Ao contrário, se estenderam em outros movimentos como o "comércio justo" e "comércio com justiça". Para ser justo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) sob Pascal Lamy tentou estender a mão a tais grupos. Ainda assim, há um longo caminho a seguir para reconectar um comércio mais livre com a cidadania e a solidariedade mundial. A história mostra que fazê-lo é tanto possível como necessário.
Frank Trentmann é professor de História no Birkbeck College, da University of London.
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